Registros da vida urbana no cinema
Silvia Helena Passarelli1
São Paulo. 19 milhões de habitantes. 200 quilômetros diários de engarrafamento. 300 mil motoboys.
Esta é a introdução da sinopse do filme “Linha de Passe”2 exposta nas caixas dos DVD’s e nas peças de divulgação para a imprensa, assim como no site específico do filme3 dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas e lançado no ano de 2008. No filme, uma família da periferia de São Paulo, mais precisamente do bairro Cidade Líder, na Zona Leste, tenta vencer, sobreviver à brutalidade de uma cidade (idem). Porém, já no material de divulgação do filme, os produtores mostram que os personagens do filme vivem na metrópole, a maior da América Latina, uma das maiores do mundo com seus milhões de habitantes e muitos problemas de circulação, segurança, o lugar pobre onde se compartilha o pouco que se tem, como diz o personagem Dinho, interpretado por José Geraldo Rodrigues.
A cidade/metrópole do filme é impessoal, violenta, insegura; seus moradores são apenas números contabilizados em estatísticas, sem sonhos ou anseios. É somente nas ruas da Cidade Líder, onde os personagens principais moram que, mesmo em uma família desestruturada, eles têm nome e apelido, eles são reconhecidos por seus vizinhos e familiares, eles sentem carinho e segurança: no meio da metrópole eles são, apenas, números do registro geral de identificação do documento que temos em nossas carteiras. Solitários e desorientados em meio de milhões de habitantes e transeuntes.
Aliás, apenas para aquele pequeno grupo retratado no filme o lugar, o bairro onde eles vivem tem importância: em uma cena do filme, o personagem vivido por Vinicius de Oliveira, Dario, ao se inscrever para um teste, para uma peneira para entrar no futebol profissional afirma que mora da Cidade Líder, local desconhecido pelo responsável da inscrição que parece preferir anotar na ficha de inscrição o nome da cidade, São Paulo, pouco se importando com o lugar de onde o personagem veio.
Esta mesma metrópole fria e impessoal é registrada em muitos outros filmes, mas em “Ensaio sobre a Cegueira”4 , filme dirigido por Fernando Meirelles baseado no romance de mesmo nome de José Saramago, ela parece ser mais fria e impessoal. No filme de Fernando Meirelles, a cidade e os personagens não têm nome, e para que o espectador fique tão espacialmente desorientado como os personagens do filme atingidos pela cegueira branca, o cenário mostrado é resultado de imagens captadas em três diferentes metrópoles: São Paulo, Tóquio e Montreal. Fernando Meirelles superou os limites de uma metrópole e nos apresenta em seu filme uma única megametrópole que parece ter ocupado todo o território do planeta.
Tal qual a cidade retratada em “Linha de Passe”, a megametrópole de “Ensaio sobre a Cegueira” é caótica e insegura, local onde sentimentos humanos como egoísmo, oportunismo e indiferença se sobrepõem às relações de amizade e solidariedade, sentimentos estes que só se manifestaram plenamente quando os personagens principais se refugiam na casa do médico e se isolam do caos e da doença. E parece ser estes sentimentos de carinho, aconchego e afeto, vivenciados na casa do médico, que trazem de volta a saúde, e a visão.
A cidade impessoal de Fernando Meirelles é suja e agressiva, é terra de ninguém diante da doença que atinge a todos, inclusive à burocracia estatal que não consegue, sequer, controlar o sistema de circulação de automóveis – um mal que atinge todas as grandes cidades do mundo – que, segundo o personagem vivido por Danny Gloover, o velho da venda preta, foi solucionado apenas quando os habitantes, atingidos pela cegueira branca, não podiam mais dirigir seus automóveis. A mesma cegueira branca que, de outro lado, diante do desconhecido, criou maior violência e sentimento de insegurança e intensificou descrença na vida em comunidades.
O contraponto da metrópole impessoal foi retratado no filme “Truman: o show da vida”, dirigido por Peter Weir5 , onde uma cidade foi construída para ser o cenário de um programa de televisão onde atores convivem com um personagem que é assistido por todos desde o nascimento. Nesta cidade-cenário, todos os moradores são controlados por seus vizinhos e pelo diretor do show: não existem problemas, não existem surpresas, os passos estão todos roteirizados, as ações são programadas e todos vivem, aparentemente, felizes, sem sonhos e ambições, satisfeitos com o funcionamento de uma “cidade” semelhante a muitos pequenos aglomerados existentes no mundo. Lá, como diria Carlos Drummond de Andrade em seu poema “Cidadezinha qualquer”6 , a vida passa devagar diante de todos, sem sobressaltos, sem novidades, proporcionando, apenas, a monotonia.
Desde o século XIX, urbanistas, sociólogos, economistas e geógrafos discutem sobre a qualidade das cidades propondo modelos de desenvolvimento urbano para garantir a qualidade de vida nas cidades, metrópoles ou megacidades, com propostas de controle de seu crescimento que, em alguns casos leva a criação de um limite de população para o aglomerado urbano. Cidades utópicas bastante distantes das cidades vividas e experimentadas, que, segundo Eduardo Neira Alva, estarão sempre presentes no cotidiano de nossas vidas:
Seria impossível conceber um futuro sem cidades, mesmo quando a revolução das comunicações parece apontar para novas possibilidades de isolamento. O contato humano, o calor da multidão, as múltiplas possibilidades de encontros fortuitos e de aventura são valores insubstituíveis da vida metropolitana7 .
Neira Alva conclui que viver em metrópoles representa vantagens econômicas e sociais – oportunidades de emprego e de serviços – com custos ambientais – contaminação, estresse, violência. Sedução e perigo num único espaço, exigindo novas formas de organização para garantir sua sustentabilidade e deter a degradação ambiental.
A resposta para este conflito está, talvez, no cartaz de divulgação do filme Linha de passe: “a vida é o que você faz dela”, ou seja, as cidades, grandes ou pequenas, são resultados das relações interpessoais de seus habitantes e de sua relação com espaço, com seus edifícios, com seus lugares. Ou ainda, nos ensinamentos de Ítalo Calvino ao concluir seu livro Cidades Invisíveis, onde Marco Pólo descreve as cidades que percorreu até chegar na China, responde à Kublai Kan preocupado com a existência de “cidades infernais”:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir espaço.8
1 Silvia Helena Passarelli é Doutora em Arquitetura e Urbanismo, pós-doutoranda do Programa da Cátedra Celso Daniel de Gestão de Cidades da Universidade Metodista.
2 Produzido pela Vídeo Filmes (Brasil, 2008) e dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas.
4 Coprodução realizada no ano de 2008 por O2 Filmes (Brasil), Rhombus Media (Canadá) e Bee Vine Pictures (Japão).
5 Produzido pela Paramont Pictures (Estados Unidos da América, 1998).
6 Casas entre bananeiras / Mulheres entre laranjeiras / Pomar amor cantar. // Um Homem vai devagar / Um cachorro vai devagar / Um burro vai devagar. // Devagar... as janelas olham. // Eta vida besta, meu Deus (publicado no livro Alguma poesia, 1930).
7 Eduardo Neira Alva. Metrópoles (In)Sustentáveis. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 1997.
8 Ítalo Calvino. Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.