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Crescimento não gerou novo patamar social no Brasil, concluem estudiosos de Direitos Humanos

19/09/2014 18h25 - última modificação 20/10/2014 13h23

 

A onda de prosperidade da primeira década do milênio, que resultou em redução da desigualdade e da pobreza a partir do aumento do poder aquisitivo e do consumo, não foi suficiente para consolidar no Brasil um novo patamar social.

A ascensão de classes menos privilegiadas sofreu vários fatores limitantes, entre os quais a baixa qualidade e remuneração da maioria dos empregos criados, além da incapacidade de os governos melhorarem os serviços públicos. Isso explica os protestos de junho de 2013, por exemplo, e a insatisfação latente com os não-avanços na luta pela igualdade econômica, de status, gênero e raça.

Foi esse o consenso que pautou a V Semana de Educação em Direitos Humanos da Universidade Metodista, este ano adotando como tema de reflexão “Direitos Humanos no Mundo do Trabalho”, dias 16, 17 e 18 de setembro. Os três palestrantes concluíram que a melhoria da renda das classes C/D e as políticas públicas contra a miséria não foram suficientes para sustentar a mobilidade social, já que a crise econômica dos últimos três anos eliminou aqueles ganhos.

Precarização da existência     

O professor da Unesp-Marília e estudioso da precarização do mundo do trabalho, Giovanni Alves, vai mais longe e entende que não só baixos salários comprometem a dignidade humana. Ele define como “precarização existencial” o atual estágio da humanidade. Esse cenário decorre de um somatório de pontos que estariam desintegrando o ser humano: vida caótica das metrópoles, trânsito, estresse pela pressão no trabalho, redução das relações sociais com a falta de espaços públicos de convivência, manuseio da mídia por meio de informações de baixa qualidade e até mesmo o controle da tecnologia: “Estamos manipulados pelo celular, redes sociais e todo tipo de tela e imagens cheias de fetiche”, afirmou.

Chamando o período atual de neodesenvolvimentismo, Giovanni Alves citou que a grande contradição é que o país melhorou economicamente nos anos 2000-2010, mas persistiu a precarização do trabalho por meio do crescimento da terceirização e dos contratos flexíveis que retiram benefícios trabalhistas históricos, além da remuneração de acordo com metas de tarefas. “O modelo atual de trabalho em equipe não precisa do chefe: o próprio colega cobra desempenho do grupo”, ironizou, ao falar sobre “Precarização do Trabalho, Direitos Humanos e Neodesenvolvimentismo no Brasil”. A seu ver, o novo desenvolvimento do país não cessou a precarização do trabalho porque não rompeu com a acumulação capitalista do neoliberalismo.

Protestos de junho          

No segundo dia de debates, o professor Ruy Braga historiou como os protestos de junho de 2013 provocaram grande mudança de rumo na aprovação do governo Dilma Roussef e extravasaram, a seu ver, uma indignação até então contida da população com a qualidade da gestão pública. O mestre e professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo discorda de que faltou objetividade nas manifestações. Enxergou na difusão dos temas reivindicados uma luta pela universalização de direitos das classes menos favorecidas. “Foi diferente dos protestos corporativistas dos médicos contra colegas cubanos do programa Mais Médicos”, interpreta.

Para Ruy Braga, tudo ficou diferente de junho para cá porque os estimados 8,5 milhões de brasileiros que foram às ruas naquele mês colocaram em jogo dois pontos tidos como referência positiva para o governo: a transferência de 40 milhões de pessoas para a classe média e a criação recorde de empregos. Isso teria mudado a estrutura social do País. “Houve uma massa que melhorou de vida, teve mais acesso à educação, mas encontrou empregos que pagam mal, continuou morando na periferia e a usar transporte público de péssima qualidade”, discorreu na palestra cujo tema foi “Trabalho, Precariedade e Direitos da Cidadania: Uma Interpretação da Nova Conjuntura Brasileira Pós-Junho”.

Os protestos adotaram como lema “padrão FIFA” para serviços públicos porque criaram uma nova cultura de cobrança dos governantes. “Não foi só contra os políticos, mas por uma nova estrutura social no Brasil com acesso a bons empregos e serviços públicos de qualidade, e continuidade de conquistas que a crise econômica a partir de 2012 ameaça retirar”, defendeu Ruy Braga, cujos estudos indicaram que 34% dos protestantes no Rio de Janeiro, por exemplo, ganhavam até um salário mínimo. O inusitado é que 10% recebiam acima de 11 salários mínimos, “gente da outra ponta, indignada com a ascensão da classe D e C que passou a andar de avião e a frequentar shoppings”, citou. Foram esses dois opostos que derrubaram os 69% de aprovação do governo Dilma para 30% após junho e a aprovação pessoal da presidente de 79% para 35%, enumerou o professor.

Noé e os bichos                     

No primeiro dia de exposições, o professor Marcus Orione, também da USP, falou sobre a perda da capacidade da Justiça, mais especificamente dos juízes, de atender às expectativas da sociedade. Falta aos magistrados ter a percepção do outro, a seu ver, ou seja, colocarem-se no lugar de quem está sob a espada da Justiça, antes de darem suas sentenças. Ele chama a isso de ética da alteridade. “Juiz se coloca como autoridade e nem sempre se põe na pele de quem é julgado”, afirmou, ao discorrer sobre “Direitos Humanos, Trabalho, Raça, Gênero e Sexualidade: Para Além do Discurso da Alteridade”.

Ele próprio um juiz federal, Marcus Orione entende que a estrutura normativa da Constituição e de leis complementares cujo escopo é proteger o cidadão, na verdade, não tem alcance de uma proteção justa. Tudo estaria resumido a quais leis se aplicam às situações dos autos. “Como eu, um homem, de cor branca e certo status social, posso punir uma mulher negra, pobre, discriminada no meio de trabalho, sem entender o contexto em que ela vive?”, questionou, criticando a pouca qualidade sensitiva dos juízes ao se aterem apenas à comprovação de fatos dentro de um processo civil ou penal. “Entre o que está codificado e a ética de uma sociedade discriminada, fico com a ética”, disse.

O professor da USP, que atua principalmente nas áreas de direito previdenciário, direitos sociais e análise crítica dos direitos humanos à luz do marxismo, afirma que os próprios magistrados praticam preconceito e discriminação. Citou sentença em que um juiz do Tribunal Superior do Trabalho negou procedência à queixa de um trabalhador rural transportado junto a porcos e estrume: “Se a boleia do veículo é segura para animais, também o é para seres humanos. Noé conviveu naturalmente com bichos em sua arca”, sentenciou a autoridade.

A V Semana de Educação em Direitos Humanos foi organizada pelo Núcleo de Educação em Direitos Humanos da Faculdade de Humanidades e Direito. A programação envolveu ainda a mostra fotográfica "Trabalho em Perspectivas" e a exposição "Origem do Movimento Operário no Brasil". Outra agenda paralela versou sobre o curso “Trabalho e Dignidade Humana” sob as visões da psicologia da saúde, o papel da mídia nessa promoção, a precarização do trabalho e a (des)humanização.

 

 

 

Esta matéria foi publicada no Jornal da Metodista.
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