Cinema e Cidade: para pensar o que é público
Dossiê dos filmes:
Linha de Passe e Ensaio sobre a Cegueira
Por Cristiano Estanislau
O quê esses dois filmes têm a ver com o universo organizacional? Esta é uma pergunta que transcende nosso olhar simples de um mero espectador e que nos instiga a um olhar descentralizador que não inicia em nós e nem na busca da melhor vantagem competitiva entre as nações, entre as organizações, mas no outro. É um verdadeiro exercício do olhar que exige ir em busca de uma verdadeira consciência do que é o homem em si mesmo e daquilo que ele é capaz de realizar em seus extremos. Sendo assim, Linha de Passe não está preocupado em ser apenas mais uma crônica da luta de milhões de brasileiros em “sobre-viver”, uma mãe que se diz mãe e pai, criando quatro filhos com o quinto no ventre, torcedora fanática do Corinthians, moradores da zona Leste de São Paulo. Linha de Passe quer denunciar diante de nossos olhos a verdadeira face da metrópole excludente, onde ninguém tem tempo para se olhar, se perceber, mas todos estão correndo e se atropelando velozmente em busca de algo.
Podemos também analisar o filme sob a luz do conceito das relações inter-humanas de Buber (1979) “Eu e Você” e “Eu e Isto”. Para o autor a relação eu e você é a representação de uma atitude de reciprocidade, enquanto que eu e isto é a representação utilitária expressa por meio da submissão e da dominação. No aspecto micro cada personagem vive esta representação de Buber. Cleuza, a mãe, por mais que ela implore para sua “patroa” que releve sua gravidez, que a não dispense por este motivo, drama sofrido por várias mulheres ainda em nosso mundo do trabalho, sua patroa não consegue enxergar além da forma utilitária e acaba contratando outra em seu lugar. Dinho, o filho religioso, não consegue manter uma relação eu e você com o dono do posto onde trabalha. Seu patrão só enxerga nele mais um funcionário, que aceitou o emprego de frentista numa região de constantes assaltos. Mas tarde esta relação utilitária de eu e isto acaba se quebrando no momento de um assalto o posto e por falta de uma comunicação dialógica, de entendimento entre os pares. Dênis, o motoboy, reflete a linha tênue da precarização do trabalho. O conceito de eu e isto se aplica claramente neste personagem onde ele não passa de mais um capacete guiando duas rodas pela grande metrópole, se sujeitando a uma jornada de trabalho alucinante, que o faz ausente na criação do próprio filho, dependendo do número de entregas para sobreviver e ainda pagar a moto financiada e ajudar nas despesas com a criança. Dênis é o retrato do trabalhador de hoje que busca desesperado sair da pobreza sem cair no crime, mas que no final não acha alternativa em meio a este dilema, a não ser cair na tentação dos delitos. Dario, o aspirante a jogador de futebol, enxerga nas “peneiras de futebol” que não é o “dom”, mas sim o dinheiro que faz o jogador. Não é a relação recíproca que têm por objetivo a existência da vida, mas a relação utilitária de valer aquilo que se pode pagar. Por ultimo, o caçula Reginaldo, que busca o tempo todo a relação eu e você com sua mãe a fim de encontrar o seu pai. Porém, ele só consegue ter a relação eu e isto com sua ela no sentido de submissão, de aceitar ter somente esta mãe que é homem e mulher. Isto fica claro quando ela se refugia em estádios e bares para esconder sua feminilidade.
No aspecto macro esta família representa uma metonímia, a parte pelo todo, o indivíduo pela espécie ou classe, representa a periferia, os excluídos, os dominados, o povo brasileiro, que por mais que tenham sonhos, desejos, se vêem, se sentem impotentes diante das condições sociais que os mantêm sempre numa condição utilitária, numa condição de isto, de invisíveis, de párias diante dos donos do poder, do capital. Enfim, Linha de Passe, também nos dá condições para discutirmos a necessidade de se promover políticas sociais que visem o desenvolvimento. A necessidade de investimento na qualidade dos recursos humanos – educação, saúde e nutrição e nos valores sociais compartilhados a fim de quebrar o circulo vicioso da pobreza e da miséria. Entendendo que a responsabilidade de transformar a sociedade não deve estar somente nas mãos do Estado, mas deve incluir a participação do terceiro setor, empresas privadas e outros setores em conjunto, articulando a comunicação dialógica entre a economia e a ética, ou seja, uma representação de relação recíproca de “eu e tu”.
Já o filme Ensaio sobre a Cegueira caminha para uma metáfora da condição humana em seus extremos. O filme tem a intenção de mostrar que a sociedade civilizada é igual em qualquer parte do mundo independente da raça, cor ou nação, ou seja, é frágil a qualquer colapso urbano, seja ele uma epidemia ou econômico. O filme retrata uma eventual epidemia de cegueira branca, leitosa, que se alastra rapidamente entre a sociedade tecnologicamente avançada. Não há distinção de classe social, a doença nivela a todos. Os infectados são levados para espaços de quarentena que mais se parecem com campos de concentração. Todos os personagens não têm nomes, tem apenas um codinome, o médico oftalmologista, sua esposa, a garota de óculos escuro, o rei da ala 3. Isso chama atenção no fato que poderia ser qualquer um de nós a vivenciar aquela situação.
Dentro desses albergues de quarentena é onde praticamente se desenrola toda a trama do filme. A esposa do médico é a única que dentro do espaço consegue enxergar e que em solidariedade ajuda o marido, mas que depois começa ajudar a todos os infectados. Os infectados não param de chegar, as alas se dividem. O medico tenta manter sob controle a desumanização, a imundícia física e psicológica dos infectados. Mas o desespero, a falta de perspectiva leva um caos total. Até que uma ala da quarentena resolve dominar às outras, e mesmo cegos em uma situação deplorável passam a trocar comida por objetos de valor e depois exigem relações sexuais com as mulheres de outras alas, uma espécie de estupro coletivo. Aqui fica evidente a quebra dos conceitos morais e de dignidade humana para se enfrentar a violência, a corrupção e desejo de poder.
O fim do filme mostra a saída dos cegos da quarentena, não porque alguém os libertou, mas porque toda humanidade havia ficado cego, a passagem deles pelas ruas desoladas pela miséria humana, mostra o colapso total da sociedade, até que uma chuva forte vem e molha a todos, num ato que pode ser visto como a volta da esperança para a humanidade. Os cegos conduzidos para a residência do médico através de sua esposa, voltam a fazer planos para o futuro até que numa manhã um dos cegos passa a enxergar novamente trazendo esperança ao grupo.
Esta metáfora nos leva a refletir sobre a verdadeira cegueira humana e até onde somos capazes de enxergar. Seria a cegueira à capacidade das pessoas não se atentarem para aquilo ou o outro que passa ao seu redor? Enxergam mais não vêem? Como do falso cego que não quer ver que finge em ser cego para não encarar a realidade? É como na parábola do rei nu, que desfila entre seus súditos recebendo elogios pela sua linda roupa real. Como diz o ditado, o pior cego é aquele que não quer enxergar. Parafraseando a pior sociedade é aquela que não quer resolver seus problemas sociais. É o Estado, as empresa privadas que fingem não enxergar o ciclo vicioso da miséria, que fingem maquiar relatórios, que fingem ser éticas, fingem ter responsabilidade social, quanto que na verdade é a mera obrigação de cumprir com as leis, ou mera estratégia para agregar valor a seus produtos e serviços a fim de atrair mais consumidores.
É a cegueira humana que de uma forma sorrateira produz ou insere o regime totalitário na sociedade. Como no filme, um ala se intitula detentora do poder da vida, através do controle das refeições. Através da força produzida pelos seus seguidores chega a exigir literalmente que todos os subordinados, das demais alas, sejam dominados nos diversos aspectos da vida. Neste ponto central é que se tece a crítica a cegueira como ponto de partida para uma ideologia totalitária a favor da eliminação da espontaneidade em si do ser humano. O filme mostra que o poder no regime totalitário só pode ser alcançado e conservado em um sistema onde o ser humano é um ser supérfluo. Onde o castigo não é crime, a exploração não é lucro, o trabalho é realizado sem proveito e a insensatez é diariamente renovada (ARENDT, 2004). Contudo, quando refletimos esta metáfora da cegueira humana e a metonímia do Linha de Passe nas grandes corporações podemos perceber que suas metas não passam de um reflexo da forma de dominação totalitária que visa sistematizar a infinita pluralidade humana para que todos tenham uma única identidade. É a tentativa de criar um mundo fictício desraigado dos problemas sociais, das preocupações com o outro, onde o ser humano só tem duas escolhas: aceitar a dominação através da cegueira ou ser excluído da linha de passe, porque quem não está a favor é contra.
Referências:
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo – anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 562 p.
BUBER, Martin. Eu e tu. 2ª ed. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, 170 p.
Deu Branco!
“Caminhar na busca de recuperar o esquecido, de enxergar novamente o simples que, em nossa época, através do embotamento provocado pelo universo tecnológico, se tornou uma das tarefas mais difíceis”. (HEIDEGGER, 1981).
Tudo e nada! As duas faces de uma mesma moeda. Às vezes parece que se tem tudo, até que tudo se transforma em nada. A vida, a casa, o emprego, a família, os que vivem no entorno...No campo da arte o branco é a soma de todas as cores... De novo tudo e nada!
Sobram estímulos, falta significado e expressão, como se o dia a dia passasse em branco. Então um sentido falha...E a vida recomeça onde tudo parece que termina. O filme Ensaio sobre a Cegueira faz emergir em nós um universo de sensações, que ficarão submersas se não pudermos explorar e transformar em reflexões. Quero comentar apenas três impressões que me remete à tão conhecida psicopatologia da vida cotidiana: a impessoalidade, a ignorância e o individualismo, todos esses, aliás, sintomas de uma mesma doença, sobejamente atualizada em nós: a cegueira da alma.
Nova York, Tóquio, São Paulo, tanto faz quando há uma mancha urbana cobrindo o grande vazio do cosmo. A vida passa brevemente e nós não paramos por nada, o fast food impera. Outro dia em meio a um grande temporal, uma cidadã paulistana liga num renomado restaurante e faz uma reserva. Tempos depois o mesmo restaurante retorna a ligação para o seu trabalho e pergunta se é possível antecipar a sua chegada uma hora antes e também se uma hora seria suficiente para degustação do prato. É claro que a sua resposta foi tão indelicada quanto a pergunta: “se eu quisesse comer correndo eu teria procurado um fast food”.
Vivemos tão ensimesmados que não enxergamos um palmo além, não sentimos o gosto, o cheiro, a textura, mal sabemos que dia é hoje, se fez chuva ou se caiu o maior sol...Daí eclode uma pergunta que não quer calar: qual é a emergência, para onde vamos com tanta pressa, o que tem lá que está faltando aqui? Falta você, há excessos do eu, faltamos nós, o diálogo entre o aqui e o ali, faltam conexões, trocas, nomes, cores, faltam espaços de convivência, sobram conveniências! É desse mal-estar que se foge e seguimos sem ninguém, quem sabe para encontrar com alguém... Acolá!
O filme capta olhares distantes, presenças ausentes, o tédio da dona de casa tomando uma taça de vinho, sozinha, enquanto termina a louça do jantar que sequer foi identificado e saboreado. O consultório cheio de personagens que estão indiferentes a presença do outro, aguardando tão e somente a sua vez, pois é isso e só isso o que importa: a minha vez, o meu bem-estar. Convém ressaltar que sintomas como esses, assim como o da indiferença, apatia, falta, competição, se constituem em maneirismos deficientes de se relacionar no mundo.
É evidente que nesse estado último de ignorância e desprezo humano, a perda de uma sensibilidade passe a gerar outros rumos rimas e sentidos. Primeiro a presença passa a ser estritamente funcional, depois como a única maneira de ser e existir no mundo, dependendo profundamente um do outro, estabelecendo relações, envolvimento e compromisso com uma vida de mais sensibilidade solidária. Essa é uma competência humana que carecemos desenvolver.
No livro, Todos nós ninguém...um enfoque fenomenológico do social, de Heidegger, temos a dica de viver dia a dia no plano da solicitude, não esperando que algo ou alguém falte para que então a vida passe a fazer sentido. No entanto não podemos também esperar que a vida do próximo deixe de fazer sentido para que a nossa entre em cena e venhamos a ocupar os espaços vazios. Não faz sentido!!
Há muitos espaços em branco....Podemos ocupar os lugares junto com o outro, desatar o nó, fazer desabrochar o eu-tu-nós! Preencher o dia de hoje com experiências significantes...Buscar olhar para além do que o olhar capta...Perceber que a vida é significativa e cheia de pessoas significantes, esse é o mistério que almejamos desvelar. Pedir licença para conhecer e acolher a história de todos nós, afinal a nossa vida transcorre sempre entrelaçada com a vida de mais alguém.
Ser com os outros no mundo, é a característica fundamental e genuína, mais específica do ser humano, pois nos aproxima da humanidade e de nós mesmos com o que somos e sempre seremos. Podemos até esquecer, mas isso não muda a realidade de que você e eu somos essencialmente...gente.
Profa. Ângela Soares
Psicoterapeuta e Mestre em Psicologia da Saúde
Registros da vida urbana no cinema
Silvia Helena Passarelli1
São Paulo. 19 milhões de habitantes. 200 quilômetros diários de engarrafamento. 300 mil motoboys.
Esta é a introdução da sinopse do filme “Linha de Passe”2 exposta nas caixas dos DVD’s e nas peças de divulgação para a imprensa, assim como no site específico do filme3 dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas e lançado no ano de 2008. No filme, uma família da periferia de São Paulo, mais precisamente do bairro Cidade Líder, na Zona Leste, tenta vencer, sobreviver à brutalidade de uma cidade (idem). Porém, já no material de divulgação do filme, os produtores mostram que os personagens do filme vivem na metrópole, a maior da América Latina, uma das maiores do mundo com seus milhões de habitantes e muitos problemas de circulação, segurança, o lugar pobre onde se compartilha o pouco que se tem, como diz o personagem Dinho, interpretado por José Geraldo Rodrigues.
A cidade/metrópole do filme é impessoal, violenta, insegura; seus moradores são apenas números contabilizados em estatísticas, sem sonhos ou anseios. É somente nas ruas da Cidade Líder, onde os personagens principais moram que, mesmo em uma família desestruturada, eles têm nome e apelido, eles são reconhecidos por seus vizinhos e familiares, eles sentem carinho e segurança: no meio da metrópole eles são, apenas, números do registro geral de identificação do documento que temos em nossas carteiras. Solitários e desorientados em meio de milhões de habitantes e transeuntes.
Aliás, apenas para aquele pequeno grupo retratado no filme o lugar, o bairro onde eles vivem tem importância: em uma cena do filme, o personagem vivido por Vinicius de Oliveira, Dario, ao se inscrever para um teste, para uma peneira para entrar no futebol profissional afirma que mora da Cidade Líder, local desconhecido pelo responsável da inscrição que parece preferir anotar na ficha de inscrição o nome da cidade, São Paulo, pouco se importando com o lugar de onde o personagem veio.
Esta mesma metrópole fria e impessoal é registrada em muitos outros filmes, mas em “Ensaio sobre a Cegueira”4 , filme dirigido por Fernando Meirelles baseado no romance de mesmo nome de José Saramago, ela parece ser mais fria e impessoal. No filme de Fernando Meirelles, a cidade e os personagens não têm nome, e para que o espectador fique tão espacialmente desorientado como os personagens do filme atingidos pela cegueira branca, o cenário mostrado é resultado de imagens captadas em três diferentes metrópoles: São Paulo, Tóquio e Montreal. Fernando Meirelles superou os limites de uma metrópole e nos apresenta em seu filme uma única megametrópole que parece ter ocupado todo o território do planeta.
Tal qual a cidade retratada em “Linha de Passe”, a megametrópole de “Ensaio sobre a Cegueira” é caótica e insegura, local onde sentimentos humanos como egoísmo, oportunismo e indiferença se sobrepõem às relações de amizade e solidariedade, sentimentos estes que só se manifestaram plenamente quando os personagens principais se refugiam na casa do médico e se isolam do caos e da doença. E parece ser estes sentimentos de carinho, aconchego e afeto, vivenciados na casa do médico, que trazem de volta a saúde, e a visão.
A cidade impessoal de Fernando Meirelles é suja e agressiva, é terra de ninguém diante da doença que atinge a todos, inclusive à burocracia estatal que não consegue, sequer, controlar o sistema de circulação de automóveis – um mal que atinge todas as grandes cidades do mundo – que, segundo o personagem vivido por Danny Gloover, o velho da venda preta, foi solucionado apenas quando os habitantes, atingidos pela cegueira branca, não podiam mais dirigir seus automóveis. A mesma cegueira branca que, de outro lado, diante do desconhecido, criou maior violência e sentimento de insegurança e intensificou descrença na vida em comunidades.
O contraponto da metrópole impessoal foi retratado no filme “Truman: o show da vida”, dirigido por Peter Weir5 , onde uma cidade foi construída para ser o cenário de um programa de televisão onde atores convivem com um personagem que é assistido por todos desde o nascimento. Nesta cidade-cenário, todos os moradores são controlados por seus vizinhos e pelo diretor do show: não existem problemas, não existem surpresas, os passos estão todos roteirizados, as ações são programadas e todos vivem, aparentemente, felizes, sem sonhos e ambições, satisfeitos com o funcionamento de uma “cidade” semelhante a muitos pequenos aglomerados existentes no mundo. Lá, como diria Carlos Drummond de Andrade em seu poema “Cidadezinha qualquer”6 , a vida passa devagar diante de todos, sem sobressaltos, sem novidades, proporcionando, apenas, a monotonia.
Desde o século XIX, urbanistas, sociólogos, economistas e geógrafos discutem sobre a qualidade das cidades propondo modelos de desenvolvimento urbano para garantir a qualidade de vida nas cidades, metrópoles ou megacidades, com propostas de controle de seu crescimento que, em alguns casos leva a criação de um limite de população para o aglomerado urbano. Cidades utópicas bastante distantes das cidades vividas e experimentadas, que, segundo Eduardo Neira Alva, estarão sempre presentes no cotidiano de nossas vidas:
Seria impossível conceber um futuro sem cidades, mesmo quando a revolução das comunicações parece apontar para novas possibilidades de isolamento. O contato humano, o calor da multidão, as múltiplas possibilidades de encontros fortuitos e de aventura são valores insubstituíveis da vida metropolitana7 .
Neira Alva conclui que viver em metrópoles representa vantagens econômicas e sociais – oportunidades de emprego e de serviços – com custos ambientais – contaminação, estresse, violência. Sedução e perigo num único espaço, exigindo novas formas de organização para garantir sua sustentabilidade e deter a degradação ambiental.
A resposta para este conflito está, talvez, no cartaz de divulgação do filme Linha de passe: “a vida é o que você faz dela”, ou seja, as cidades, grandes ou pequenas, são resultados das relações interpessoais de seus habitantes e de sua relação com espaço, com seus edifícios, com seus lugares. Ou ainda, nos ensinamentos de Ítalo Calvino ao concluir seu livro Cidades Invisíveis, onde Marco Pólo descreve as cidades que percorreu até chegar na China, responde à Kublai Kan preocupado com a existência de “cidades infernais”:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir espaço.8
A ESTÉTICA DO ESPELHO SENSÍVEL
Citações Urbanas em “Linha de Passe” e “Ensaio sobre a Cegueira”
Dalmo de Oliveira Souza e Silva
Umesp- Cátedra gestão de Cidades
Faculdade de Comunicação
Debruçado sobre fonte, Narciso sacia a sede: sua imagem já não é “outra”, ela é sua própria superfície que o absorve, que o seduz, de forma que ele pode apenas aproximar-se sem nunca passar além dela, pois ele só existe além na medida da distância reflexiva entre ele e ela. O espelho d´água não é uma superfície de reflexão mas uma superfície de absorção.
Jean Baudrillard.
Tal como o “espelho d´água” de Narciso, a imagem da cidade surge como uma superfície que absorve os indivíduos em duas produções cinematográficas recentes: Linha de Passe (com direção de Walter Salles e Daniela Thomas) e Ensaio sobre a Cegueira (romance adaptado de José Saramago, com direção de Fernando Meirelles). Os filmes de 2008 apresentam o contexto delicado dos relacionamentos humanos imersos na estética das grandes metrópoles. Despertam o olhar ao “outro” – a questão da identidade e da alteridade – e, acima de tudo, à reciprocidade nas relações permeadas pelas condições proporcionadas pela urbanidade. São duas narrativas de linguagens distintas mas que se relacionam, se imbricam criando um único discurso o homem e a cidade.
Em Linha de Passe, Cleuza, uma empregada doméstica, é a chefe de uma família de quatro filhos que perseguem sonhos: Dênis, o filho mais velho, é pai involuntariamente e trabalha como motoboy; Dário, perto de completar 18
anos, esforça-se para jogar futebol profissionalmente; Dinho, frentista, refugia-se em uma fé fervorosa e, por último, Reginaldo, o caçula, é oúnico negro e procura seu pai com obstinação de ônibus em ônibus pela cidade de São Paulo. Cleuza está grávida pela quinta vez e pretende criar o bebê como criou os outros – sem a figura do pai.
Essas personagens habitam a periferia de São Paulo e evocam em suas histórias temas urbanos, tais como: o desemprego, a ausência da figura paterna nas famílias atuais; a busca por identidade; as transformações religiosas e a luta por ascensão social, através do futebol (aspiração de muitos meninos pobres nas periferias brasileiras).
Os quatro irmãos e sua mãe estão marcados pelo laço da família. Centram as atenções na narrativa cinematográfica e nos remetem à grande maioria da população do Brasil que tenta escapar da pobreza através do subemprego, da redenção da fé evangélica e do desejo de reconhecimento pelo futebol. Eles nos dizem o quanto é difícil a vida nas grandes cidades para os despossuídos e como, em certos momentos, isso pode levar ao crime e ao sofrimento.
É a busca frenética, desenfreada tratada sob o gênero do drama em que o prazer fugaz e imediato de cada personagem tenta concentra-se em seu próprio esforço de desejos e aspirações .Todos estão juntos na casa e na cidade, mas divididos com seus corações esburacados, como escreve Frei Beto em “ veredas perdidas da pós modernidade’’ angustiados e apenas marcados pela poética de estar vivos.
Já Ensaio sobre a Cegueira traz a humanidade diante de uma epidemia misteriosa que provoca cegueira “leitosa”. Um homem perde a visão de um instante para o outro, sem razões aparentes, enquanto está no trânsito de sua casa para o trabalho. A partir daí, uma a uma, cada pessoa com quem esse homem tem contato mergulha na mesma “névoa branca”, espalhando a cegueira pela cidade. As vítimas da “cegueira branca” são trancafiadas, sob quarentena, em um hospício em condições subumanas. Nesse local, uma única pessoa ainda tem sua visão intacta: uma mulher que finge estar cega porque deseja acompanhar seu marido. Essa mulher será a líder de uma família improvisada de sete pessoas que sairá em jornada pela cidade arrasada pela epidemia.
As cenas de Ensaio sobre a Cegueira trazem uma cidade não identificada, mas sem dúvida, é uma grande metrópole – armada com o trânsito incontrolável, serviços estatais e rede de relacionamentos sociais intensos e impessoais. Contudo, a história apresenta uma reflexão sobre a natureza humana, nos seus mais completos aspectos, envolvendo sentimentos, tais como: egoísmo, oportunismo, indiferença, comoção e, sobretudo, capacidade de se identificar e se compadecer com a dor do “outro”. No enredo, a cegueira destruiu o que antes era chamado de “civilização”, mas também, fez surgir uma profunda humanidade nos que são obrigados a confiar uns nos outros quando seus sentidos físicos são falhos em razão da deficiência visual. A metáfora do“brilho branco” faz emergir as percepções das personagens principais para seu desenvolvimento espiritual e sua dignidade.
Linha de Passe e Ensaio sobre a Cegueira aproximam-se em suas temáticas.Salientam a linguagem de uma estética, por meio de uma elaborada seleção de fotografia, luz tênue e difusa, frames que captura a identidade dos personagens e os aspectos que marcam a fisionomia da realidade urbana. Apresentam, metaforicamente, viadutos que sangram e cortam o território da cidade. Às vezes, mostram uma cidade que perdeu a identidade, sendo apenas um espaço geográfico de disputa simbólica. Um lugar intrinsecamente marcado pela idéia de transeuntes constantes, sem pontos de saída ou de chegada.
A estética da cidade está presente nos dois filmes, como pano de fundo das relações humanas. No primeiro, reconhece-se a cidade. São Paulo aparece em sua magnitude (nos aspectos feios e bonitos; nas grandezas e nas“picuinhas”). Reconhecemos as ruas e avenidas rasgadas pelo motoboy; conhecemos os trajetos dos ônibus urbanos de Reginaldo e identificamos o bairro periférico da família de Cleuza; uma periferia qualquer numa cidade qualquer.O desenho é o mesmo, è a cartografia em que o sujo, o feio e longe ressaltam as diferenças que povoam a cidade. No segundo, então, a cidade é “imaginária”, mas isso não quer dizer que não seja o modelo da grande estrutura urbana que estamos habituados. Além disso, o cotidiano desse espaço nos faz compreender que estamos na metrópole (Lembrem-se o primeiro atacado pela cegueira está no trânsito – típico da urbanidade).
Outra afinidade entre os dois filmes reside na liderança da mulher em grupos nucleares. Em Linha de Passe, a figura da mulher como “arrimo de família” já é um dado estatístico bastante conhecido da realidade brasileira e em constante ascensão. A figura paterna, gradativamente, desaparece desses lares, especialmente, nos de menores rendas. As condições econômicas podem explicar essa perda na composição familiar, mas não é tudo. Lembremos que Dênis às duras penas tenta ser pai, a “velha potencialidade masculina” também está em jogo. Em Ensaio sobre a Cegueira, uma mulher (a única não contagiada) toma à frente de uma família “improvisada” – não há laços de sangue entre eles; o que une aquelas pessoas é o sentimento de solidariedade e a confiança que necessitam ter uns nos outros.
Por fim, os dois filmes apresentam, sob diferentes perspectivas, a busca da identidade dos indivíduos imersa nas relações sociais e, sobretudo, nas relações mediadas pela estética do espaço urbano. A cidade absorve essas personagens que têm como grande diferencial o “olhar dirigido ao outro”. As narrativas cinematográficas nos chamam à reflexão, indicam a permanente construção e reconstrução do ambiente urbano e, acima de tudo, alertam para os sentimentos de humanidade. Os filmes nos dizem que todos estão absorvidos pela cidade, como espelho sensível da realidade que nos cerca.
No que se refere às citações urbanas, a cidade é o cenário das mais variadas ações produtoras de cultura e ordenadora da qualidade de vida das populações. Esse pensamento tem adquirido, cada vez mais, significado no debate político-social que cerca o cotidiano das grandes metrópoles. Esse novo conceito de cidade vem abrindo espaço para reflexões em muitas áreas do conhecimento: na estética, na ética e na política. Não é mais admissível que o traçado urbano seja modelado apenas por princípios econômicos ou funcionais. Questões que envolvam a cultura, a ética e o bem estar geral do cidadão, hoje, são de alta relevância para a organização das cidades.
Assim, a trama que envolve essas duas produções cinematográficas é construída sob o céu da cidade e suas redes de relacionamentos, de tessitura e de conflitos. Nesse ponto, deve-se assinalar a afirmação de Jorge Willheim: (...) as ações humanas de urbanização incidem sobre um sítio natural, com sua topografia, ..., assegura que a paisagem resultante da atividade do homem é a correta tradução da vida de uma cidade (...).9 As intervenções culturais reafirmam a identidade de cada localidade. É por intermédio das manifestações culturais que os indivíduos se identificam coletivamente e esses grupos se relacionam de forma a modificar essas citações urbanas.
Nossos personagens desfilam sobre as lentes de uma linguagem cinematográfica e procuram, de um certo modo, materializar em seus comportamentos e atitudes na representação de uma cidade como cenário marcado pela ausência do olhar – como Narciso que è seduzido pela sua própria imagem mergulhando na profundezas do espelho sensível da urbis.
Referências Bibliográficas:
ALVES, Rubem. A utilidade e o prazer: um conflito educacional. In: DUARTE
JÚNIOR, João-Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, Uberlândia: Universidade de Uberlândia, 1981, p.10
.
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Rio de Janeiro:
DP&A, 2005.
HAUSER, A. História social da literatura e da arte, São Paulo: Mestre Jou,
1972, v. II.
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. O olhar que suspende o relógio. In: Itaú
Cultural revista eletrônica, São Paulo: Itaú Cultural, 1998.
1 Silvia Helena Passarelli é Doutora em Arquitetura e Urbanismo, pós-doutoranda do Programa da Cátedra Celso Daniel de Gestão de Cidades da Universidade Metodista.
2 Produzido pela Vídeo Filmes (Brasil, 2008) e dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas.
3 http://www.paramountpictures.com.br/linhadepasse.
4 Coprodução realizada no ano de 2008 por O2 Filmes (Brasil), Rhombus Media (Canadá) e Bee Vine Pictures (Japão).
5 Produzido pela Paramont Pictures (Estados Unidos da América, 1998).
6 Casas entre bananeiras / Mulheres entre laranjeiras / Pomar amor cantar. // Um Homem vai devagar / Um cachorro vai devagar / Um burro vai devagar. // Devagar... as janelas olham. // Eta vida besta, meu Deus (publicado no livro Alguma poesia, 1930).
7 Eduardo Neira Alva. Metrópoles (In)Sustentáveis. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 1997.
8 Ítalo Calvino. Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
9 WILHEIM, Jorge (coord.). Intervenções na Paisagem Urbana de São Paulo. Disponível em www.uol.com.br/dimenstein/gilberto/pa.rtf. Acesso em 24 de março de 2009.