A estética do espelho sensível
Citações Urbanas em “Linha de Passe” e “Ensaio sobre a Cegueira”
Dalmo de Oliveira Souza e Silva
Umesp- Cátedra gestão de Cidades
Faculdade de Comunicação
Debruçado sobre fonte, Narciso sacia a sede: sua imagem já não é “outra”, ela é sua própria superfície que o absorve, que o seduz, de forma que ele pode apenas aproximar-se sem nunca passar além dela, pois ele só existe além na medida da distância reflexiva entre ele e ela. O espelho d´água não é uma superfície de reflexão mas uma superfície de absorção.
Jean Baudrillard.
Tal como o “espelho d´água” de Narciso, a imagem da cidade surge como uma
superfície que absorve os indivíduos em duas produções cinematográficas
recentes: Linha de Passe (com direção de Walter Salles e Daniela Thomas) e Ensaio sobre a Cegueira (romance adaptado de José Saramago, com direção de
Fernando Meirelles). Os filmes de 2008 apresentam o contexto delicado dos
relacionamentos humanos imersos na estética das grandes metrópoles.
Despertam o olhar ao “outro” – a questão da identidade e da alteridade –
e, acima de tudo, à reciprocidade nas relações permeadas pelas condições
proporcionadas pela urbanidade. São duas narrativas de linguagens distintas
mas que se relacionam, se imbricam criando um único discurso o homem e a
cidade.
Em Linha de Passe, Cleuza, uma empregada doméstica, é a chefe de uma
família de quatro filhos que perseguem sonhos: Dênis, o filho mais velho, é pai
involuntariamente e trabalha como motoboy; Dário, perto de completar 18
anos, esforça-se para jogar futebol profissionalmente; Dinho, frentista,
refugia-se em uma fé fervorosa e, por último, Reginaldo, o caçula, é oúnico negro e procura seu pai com obstinação de ônibus em ônibus pela cidade de
São Paulo. Cleuza está grávida pela quinta vez e pretende criar o bebê
como criou os outros – sem a figura do pai.
Essas personagens habitam a periferia de São Paulo e evocam em suas
histórias temas urbanos, tais como: o desemprego, a ausência da figura
paterna nas famílias atuais; a busca por identidade; as transformações
religiosas e a luta por ascensão social, através do futebol (aspiração de
muitos meninos pobres nas periferias brasileiras).
Os quatro irmãos e sua mãe estão marcados pelo laço da família. Centram as
atenções na narrativa cinematográfica e nos remetem à grande maioria da
população do Brasil que tenta escapar da pobreza através do subemprego, da
redenção da fé evangélica e do desejo de reconhecimento pelo futebol. Eles
nos dizem o quanto é difícil a vida nas grandes cidades para os despossuídos e como, em certos momentos, isso pode levar ao crime e ao sofrimento. É a busca frenética, desenfreada tratada sob o gênero do drama em que o prazer fugaz e imediato de cada personagem tenta concentra-se em seu próprio
esforço de desejos e aspirações .Todos estão juntos na casa e na cidade,
mas divididos com seus corações esburacados, como escreve Frei Beto em “ veredas
perdidas da pós modernidade’’ angustiados e apenas marcados pela poética
de estar vivos.
Já Ensaio sobre a Cegueira traz a humanidade diante de uma epidemia
misteriosa que provoca cegueira “leitosa”. Um homem perde a visão de um
instante para o outro, sem razões aparentes, enquanto está no trânsito de
sua casa para o trabalho. A partir daí, uma a uma, cada pessoa com quem
esse homem tem contato mergulha na mesma “névoa branca”, espalhando a cegueira
pela cidade. As vítimas da “cegueira branca” são trancafiadas, sob
quarentena, em um hospício em condições subumanas. Nesse local, uma única
pessoa ainda tem sua visão intacta: uma mulher que finge estar cega porque
deseja acompanhar seu marido. Essa mulher será a líder de uma família
improvisada de sete pessoas que sairá em jornada pela cidade arrasada pela
epidemia.
As cenas de Ensaio sobre a Cegueira trazem uma cidade não identificada,
mas sem dúvida, é uma grande metrópole – armada com o trânsito incontrolável,
serviços estatais e rede de relacionamentos sociais intensos e impessoais.
Contudo, a história apresenta uma reflexão sobre a natureza humana, nos
seus mais completos aspectos, envolvendo sentimentos, tais como: egoísmo,
oportunismo, indiferença, comoção e, sobretudo, capacidade de se
identificar e se compadecer com a dor do “outro”. No enredo, a cegueira destruiu o que
antes era chamado de “civilização”, mas também, fez surgir uma profunda
humanidade nos que são obrigados a confiar uns nos outros quando seus
sentidos físicos são falhos em razão da deficiência visual. A metáfora do“brilho branco” faz emergir as percepções das personagens principais para
seu desenvolvimento espiritual e sua dignidade.
Linha de Passe e Ensaio sobre a Cegueira aproximam-se em suas temáticas.
Salientam a linguagem de uma estética, por meio de uma elaborada seleção
de fotografia, luz tênue e difusa, frames que captura a identidade dos
personagens e os aspectos que marcam a fisionomia da realidade urbana.
Apresentam, metaforicamente, viadutos que sangram e cortam o território da
cidade. Às vezes, mostram uma cidade que perdeu a identidade, sendo apenas
um espaço geográfico de disputa simbólica. Um lugar intrinsecamente marcado pela idéia de transeuntes constantes, sem pontos de saída ou de chegada.
A estética da cidade está presente nos dois filmes, como pano de fundo
das relações humanas. No primeiro, reconhece-se a cidade. São Paulo aparece
em sua magnitude (nos aspectos feios e bonitos; nas grandezas e nas “picuinhas”). Reconhecemos as ruas e avenidas rasgadas pelo motoboy;
conhecemos os trajetos dos ônibus urbanos de Reginaldo e identificamos o
bairro periférico da família de Cleuza; uma periferia qualquer numa cidade
qualquer.O desenho é o mesmo, è a cartografia em que o sujo, o feio e
longe ressaltam as diferenças que povoam a cidade. No segundo, então, a cidade é“imaginária”, mas isso não quer dizer que não seja o modelo da grande
estrutura urbana que estamos habituados. Além disso, o cotidiano desse
espaço nos faz compreender que estamos na metrópole (Lembrem-se o primeiro
atacado pela cegueira está no trânsito – típico da urbanidade).
Outra afinidade entre os dois filmes reside na liderança da mulher em
grupos nucleares. Em Linha de Passe, a figura da mulher como “arrimo de família”
já é um dado estatístico bastante conhecido da realidade brasileira e em
constante ascensão. A figura paterna, gradativamente, desaparece desses
lares, especialmente, nos de menores rendas. As condições econômicas podem
explicar essa perda na composição familiar, mas não é tudo. Lembremos que
Dênis às duras penas tenta ser pai, a “velha potencialidade masculina”
também está em jogo. Em Ensaio sobre a Cegueira, uma mulher (a única não
contagiada) toma à frente de uma família “improvisada” – não há laços de
sangue entre eles; o que une aquelas pessoas é o sentimento de
solidariedade e a confiança que necessitam ter uns nos outros.
Por fim, os dois filmes apresentam, sob diferentes perspectivas, a busca
da identidade dos indivíduos imersa nas relações sociais e, sobretudo, nas relações mediadas pela estética do espaço urbano. A cidade absorve
essas personagens que têm como grande diferencial o “olhar dirigido ao outro”.
As narrativas cinematográficas nos chamam à reflexão, indicam a permanente
construção e reconstrução do ambiente urbano e, acima de tudo, alertam
para os sentimentos de humanidade. Os filmes nos dizem que todos estão
absorvidos pela cidade, como espelho sensível da realidade que nos cerca.
No que se refere às citações urbanas, a cidade é o cenário das mais variadas ações produtoras de cultura e ordenadora da qualidade de vida das populações. Esse pensamento tem adquirido, cada vez mais, significado no debate político-social que cerca o cotidiano das grandes metrópoles. Esse novo conceito de cidade vem abrindo espaço para reflexões em muitas áreas do conhecimento: na estética, na ética e na política. Não é mais admissível que o traçado urbano seja modelado apenas por princípios econômicos ou funcionais. Questões que envolvam a cultura, a ética e o bem estar geral do cidadão, hoje, são de alta relevância para a organização das cidades.
Assim, a trama que envolve essas duas produções cinematográficas é construída sob o céu da cidade e suas redes de relacionamentos, de tessitura e de conflitos. Nesse ponto, deve-se assinalar a afirmação de Jorge Willheim: (...) as ações humanas de urbanização incidem sobre um sítio natural, com sua topografia, ..., assegura que a paisagem resultante da atividade do homem é a correta tradução da vida de uma cidade (...).1 As intervenções culturais reafirmam a identidade de cada localidade. É por intermédio das manifestações culturais que os indivíduos se identificam coletivamente e esses grupos se relacionam de forma a modificar essas citações urbanas.
Nossos personagens desfilam sobre as lentes de uma linguagem cinematográfica e procuram, de um certo modo, materializar em seus comportamentos e atitudes na representação de uma cidade como cenário marcado pela ausência do olhar – como Narciso que è seduzido pela sua própria imagem mergulhando na profundezas do espelho sensível da urbis.
Referências Bibliográficas:
ALVES, Rubem. A utilidade e o prazer: um conflito educacional. In: DUARTE
JÚNIOR, João-Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, Uberlândia: Universidade de Uberlândia, 1981, p.10.
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Rio de Janeiro:
DP&A, 2005.
HAUSER, A. História social da literatura e da arte, São Paulo: Mestre Jou,
1972, v. II.
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. O olhar que suspende o relógio. In: Itaú
Cultural revista eletrônica, São Paulo: Itaú Cultural, 1998.
1 WILHEIM, Jorge (coord.). Intervenções na Paisagem Urbana de São Paulo. Disponível em www.uol.com.br/dimenstein/gilberto/pa.rtf. Acesso em 24 de março de 2009.