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Rumos de Governo, Cidade e Sociedade sob Crise

A necessidade de as cidades radicalizarem experiências para se tornarem sustentáveis

Aparentemente, o que há de novo no interior da crise criada e gerida pelos capitais dos fazendeiros do ar é a cumplicidade impotente. Obrigados a serem avalizados pelos mercados e corporações desde o final dos anos 1980, os governos se auto-educaram a seguir receitas. Especialmente na Europa e nas Américas. Os agentes públicos eleitos que foram se sucedendo instruíram-se na mesma cartilha. Reestruturações, contingenciamentos, alongamento de dívidas, serviços não-transparentes, democracia aparente. Para se salvarem, muitos prometeram cumprir demandas a granel e terminaram concretizando clientelas capazes de conquistar, muitas vezes, sucesso eleitoral. No entanto, as cidades médias e grandes, ainda quando projetadas pelas mídias e outros discursos como em progresso e desenvolvimento, facilmente expõem suas faces mais cruéis: elas não são capazes de dar sustentação às necessidades das maiorias. Todas as cidades são, a rigor, insustentáveis, precárias. Elas não são capazes de apresentar uma cultura organizacional capaz de indicar uma direção, um destino democrático, isto é, serem pertinentes a seu povo. Noutras palavras, não cumprem com a razão de ser da cidade moderna e contemporânea. Esta começou a ser desenhada no século XVIII como lugar de cidadania, de direitos (contrapartida dos deveres), apta para o compartilhamento cultural e espaço competente para construir novas dimensões do trabalho humano, bem além do cansaço cotidiano em troca da sobrevivência. Rigorosamente, a cidade contemporânea deveria ser lugar do trabalho redimido. Ah, como é difícil, ainda hoje, que os trabalhadores entendam seu direito a essa redenção!

As receitas de cidade no capitalismo de tipo imperial transformaram-nas em nós das especulações (por elas circulam as moedas voadoras), espelho para as imagens do consumismo, expressão de anti-cultura (entretenimento facilmente deglutido), ou entreposto capaz de transformar as experiências mais autênticas em geléia geral. Talvez por isso quaisquer programas e projetos que tratem de transparência, gestão democrática, cidadania, ética duram um tempo e sofrem ondas pesadas de esquecimento, marginalidade e banalização. As nossas cidades nasceram com os sinais invertidos, isto é, os interesses individuais e de grupos de poder foram superiores às necessidades e desejos coletivos. Por isso, teriam de ser reinventadas, reencantadas. Nesse momento, começariam a ser sustentáveis e sustentantes. Mas as crises urdidas pelo capitalismo imperial provocam retornos e recaídas, como esta última, completamente deslocada do mundo do trabalho, mas capaz de vitimá-lo cruelmente.

A partir de 1989, o fundamentalismo internacional suscitou reações mundo afora, que chamamos de projetos de governança ou de concertações cívicas. De fato, trataram-se de grandes disputas simbólicas. Reações a Davos, Fóruns Sociais, movimento ecológico, sinergia regional (como do Grande ABC e seus novos atores), busca de viabilização da economia solidária e incremento de nova cultura de decisões sob democracia direta. A presente crise sugere, de toda a leitura feita até agora, que se quer superar, pelo apagamento, todas as experiências de disputa simbólica e produzir novo curral corporativo, ou seja, transformar todo o poder público em linha auxiliar do capital e o mundo do trabalho em moeda volúvel de troca. A força violenta da crise tem um objetivo central: que se esqueçam as experiências vividas em favor dos ganhos mínimos de trabalho e capital.

Quem escapará do dilúvio? Quem serão os familiares de Noé? Talvez muitos de nós. Mas há barreiras e moinhos para superar. Os poderes públicos, e as experiências de governança local/regional, não podem aceitar o discurso de George Soros e seus muitos seguidores, segundo o qual somente o poder público pode investir no momento. Deve-se negociar cada centavo aplicado e cada posto de trabalho. As novas formas de governança precisam associar-se a toda a inteligência existente para criar suportes (econômicos e culturais) a projetos ousados de sustentabilidade e políticas de bem-comum. De outro lado, a crise não pode ser explicada somente por economistas e muito menos por financistas, mas pela interculturalidade, pela visão ecumênica e holística da realidade. Aos diagnósticos e análises de conjuntura compete privilegiar (lembrando Camões) “as vísceras do necessitado” e não o jogo discursivo dos grupos de interesse. Um governo local que, de fato, crie um projeto guarda-chuvas denominado política pública integrada, com focos nítidos e controle social, pode ter muito sucesso em tempo crítico. É indispensável, enfim, radicalizar experiências de economia solidária (visando ampla cultura da solidariedade), ampliadas para redes micro-empresariais, sem perder por um minuto a consciência crítica de que nos falava Paulo Freire. Por aí, o dilema poderá não ser maior do que as nossas forças e as disputas simbólicas (que Celso Daniel sabia o que eram) podem ressurgir e se ampliar.

*Luiz Roberto Alves é professor e pesquisador na Universidade Metodista e na USP. Ex-secretário de Educação, Cultura e Esportes de S. Bernardo e Mauá.

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