Dia da Consciência Negra: momento de reafirmar o direito à diferença
19/11/2015 13h30 - última modificação 19/11/2015 15h12
"A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram."
Salmo 85.10
A escravidão é uma vilania nojenta, um escândalo (...) para a humanidade. Fico chocado quando um homem, por ser negro, é enganado ou atacado por um branco e não pode se defender… Vá em nome de Deus e no poder do Seu Espírito, para que a escravidão (...) seja banida para sempre. (John Wesley, em 1790).
No prefácio de “Pele negra máscaras brancas” de Frantz Fanon, Lewis Gordon argumenta que nos estudos sobre a questão do negro há uma exigência neurótica, a de que estes estudos seriam sem conflitos se existisse o acordo neurótico de que o negro não existe. Este acordo parece que persiste na sociedade brasileira e se constitui em um dos embates fundamentais do movimento negro contemporâneo na luta contra o racismo e suas manifestações ardilosas.
Partindo desta premissa é fundamental reafirmar a existência da mulher e do homem negro como sujeitos de direito e também do racismo enfrentando cotidianamente por esta população. A afirmação da existência do negro se constitui em uma forma de insurgência contra os processos que geram a invisibilidade social e a estigmatização dos afrodescendentes.
É inegável que a questão racial é um componente a ser considerado nas relações sociais no Brasil. Conforme Florestan Fernandes: “As relações raciais herdadas do colonialismo se perpetuaram com suas principais características, mantendo o negro e o mulato numa situação social desalentadora, iníqua e desumana”. Ao encobrir a violência escandalosa das relações raciais e a iniquidade do racismo é imposta à população negra uma dupla punição: a sua negação enquanto sujeito (obrigação de “embranquecer” para ser aceito) e a opressão resultante destas relações sociais.
Como afirma Frantz Fanon, os afrodescendentes não devem ser colocados diante do dilema: branquear ou desaparecer. Diante desta questão é que se manifesta a luta pelo direito de existirem como negros e negras, reafirmando sua condição sujeitos de direito e rompendo com as práticas racistas que estão presentes na sociedade e os ardis da estigmatização que colabora para a construção racista do negro como inferior.
Neste sentido, o “dia da consciência negra”, é um momento de reafirmar o direito à diferença, o direito de expressar livremente seu modo de ver o mundo. Contudo, é importante destacar aos afrodescendentes foi negado o seu direito de existir como pessoa negra, de expressar sua cultura, e até mesmo o modo como deixa seu cabelo.
Há mais de cinco séculos a população negra no Brasil luta por libertação, emancipação e direito de existirem como negros e negras, de expressar sua consciência livremente. A luta também é pela história e a memória, que ao longo de séculos foi silenciada, manipulada e alterada.
É necessário reconhecer que na história, que nos foi ensinada, houve um verdadeiro "padrão de manipulação”. Primeiro omitindo os fatos e personagens relevantes na luta e resistência dos negros (Luiz Gama, João Cândido, Luíza Mahin, etc.); segundo fragmentando a história, contando-a em partes, ignorando os contextos a as formas de resistência; e por fim encobrindo as práticas cotidianas do racismo, insistindo na noção de “democracia racial”.
Em uma reflexão criteriosa da história, vamos observar que a resistência e as mais diferentes formas de luta foram uma constante entre os negros e negras escravizadas.
A resistência de Luíza Mahin (1812) contra o escravismo é sem dúvida um exemplo a ser reconhecido na luta dos negros e negras escravizadas. Luíza Mahin era uma africana livre, pequena comerciante, militante da causa negra e expressiva abolicionista. Foi uma das principais lideranças da Revolta do Malês (1835), que teve como objetivo libertar os negros escravizados em Salvador. Em 1837 participou da Sabinada e teve que fugir às pressas para o Rio de Janeiro onde deu continuidade à luta, sendo presa em 1838 após organizar manifestações pelo fim da escravidão. Desapareceu no Rio de janeiro sem deixar vestígios.
Soma-se à luta de Luíza Mahin a de seu filho Luiz Gama (1830) que, como sua mãe, resistiu à opressão da ordem escravista. Ele foi vendido por seu pai aos 10 anos de idade e mantido como escravo até os 18 anos, quando provou que a sua venda havia sido cercada de ilegalidades. A partir daí sua luta contra a escravidão não teve fim, tornou-se um advogado sem diploma (um rábula) e seguiu advogando e libertando negros e negras, arrecadando dinheiro para alforriar os seus “clientes”, criando o Centro Abolicionista e travando uma árdua disputa jurídica em defesa dos negros até sua morte em 1882.
O movimento negro brasileiro possui uma longa trajetória de lutas e resistências que atravessaram os tempos, garantindo entre fluxos e refluxos o alargamento da cidadania de toda população brasileira. Em 2010 foi promulgada uma lei que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial (Lei Nº 12.288), que tem como objetivo dar garantias aos afro-brasileiros para a “efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”.
A lei não representa o fim de uma luta, mas parte de um processo que se efetiva a partir de um movimento que compreende a solidariedade, a justiça e o direito como princípios para todas as pessoas sem distinção.
Toda luta por cidadania e direitos humanos é a expressão e o desejo do encontro da misericórdia com a verdade e a esperança de ver o beijo da justiça e do direito.
Referências:
• BENEDITO, Mouzar. Luiz Gama: o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza Mahin. São Paulo: Expressão Popular, (Col. Viva o povo brasileiro), 2006.
• FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
• FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. (Volume 1 – Ensaio de interpretação sociológica). São Paulo: Globo, 2008.
• GOHN, Maria da Glória. História dos movimentos e lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola, 2003.