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Xingu: construção do indigenismo no Brasil e culturas e terras roubadas

A luta dos irmãos Villas Bôas pela preservação da “população brasileira original” não foi compreendida ou aceita

19/06/2015 12h05 - última modificação 23/06/2015 16h27

Orlando Villas Bôas Filho - Foto: Marcello Ferreira

“Essa terra já tem dono”. A frase foi citada diversas vezes pelos irmãos Villas Bôas, Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo (1918-1961), diante de políticos, militares e governantes, enquanto desbravavam o interior do Brasil. A ocasião era o início da década de 1940, quando os irmãos sertanistas estabeleceram contatos com povos indígenas ao entrarem em terras até então desconhecidas, no período que o País caminhava rumo a ocupação do território nacional.

O contexto em que o Brasil estava inserido nesta época, segundo explica Orlando Villas Bôas Filho, era durante a Segunda Guerra Mundial e sua capital era o Rio de Janeiro. “Ainda era (o Brasil) um país litorâneo, não havia propriamente ocupado o seu território e era pressionado externamente por essa ocupação. Era contestado pela sua soberania nacional, por não ocupar a totalidade territorial que lhe pertencia”, diz o filho do sertanista Orlando Villas Bôas.

Foi nesta condição que o então presidente da República, Getúlio Vargas, estabeleceu a “Marcha para o Oeste”, um projeto amplo de colonização no País. “Este projeto não tinha preocupação nenhuma com a questão indígena, não figurava em sua agenda original, era simplesmente de colonização para garantir a soberania brasileira”, conta Orlando Filho.

A questão indígena só teve atenção por causa do “espírito aventureiro” de três paulistas do interior, que, depois de se mudarem para a cidade de São Paulo, “sentiam-se deslocados no cotidiano de seus trabalhos, sem um horizonte definitivo sobre o que queriam fazer. A Marcha para o Oeste estava no começo e era amplamente divulgada pela imprensa. Meu pai e meus tios tentaram se engajar, mas foram recusados no alistamento. O articulador do projeto, o coronel Flaviano de Mattos Vanique, não queria gente da cidade, mas pessoas que já trabalhavam com a terra”.

Onde há fumaça, há fogo

A partir da recusa, os três irmãos usaram da criatividade e deixaram a barba crescer, vestiram roupas simples e sujas de terra, procurando meios de se passarem por sertanejos. A ideia, por mais improvável que parecesse, deu certo e o trio enfim se integrou à Marcha e conseguiu enxergar “novos horizontes” e expectativas. “Eles começaram a adentrar o território que até então era absolutamente inocupado pela sociedade brasileira e meu pai relata que eles viram, distante, fumaça na floresta. E, obviamente, eles supuseram que se havia fogo, alguém pôs esse fogo lá e evidentemente, uma vez que era um território não ocupado, só podia ser população indígena”.

Da esquerda para a direita: Orlando, Leonardo e Cláudio

Os irmãos Villas Bôas. Da esquerda para a direita: Orlando, Leonardo e Cláudio


A Expedição Roncador, na qual os Villas Bôas estavam engajados na Marcha, era de uma frente militar e a orientação institucional não mencionava questões de preservação ao índio, apenas colonização. Assim que reportada a presença de índios na região, o coronel chefe da expedição solicitou ao governo de Goiás esforços para “limpar o caminho”. “Isso significava tirar o índio como ‘obstáculo’ deste processo de avanço. Meu pai, ciente disso, escreveu uma carta para o marechal Rondon contando os planos da expedição. Rondon mandou suspender a frente militar e em uma espécie de ‘punição’ por conta desta suspensão, meu pai e meus tios foram incumbidos de assumir a expedição, como quem diz: já que a frente militar não vai avançar, avancem vocês e se virem com os índios que encontrarão. E então, eles mobilizaram a Expedição Roncador-Xingu e adentraram o território indígena”.

Orlando Filho lembra que marechal Rondon, em 1910, criou o primeiro Serviço de Proteção ao Índio (SPI) no Brasil, mas que também era um serviço de localização do trabalhador para exercer a ocupação do interior do País. Apenas em 1918 é que o serviço passa a ser exclusivamente de proteção ao índio e, em 1967, foi substituído pelo que é a atual Fundação Nacional de Proteção ao Índio (FUNAI). Por estes trâmites de Rondon é que Orlando Villas Bôas recorreu ao chefe militar.

Retornando à expedição, o primeiro território indígena encontrado pelos irmãos sertanistas foi o Xavante. “Eles foram atacados 18 vezes pelos xavantes neste período. Os índios pararam de atacá-los quando perceberam que a expedição estava em trânsito. Enquanto eles achavam que aquele grupo tinha a intenção de se instalar naquela terra eles atacavam, até notarem que não era essa a intenção”.

A expedição prosseguiu com seu roteiro e, em 1946, chegaram à região de formação do rio Xingu, onde tiveram os primeiros contatos com as populações indígenas daquele local. “Os contatos foram amistosos e eles foram introduzidos na região pelos próprios índios, que passaram a vê-los como aliados, como amigos”.

Os donos da terra

Os sertanistas começaram a contatar diversas comunidades e buscaram um novo argumento. “Eles tentaram sensibilizar o governo de que a soberania do País seria garantida não pela colonização, mas pela posse dos índios, da terra que já os pertencia. A tentativa foi mudar o desenho institucional do projeto original, que era o de colonização. A partir do contato com os índios, a ideia seria de que o território não era vazio. Portanto, a nossa soberania se garantiria em virtude da população indígena brasileira já ocupar esse território”.

É claro que a argumentação não foi recebida facilmente desta forma e nem mesmo integralmente como proposto, caso contrário, teríamos todo o Mato Grosso e parte do Pará habitado exclusivamente por povos indígenas. Na verdade, os índios começavam a perder terras.

Parque Nacional do Xingu

A partir do argumento dos irmãos Villas Bôas, todo um projeto de defesa - que não se concentrou apenas neles, mas em uma série de pessoas, como Darcy Ribeiro, que foi quem de fato redigiu o projeto, o médico Noel Nutels e outras instituições, missionários, antropólogos e médicos - foi elaborado e resultou na ideia de compor uma reserva, que foi implementada em 1961, o Parque Nacional do Xingu.

“O Parque do Xingu é um projeto paradigmático na América como um todo. Até então, o que encontrávamos como reservas indígenas no Brasil eram pequenas glebas, porque a ideia que se tinha, era de que o índio era uma figura transitória, então não era necessário garantir a ele uma extensão ampla de terra, porque ele se integraria à sociedade brasileira como trabalhador rural. Essa ideologia até então vigente, e que era do Rondon, partia da premissa de que o indígena se incorporaria ao que se chamava de ‘comunhão nacional’. O índio se ‘transformaria’ em cidadão brasileiro e integraria o extrato do trabalho rural”.

Com o contato e a vivência entre os povos indígenas, o objetivo dos sertanistas e do grupo agora a eles associado, era mudar essa visão, passar a fazer perceber que o índio não é uma entidade transitória, mas sim portador de uma cultura que deveria receber o respaldo do Estado brasileiro, no que se refere à sua proteção. Então o parque surgiu como uma grande reserva, do tamanho da Bélgica, com 28 mil quilômetros quadrados.

“Mas o desenho original era muito maior. O projeto inicial não foi todo contemplado, ele incluía todas as nascentes do rio Xingu, o que se tivesse sido implementado, teria garantido aos índios, hoje, uma proteção muito maior. As nascentes estão fora do Parque e são poluídas pelas grandes empresas agropecuárias que o rodeiam atualmente. Esse é um problema ecológico sério, que compromete a subsistência atual dos povos que habitam em torno do Alto Xingu”.

Interesses, contraponto e zoológico humano

Ainda segundo Orlando Filho, o projeto original do Parque do Xingu tinha uma dimensão de preservação ecológica e de salvaguarda da população indígena. “Há uma frase curiosa, que dizia que o projeto era uma tentativa de ‘guardar para as gerações futuras um retrato do Brasil triste’. O Parque preservaria, diante de uma colonização predatória, a região em questão”.

Porém, nem todos entendiam o projeto desta forma, ou não faziam questão de compreendê-lo. “O Parque não se implementou como se pretendia, mas como uma ampla reserva. Mesmo assim, ele somente foi implementado com um decreto. Como ele sempre contrariou interesses muito fortes de caráter econômico e político, nunca passou pelo Congresso, foi por meio de um decreto de Jânio Quadros (Decreto nº 50.455, de 14/04/1961), no curto período que esteve na presidência do Brasil”. A demarcação final do Parque foi estabelecida pelo no Decreto nº 68.909, de 13/07/1971, assinado pelo então presidente Emílio Médici.

Até os dias de hoje o Parque continua contrariando esses interesses. Mas ainda na década de 1970, durante o regime militar, cresce essa visão de que era um obstáculo. “Ele era visto como um empecilho ao ‘milagre econômico’ brasileiro. Era visto como algo que atravancava o projeto de integração nacional que o governo brasileiro passou a implementar naquele período”.

Foi neste momento que a FUNAI passou a ser administrada pelos militares. A política indigenista brasileira passou a ser subalterna ao interesse de desenvolvimentismo do governo. “Então, a gente começa a encontrar uma contradição de interesses muito presentes na agenda da política brasileira, em relação ao que o País realmente pretendia desenvolver. É justamente neste contexto que a política indigenista que vinham desenvolvendo desde 1940 ganhava um papel mais forte de contraponto, porque a partir dos anos 1970 o governo pretende desenvolver o que passou a ser chamado de ‘integracionismo’, ou seja, a ideia de que os índios deveriam rapidamente ser integrados à sociedade brasileira, para ajudarem no processo de integração nacional de desenvolvimento”.

Naquela época havia um discurso de não aceitação do arcaísmo da população indígena em uma sociedade que estava se modernizando, mas ninguém afirma se era de fato uma visão progressista ou simplesmente uma forma de justificar outros interesses.

“Muitos militares se referiam ao Xingu como um zoológico humano, como se os índios não tivessem cultura própria e estivessem sendo colocados em uma situação de primitivismo em relação à sociedade, sendo tolhidos da modernidade que o Brasil vinha adquirindo. Então a política indigenista se configurou como contraponto à política oficial, que era de progresso”.

Progresso que trouxe decadência

A mobilização por debates, movimentos e lutas pela preservação do Parque do Xingu continuou, sobretudo na década de 1970, quando surgiu toda essa contradição entre as duas políticas. O Parque também começou a correr mais riscos de violação e invasões de suas fronteiras, o que acontece até hoje.

Um dos pontos altos dessa violação foi a inserção da BR-080, que atravessou o Parque, alterando a forma de vida ali, principalmente das comunidades que habitavam a região do norte, chamada Baixo Xingu, mais especificamente os índios Raoni, que tiveram o território destacado do Parque, em virtude desse avanço.

Um dos trechos da fronteira do Parque do Xingu com área agrícola, no Mato Grosso


“Nesse contexto dos anos 1970, acontece algo também trágico, que envolve duas populações importantes, expressivas numericamente, mas que sofreram um decréscimo enorme. Uma delas são os índios Caiabi, que já tinham um contato com colonizadores já há mais tempo, que começaram a ser escravizados no garimpo e depois foram levados maciçamente para o Parque do Xingu. O Parque figurou como uma região de reserva, de refúgio, para que os índios pudessem se rearticular, sem a violação do contato com a sociedade”.

A outra população a que Orlando Filho se refere é a dos Krenakarore, ou Panará, os chamados índios gigantes. “Os krenakarores foram a última comunidade a ser contatada pelo meu pai e meu tio Cláudio e a ser levada para o Xingu. A Transamazônica também havia atravessado a região deles.”

Os krenakarores tiveram um contato preliminar com Orlando e Cláudio (Leonardo havia falecido em 1961), mas os sertanistas tinham uma política de que o contato com esta população deveria ser feito quando fosse imprescindível. “O contato é problemático, ele leva doença, desarticula a estrutura social da comunidade. O contato introduz necessidades até então inexistentes naquela sociedade. A ideia era preservar o máximo possível os krenakarores em sua estrutura social e cultural original”.

Villas Bôas Filho explica que seu pai e seu tio fizeram o contato com esses povos, porque eles ficaram ameaçados pela exposição progressiva da Transamazônica. “A rodovia passou próxima a região desses povos e levou a tuberculose. Os krenakarores experimentaram um grande decréscimo. Elas eram mais de 600 indivíduos e em um espaço de aproximadamente um ano, decaíram para 74. Parte desse decréscimo também foi pelo fato de começarem a se prostituir na beira da estrada e serem levados pela bebida. Os 74 remanescentes foram levados ao Parque. Esta foi a última atuação mais expressiva do meu pai e meu tio.”

O filho de Orlando ainda conta que esses índios não se adaptaram bem à nova terra. “Eles ficaram 20 anos no Xingu e nunca se adaptaram, pois eles foram transferidos para um local onde tinham certa inimizade com as comunidades de lá. Foi um período tenso para eles. Então, em 1994, eles entraram com uma ação de reintegração, pois já tinham conquistado esse direito, de um território semelhante ao que tinham no passado, onde ainda havia, próximo à região que viviam antes, uma área com certa preservação e conseguiram voltar. Isso foi um marco na rearticulação de uma população indígena e mostra muito do caráter frutífero dessa política de preservação implementada no Parque do Xingu”.

O Parque Nacional do Xingu, hoje chamado Parque Indígena do Xingu, continua como uma reserva para rearticulação dos povos que lá habitam e recebe diversos projetos e profissionais, que apoiam a preservação ecológica, da saúde e da cultura indígena. É dividido em três partes: uma região ao norte (Baixo Xingu), a região central (Médio Xingu) e a região ao sul (Alto Xingu). Reúne aproximadamente 5.500 índios de 14 etnias diferentes. Também continua sofrendo constantes ameaças e invasões de suas fronteiras, pela exploração agropecuária e demais ações de interesses políticos e econômicos.


Esta matéria foi produzida com base nos relatos do jurista e professor Orlando Villas Bôas Filho, em sua participação na 15ª Mostra de Produção Acadêmica do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo.

Filme indicado:
Xingu (assista ao trailer abaixo)



Livros indicados:
Orlando Villas Bôas e a construção do indigenismo no Brasil – Orlando Villas Bôas Filho (Org.), Editora Mackenzie.

A Marcha para o Oeste: a epopeia da expedição Roncador-Xingu – Orlando e Cláudio Villas Bôas (baseado em seus diários), Companhia das Letras.


Esta matéria foi publicada no Jornal da Metodista.
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