Reflexões sobre o conceito de política pública integrada
A questão que interessa discutir diz respeito às características de uma política pública integrada, entendendo-se que essa qualidade é aquela relacionada a integração, ou seja, “ação ou política que visa integrar em um grupo as minorias raciais, religiosas, sociais, etc” (AURELIO, 1998: 365). Nesse sentido, surgem vários caminhos para reflexão. Vamos analisar aquele que nos parece o mais adequado para uma compreensão mais abrangente de política pública integrada. Pensemos no contexto municipal e nas políticas públicas geradas no espaço das cidades brasileiras.
Nas cidades, há políticas que são setoriais como as de saúde, educação, habitação, transporte, etc e outras que são mais abrangentes como a lei do plano diretor participativo ou a lei do orçamento participativo. Há alguma diferença entre as políticas setoriais e as duas últimas do ponto de vista de serem integradas? Uma vez que as políticas setoriais discutem questões específicas, como as citadas acima. As políticas como a do plano diretor participativo ou do orçamento participativo são mais gerais, a primeira focando sobre a repartição do território da cidade ou município e a segunda priorizando a alocação das verbas da cidade. Afinal o que dá às políticas setoriais e àquelas mais gerais a qualidade de políticas públicas integradas? Que processos de construção e características de uma política pública possibilitam a ela ser integrada no sentido definido pelo Aurélio?
As políticas públicas direcionadas para as cidades são os programas, os projetos, as decisões estratégicas, as atividades governamentais que tenham como foco de trabalho a cidade. Todos os processos citados são construídos ao longo de várias fases, até tornarem-se uma política pública.
A fase da concepção de uma política pública surge a partir do embate de forças entre diferentes poderes existentes no território da cidade, o poder público (vereadores, prefeitos, secretários), o poder econômico (empresas que prestam serviços à prefeitura e outras empresas localizadas no espaço da cidade), o poder social, grupos da sociedade civil organizada, como movimentos populares, associações de bairro, sindicatos, etc e grupos de elite.
Os poderes nem sempre possuem os mesmos interesses e todos possuem direitos que, esperam, sejam reconhecidos pelos interlocutores. No embate de forças que gera uma política pública, as partes possuem diferentes interesses e buscam influenciar as outras partes sobre a legitimidade de seus direitos e satisfação de seus interesses. Os diversos interesses e direitos geram conflitos entre os grupos, negociações e consensos que vão definir o teor, abrangência, limites, justiça de uma determinada política pública.
Nessa fase da concepção, a integração se dá, na medida em que todas as partes envolvidas tenham a mesma força de imposição e negociação de seus interesses e direitos com as outras partes. A indagação que se faz aqui diz respeito à força da participação da sociedade civil organizada, por meio de grupos de pressão, para influenciar, nesse momento da concepção do processo, a ponto de conseguir inserir no mesmo, seus direitos e interesses. Qual a força da sociedade civil das cidades brasileiras, nos momentos de concepção de política públicas? O quanto essa sociedade está suficientemente consciente de seus direitos e mobilizada a ponto de exercer uma pressão semelhante às dos poderes político e econômico, conseguindo influenciar decisivamente sobre o conteúdo de uma determinada política pública? Uma concepção integrada de um projeto, processo, programa, decisão públicos seria aquela na qual todos os participantes da governança da cidade estivessem presentes e houvesse uma simetria de poder entre eles. Não estamos afirmando aqui que os poderes político e econômico possuem essa consciência dos seus direitos políticos para exigirem seu espaço no território da cidade. Eles barganham entre si benefícios sociais, financeiros, políticos, todos “regados” ou “temperados” pela força do dinheiro. Eles influenciam indivíduos e comunidades da cidade porque podem oferecer alguns benefícios a esses, baseados em seu poder financeiro. O poder político, muitas vezes, utiliza, indevidamente, as instituições e regras da esfera do Estado para oferecer ajudas e benefícios à população, de modo a construir com ela uma relação clientelista e autoritária que permite a eles perpetuarem-se no poder. A falta de consciência política não é um deficiência dos pobres e oprimidos, mas de um país e de todos, ou quase todos, os seus filhos.
Voltando à concepção da política pública, os poderes político e econômico entram na discussão trazendo como suporte a força de integrarem a esfera estatal da cidade (poder político) e a força do dinheiro (poder econômico) e o poder social, entra com o que? Deveria entrar com sua consciência política e sua capacidade de mobilização, daí a frase antiga que diz que “uma andorinha só não faz verão”. Quando a política pública é concebida com base nessa relação assimétrica entre os poderes, na qual um deles não possui representantes ou é representado apenas de um de seus atores sociais – as elites - o que ocorre na maior parte das vezes, o resultado é um programa, projeto, estratégia, decisão que não tem consistência, abrangência, é parcial, fragmentado e não integra nada, nem ninguém.
As políticas públicas fragmentadas, voltadas para a satisfação de interesses de pequenos grupos da elite ou econômicos, são geradas nesse contexto da barganha entre poder político e poder econômico e da influência manipuladora de ambos sobre a sociedade da cidade.
Num segundo momento, essa proposta, fruto do processo de concepção chega à agenda governamental e inicia-se uma outra fase da construção da política pública que é a fase da priorização daquele processo pelo poder executivo local, ou seja, ela passa pelos interesses e direitos políticos da Prefeitura. Nesse momento, aquilo que dá a essa priorização um caráter de integração entre o que é priorizado e os direitos e interesses coletivos é a presença da sociedade civil organizada, por meio de seus grupos de pressão, exigindo a priorização daquela política na agenda governamental. A capacidade de mobilização da sociedade civil é fundamental nesse momento, para influenciar na priorização de uma política pública que vá atender os interesses e direitos das minorias sociais e econômicas presentes no território da cidade.
Que critérios orientam a decisão sobre propostas a priorizar nas agendas de governo das prefeituras ? Os critérios são aqueles relacionados a possibilitar a justiça e a igualdade sociais na cidade? Ou são aqueles relacionados aos interesses das elites e do poder econômico local? Por outro lado, é comum nas cidades brasileiras, os grupos de pressão exigirem que esse ou aquele projeto, programa, decisão estratégicas sejam priorizados pela Prefeitura? São comuns grupos de pressão nas cidades do Grande ABC paulista, ou de Recife, ou ainda de Curitiba ou Dourados?
Finalmente, se priorizado, o projeto da política pública vai para a Câmara dos Vereadores para votação e, nessa instância, tudo depende dos interesses e direitos que a maioria dos vereadores eleitos representa. Os vereadores eleitos são, em sua maioria, representantes de quais grupos componentes da sociedade civil? Dos grupos minoritários? Dos movimentos populares? Ou representam as elites? O poder econômico local? Qual o compromisso dos vereadores eleitos?
A transformação de um projeto de lei de uma política pública em lei, política essa que atenda interesses dos movimentos populares, dos bairros de periferia, das comunidades pobres e portanto buscando a integração de direitos e interesses das minorias sociais e econômicas depende, nessa fase, da vontade política daqueles que possuem direito a voto na Câmara dos Vereadores.
Uma política pública integrada é aquela que traz em seu bojo as respostas, oportunidades e soluções que não visam os interesses e direitos das elites, poder político e poder econômico. A política pública integrada é aquela que considera os direitos, necessidades e interesses daqueles grupos que mais necessitam dela para sobreviver dignamente e, essa qualidade somente ocorre quando a sociedade civil se organiza e exige seus direitos no espaço público. A política pública integrada só existe quando a sociedade civil deixa de ter com o poder político da cidade uma relação de clientelismo e dependência que tem gerado, ao longo da história do Brasil, políticas públicas fragmentadas e voltadas aos interesses não das minorias sociais e econômicas mas dos pequenos grupos ligados ao poder econômico e às elites.
O que dá à política pública a qualidade de integrada são os seus processos de concepção e implementação que necessitam ser plenamente democráticos e participativos. Na concepção, possibilitando a voz de todos os poderes existentes na cidade, o embate e a negociação de diferentes interesses e direitos no espaço público. Na implementação, a presença e pressão da sociedade civil organizada para que seja priorizado e implementado. Essa é uma construção histórica e cultural que depende de muitos fatores para se consumar e tornar-se uma realidade no Brasil.
* Sivia Gattai é professora Mestre da Faculdade de Ciências Administrativas e Pesquisadora da Cátedra Gestão de Cidades da Universidade Metodista.