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Linha de Passe e Ensaio sobre a Cegueira: o insustentável peso da cidade

*Luiz Roberto Alves

A efetiva diversidade na economia cinematográfica não apaga a convergência da força crítica das duas obras: nada é sustentável na urbe tocada pelo modo de produção fundamentado pelo lucro. Quando o foco da criação estética é o sofrimento humano, presente sobremaneira nas cidades contemporâneas, revela-se aí que a história chega ao fim, via morte, desaparecimento, perda de visão, apagamento da memória, enfim o nada. No mínimo, o desencantamento.

Enquanto viceja a narrativa do ganho, do lucro, do hedonismo, das coisas chiques, tem-se uma sociedade ordenada, apolínea, desenvolvida, progressista. O advento das contradições, no entanto, desperta a vileza, o desejo e a prática do mal, tidos como remédio necessário à mudança do ritmo instituído e imposto. As sociedades dominadas pela desigualdade encenam a própria morte (e de fato causam mortes) para recuperarem as posições hegemônicas ameaçadas. Se a câmera ou o cenário focalizam o mundo dos pobres, “peneirados” no futebol da vida, no emprego miserável, na fé precária, não se pode esperar conseqüências boas. Não haverá saídas de acordo com a moral burguesa e dentro da normalidade. Isso não quer dizer que no interior da desigualdade não haja amor, desejos sinceros, solidariedade, aspirações genuínas. Talvez precisamente em razão do círculo da morte, vicejem linhas de vida, sinais da grandeza humana.

Enquanto Linha de Passe se organiza como uma sucessão metonímica de ações tendentes a construir a vida negada, Ensaio sobre a Cegueira produz um cenário metafórico, pois as individualidades são congeladas por uma força impostora que semeia o branco letal, as muitas cores que se tornam nenhuma, as diferenças que se enfileiram na mesmice e no horror. No entanto, metáforas e metonímias se alternam no movimento estético das obras. A ação opositiva e mesmo propositiva da pouca esperança que resta sob a cegueira e o nada engendra a dificultosa construção da mínima cidadania na cidade supostamente infectada. Aliás, são os infectados, precisamente, os autores do movimento de reconstrução do espaço humano no interior da devastação. Já em Linha de Passe, as prováveis metáforas do poder (sinalizadas por cartolas do futebol, pelas instituições patronais, pelas normas e costumes de Estado) estão dadas como totalidade inexpugnável, uma forma de cegueira coletiva e, no entanto, dentro da normalidade e da ordem. A metáfora vem antes das pessoas, como linguagem já constituinte e constituída, para a qual devem confluir as ações de todos e todas. Fora disso, a punição. Portanto, os movimentos do ser em busca de algum reencantamento do seu mundo não furam qualquer bloqueio das metáforas do poder instituídas e vão, sistematicamente, dissolvendo-se. A infração adolescente vista ao final do filme é a saída irônica, indevida, mas única, para aqueles que precisam enfiar-se na barriga da mãe-cidade e garantirem qualquer pertencimento, senão um esconderijo. Depois do nascimento, os pobres perambulam em busca de nova barriga acolhedora. A cidade parece ser esse lugar. Talvez a miragem, um espaço indeterminado e informe de cegueira no qual se tentam as mais tresloucadas ações. Assim, o discurso cinematográfico realista de Linha de Passe é mais devastador do que Ensaio sobre a Cegueira, o que se dá menos pela temática em si mesma do que pelos embates da “sociedade” desigual construída no interior da narrativa cinematográfica.

O cinema brasileiro compõe uma antiga linha de compromisso. Nos seus livros e suas aulas, o crítico e sociólogo Antonio Cândido sempre destacou que a arte brasileira perdeu em estética, mas ganhou em compromisso social. Foi, em verdade, uma arte construída ao modo de construção do Brasil, colonizado, escravista, bacharelesco, precário em educação e direitos humanos. De Machado de Assis a João Cabral de Melo Neto, do Teatro Oficina a certas expressões do Hip Hop, de Noel Rosa a Chico Buarque e Carolina de Jesus tem-se um conjunto de linguagens que expressa o drama humano e as vicissitudes culturais do país. Vale, pois, confrontar essa história literária com a história econômica e administrativa do Brasil, especialmente quando chegamos à mais refinada estetização do capital e dos lucros, com a vitória da linguagem econômica e sua imposição diante de todas as demais linguagens. Esse cenário globalizante e tendente a único no mundo força a representação de uma peça monocórdica, de poucos atores e muitos espectadores e telespectadores. O objetivo é claro e tem estado presente nas melhores obras das assessorias econômicas internacionais: trata-se de estetizar o todo pela parte, o coletivo pelo privado. A estetização é um momento privilegiado em que a “arte e a beleza”, concentradas em poucos gestos, passam a ser entendidas como de todos e todas. Os poucos comediantes tornam-se, então, uma espécie de soberanos, ídolos, stars.

Não há por que estranhar que a arte trabalhe com a violência e a monstruosidade. O domínio de poucos “artistas” sobre todos e todas, pretensos cidadãos e cidadãs, é a estetização da violência, a organização sistemática do mal. Portanto, a aparente normalidade é bem pior do que as metáforas e metonímias das artes, ainda que violentas. Estas se movem no interior das linguagens artísticas para que talvez possamos ver – e melhor, sentir – a institucionalização das cegueiras individuais e coletivas, das “peneiras” de crianças e jovens, da precariedade do trabalho e do abandono do bem-comum. Para a arte não há o impossível, que parece mais afeito ao coração das pessoas que não conseguem perceber que ficaram cegas e já não sentem que estão sendo peneiradas pelos poderes dominantes.


* Luiz Roberto Alves é professor e pesquisador na Universidade Metodista de São Paulo e na USP. Ex-secretário de Educação, Cultura e Esportes de São Bernardo e Mauá.

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