Jordânia - Hesbom[1]
O nome
Hesbom (hexbon < hxb?) é o nome da cidade moabita que teria sido capital de Seom, rei dos amorreus, quando este conquistara toda a terra de Moabe, e contra a qual o povo de Israel, a caminho de Canaã, lutara e prevalecera (Nm 21,21-24; Dt 2,24-35 e Js 9,10; 12,2-5). O verbo hxb, do qual hexbon talvez seja derivada) significa “contar”, “considerar”, “ter por valioso”, “considerar”.[2]
Localização
Localizada na atual Jordânia, Hesbom está próxima do entroncamento da atual estrada que liga Amã à Jerusalém. Trata-se do antigo território de Moabe, mais especificamente a fronteira entre Moabe e Amon, ocupado durante certo tempo pela tribo de Gad. Situa-se à nordeste do norte do Mar Morto, 19 km ao sudoeste de Amã, na margem da planície de Moabe.
Hesbom bíblica
Antes de passarmos aos registros de tempos bíblicos sobre Hesbom, cabe aqui a tabulação dos períodos arqueológicos aos quais faremos referência:[3]
O episódio da derrota de Seom em Hesbom (supostamente ocorrido entre 1250-1200 (Idade do Bronze posterior) foi lembrado pelos gibeonitas quando pediram para fazer uma aliança com Josué. Mais adiante Seom consta na lista do redator deuteronomista como um dos reis derrotados por Israel em Canaã (Js 12,2):
“seus servos vieram de uma terra muito distante por causa da fama do Senhor, o seu Deus. Pois ouvimos falar de tudo no Egito... Seom, rei de Hesbom” (Js 9,10).
Na partilha das terras na Transjordânia, Hesbom fora ocupada por Gad e Rubem. O texto bíblico a menciona ora como território de Rubem e Gad ora como território apenas de Gad e teria sido concedida aos filhos de Merari (da tribo de Levi) como cidade de refúgio:
“à tribo de Rubem... todo o planalto de Medeba até Hesbom e todas as suas cidades no planalto” (Js 13,10-17; 26-27),
“da tribo de Gade: ...cidade de refúgio dos acusados de homicídio, Maanaim, Hesbom e Jazar” (Js 21,39).
Entretanto, durante o tribalismo, período da sedentarização de Israel em Canaã (1200-1000 - Idade do Bronze posterior e Ferro I), Hesbom aparece sendo disputada entre o rei de Amom e Jefté, o juiz gileadita de Israel. O rei amonita cobrava a devolução das terras e a resposta de Jefté denota uma ocupação do lugar por Israel muito anterior ao período do êxodo:
“durante trezentos anos Israel ocupou Hesbom, Aroer, os povoados ao redor e todas as cidades às margens do Arnon. Por que não os reconquistaste todo este tempo?” Jz 11,26).[4]
A literatura profética judaíta, desde o 8º século (Idade do Ferro II) se reporta a Hesbom como um lugar bonito, de abundância de vinho, jardins suspensos e muita alegria nas festas comunitárias e lagares por ocasião da colheita das uvas. Um vinho de qualidade superior era produzido ali, mas a cidade experimentou desolação, destruição e choro.
“É que os terraços cultivados de Hesbom definham, bem como os vinhedos de Sábama, cujas uvas vermelhas subjugavam os príncipes das nações. Chegavam até Jazer, espalhavam-se pelo deserto... choro juntamente com Jazer o vinhedo de Sábama; rego-te com as minhas lágrimas, Hesbom e a ti Eleale, pois que caiu o grito das tuas colheitas e das tuas ceifas. O contentamento e a alegria dos teus vergéis desapareceram, nos teus vinhedos já não há canções alegres nem gritos de júbilo; já não há quem pise o vinho no lagar, os gritos alegres cessaram.” (Is 16,8-11)
Também no 8º século esta mesma ou uma outra devastação é anunciada por Jeremias:
“Hesbom e Eleale levantam um clamor... Eis porque os soldados de Moabe se sentem vacilantes, a sua alma está vacilante diante do que ocorre. O seu coração geme por Moabe.” (Is 15,4-5)
“Já não existe fama em Moabe! Em Hesbom eles tramaram a desgraça contra ela.” (Jr 48,2-3)
“Desapareceram a alegria e o contentamento das vinhas e da terra de Moabe. Eu acabei com o vinho dos lagares, o pisoeiro não pisa mais, não ressoa mais o grito de alegria. Os gritos de Hesbom e de Eleale vão até Jasa... porque mesmo as águas de Nemrim estão destinadas à desolação.” (Jr 48,33-34)
A torá, acabada durante o pós-exílio (465-400 - Período persa), a partir da memória popular que perpetuou tal tradição estabelece a cidade de Hesbom como uma espécie de recompensa de Javé. Israel pedira permissão para passar por Hesbom, mas Seom não concedera. Sob a palavra de Javé, marcharam contra ela e prevaleceram. A tradição do Deuteronômio possivelmente foi a responsável pela memória deste fato, sendo fonte para os outros relatos da torá.
“Hesbom era, com efeito, a capital de Seon, rei dos amorreus. Foi Seon que fez querra ao primeiro rei de Moabe e lhe tomou toda a sua terra até o Arnon. Por isso dizem os poetas: Vinde a Hesbom, seja ela reconstruída, seja restabelecida a cidade de Seon! Um fogo saiu de Hesbom, uma chama da cidade de Seon e devorou Ar Moab... Ai de ti Moab!... A sua posteridade foi destruída desde Hesbom até Dibon, e destruímos pelo fogo desde Nofe até Medaba” (Nm 21,25-22,1, veja mais outras referências a este fato: Dt 1,4; 2,24-30; 3,2-6; 4,46; 29,7; Ne 9,22).
Trata-se aqui da memória teológico-histórica normativa que vincula esta cidade moabita ao território de Israel, mas durante a monarquia (1000-722) não encontramos menção de Hesbom na literatura histórica ou profética deste período. Sabemos que Moabe foi um reino subjugado a Israel na época de Salomão, mas que, com o desmembramento das tribos, recuperou sua autonomia política durante o reino dividido.
Durante o período helênico (3º século) a literatura sapiencial se reporta a Hesbom como um lugar de águas límpidas e piscinas. Já historiografia cronista recupera a memória de Hesbom como cidade de refúgio (1Crônicas 6,81):
“teu pescoço, uma torre de marfim, teus olhos, as piscinas de Hesbom junto às portas de Bat- Rabin” (Cântico 7,5).
O que já se descobriu na arqueologia sobre a Hesbom bíblica?
Nelson Glueck explorou a região por volta de 1930 e concluiu que houve pouca ou nenhuma ocupação na parte sul da atual Jordânia (Edom e Moabe), durante o Bronze Médio e Tardio. Os moabitas e edomitas teriam chegado à região do mesmo modo que os israelitas, e basicamente na mesma época. Eles teriam estabelecido monarquias efetivas, construído cidades fortificadas e fortalezas para resguardar seus limites.
Perseguindo a “ressurreição” da Hesbom bíblica projetos consecutivos da Universidade Andrews começaram a atuar na região a partir de 1968 com Siegfried Horn. Havia a suspeita de que um território de 202.342 m2 à 24 km de Amã deveria ter sido a localização da cidade bíblica. S.Horn queria provar a existência de uma grande capital conforme registrado no livro de Números, cobiçada pelo amorrita Seom e digna de uma guerra de tamanhas proporções. Cria-se, até então, que o Bronze Tardio tinha sido realmente o período de intensa ocupação da região. Mas isto gerou uma grande frustração nos primeiros pesquisadores.
Nenhuma evidência arqueológica pôde comprovar a ocupação de tamanho porte ou mesmo a destruição indicada no texto bíblico. Os locais escavados demonstravam que qualquer assentamento em Tell Hesbom daquele período teria sido bem pequeno, muito diferente do que uma capital deveria ser.
Lawrence Geraty perseguiu os ideais de S.Horn, mas os esforços empreendidos continuavam decepcionando os pesquisadores quanto ao tamanho da Hesbom bíblica.
Explorações conduzidas por Max Miller, em 1980, constataram problemas na tese de N.Glueck. Descobriu-se que havia muito pouca evidência de monarquia ou fortificações de fronteira durante o período do Bronze. As fortificações mais significativas eram todas da Idade do Ferro. Knauf sugere que, no Bronze Tardio e princípio do Ferro, Moab e Edom eram nomes de territórios habitados por grupos tribais com estes nomes. A região se tornou estado apenas a partir do Ferro II.
Se, por um lado, Tell Hesbom se mostrava frustrante para os estudos da Idade do Bronze, por outro lado era uma ‘mina de ouro’ para períodos posteriores como o dos hasmoneus (150-63), princípio do período romano (63 aec-165 ec) e também para o período bizantino (330-650 ec). Considerou-se então a necessidade de se descartar Tell Hesban como a Hesbom bíblica e iniciar novos esforços para descobrir uma cidade das supostas proporções em algum lugar próximo dali.
Sucedendo Geraty, Oystrein La Bianca foi o encarregado desta nova empreitada em 1982, acompanhado por Larry Herr. Esta nova arrancada conseguiu descobrir novos tells que tinham maior probabilidade de serem a procurada Hesbom.
Por exemplo, Tell Jalul, à 8 km ao sul de Tell Hesbom e diretamente ao oriente de Madaba apresenta maior concordância com a descrição da Hesbom de Seom. Um outro sítio na fronteira norte de Madaba também teve ocupação relevante no final da Idade do Bronze e durante a Idade do Ferro. Ele fora descoberto em 1984 e chama-se Tell el-‘Umeiri, com cerca de 44.515 m2 na parte ocidental (9,6 km ao sul de Amã, próximo ao aeroporto).
Os projetos originais de escavação da região transformaram-se num projeto amplo e multidisciplinar, de importância capital para a memória histórica da Jordânia. O projeto se chama Madaba Plain e em suas diversas ‘edições’ (a última em 2001) gerou um grande campo de trabalho, que tem sido concorrido não apenas por arqueólogos mas por antropólogos, educadores.
Este projeto veio a mudar a concepção de arqueologia na Jordânia. Compreende 155 sítios dentro de 10 km em cada direção ao redor de Tell Hesban. Eles estão assim distribuídos: Bronze anterior: 46 sítios, Bronze intermediário: 7 sítios, Bronze médio: 14 sítios; Bronze posterior/tardio: 6 sítios, Ferro II: 63 sítios, helenístico: 21 sítios, romano: 93 sítios, Período Bizantino: 126 sítios.
A região também tem sido trabalhada por Stephen Savage através do projeto Moab Archaeological Resource Survey/MARS realizado pela Universidade do Estado do Arizona em parceria com o West Semitic Research Project e a Walla Walla College em Washington.
Concluindo, podemos dizer que, no período ao qual a narrativa bíblica se reporta, a Hesbom como uma grande capital, ainda não havia ocupação do território suficiente para tal associação. Uma cidade nesta proporção é coerente com o período do Ferro, quando os moabitas se emanciparam, deixando de ser reinos vassalos de Israel. Foi a literatura pós-exílica da torá que atribui a Hesbom um tamanho e uma importância de tal grandeza, uma vez que é um texto normativo da teologia e história de Israel. Contudo o lugar é lembrado pelo profetismo como um lugar de prosperidade e alegria, abundância de vinho e lindas piscinas e isto conseguiu ser comprovado pela arqueologia.
Resultados da pesquisa arqueológica
- Em Tell el-Umeiri escavou-se um bloco de casas e ruas da Idade do Bronze (2500) e um sistema de rampas fortificadas do fim do Bronze Médio (1600), algumas paredes mais frágeis do Bronze Tardio, uma das cidades melhor preservadas do Ferro I e um centro administrativo do fim da idade do Ferro (650 em diante).
- Outros importantes sítios da região foram descobertos em 1989: Tell Jawa e em 1992 Tell Jalul. As novas pesquisas devem ter como pressuposto que no primeiro e segundo milênio a região, politicamente, era uma espécie de ‘sombra’ de um grande império, nunca sendo um poder político muito significativo.
- Alguns óstracos foram encontrados, e eles datam dos 7º e 6º séculos. Destes o mais famoso é o chamado “óstraco de Hesbom” que pertence ao mesmo grupo de textos dos “óstracos de Lachish”, pouco antes de Judá cair sob o poder dos babilônios, em 701. Eles trazem listas e ordens de preparação militar para a invasão. Este óstraco, datado do Ferro II na virada para o período persa foi encontrado pelo arqueólogo James Sauer. Está em escrita amonita cursiva contendo uma lista de grãos, flor e vinho, apelidada pelo prof. Crom de Harvard como um recibo de imposto. O segundo, sendo mais fragmentário e mais difícil de interpretar, está em aramaico mas pertence ao mesmo grupo.
- Outras escavações nos sítios tem encontrado mais memórias da idade do Ferro, incluindo reservatórios, aquedutos e cisternas, um grande reservatório que se acredita ser o de Ct 7,4-5. Também os vinhedos descobertos têm sido numerosos.
Bibliografia
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CHRISTOPHERSON, Gary L., A regional approach to archaeology on the Madaba Plain - Random survey and settlements patterns (presented at the Annual Meetings of the American Schools of Oriental Research, novembro, 1997, California (veja emhttp://www.casa.arizona.edu/MPP/hrs1_report/hrs1.html
FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Asher, A Bíblia não tinha razão, São Paulo: A Girafa, 2004, 515p.
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HARRIS, R. Laird, ARCHER Jr., Gleason L. e WALTKE, Bruce K., Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, 1789p.
HERR, Larry, “The search for bíblical Heshbon”, em Biblical Archeology Review, vol.19, n.6, 1993, p.36.37.68
IBACH Jr., Robert D., Hesban 5 - Archaeolgical Survey of the Hesban Region - Catalogue of Sites and Characterization of Periods (resenha em FINKELSTEIN, Israel, Biblical Archaeology Review, 1993, vol.19, n.4, p.6 e 76
KIRST, Nelson e outros, Dicionário hebraico-português e aramaico-português, Petrópolis: Vozes, 11ª edição, 2000, 305p.
LA BIANCA, Ostreyin S., Hesban 1 - Sedentarization and Nomadization: Food System Cicles at Hesban and Vicinity in Transjordan, Berrien Springs, Andrews University Press, 1990, 353p. [resenha em FINKELSTEIN, Israel. Biblical Archaeology Review, 1993, vol.19, n.4, p.6 e 76
LA BIANCA, Ostreyin S., Indigenous hardiness structures and state formation in Jordan - Towards a history of Jordan’s resident Arab population - Paper from The Nordic Conference on Middle Eastern Studies: Ethnic encounter and culture change, Joensuu, Finland, 19-22 June 1995, emhttp://www.hf-fak.uib.no/smi/paj/LaBianca.html
LA BIANCA, Ostreyin S., Tall Hisban Excavation: 2001, emhttp://www.bibleinterp.com/excavations/hisban.htm
SAVAGE, Stephen, Moab Archaeological Resource Survey/MARS, Arizona State University, Madaba Plain, emhttp://archaeology. asu.edu/Jordan
Madaba Plains Project – Publications Overview, emhttp://www.andrews.edu/MPP http://www.andrews.edu/MPP/hisban/1998
Notas
[1] Ou: Hexbon, Hisban, Hisbon, Hesban, Hesebon. [2] Ver Nelson Kirst e outros, Dicionário hebraico-português e aramaico-português, São Leopoldo, Editora Sinodal, 8ª edição, 1997, p.79b; veja também Ludwig Köhler e Walter Baumgartner, Lexikon in veteris testamenti libros, Leiden, E.J.Brill, 1985, p.339-340, e R. Laird Harris e outros, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p.543. [3] Seguindo a tabela de Israel Finkelstein e Asher Silberman, A Bíblia não tinha razão, São Paulo: A Girafa, 2004, p.37. [4] Este dado, aparentemente preciso, pode nos indicar uma tradição tão trabalhada na oralidade que acabou se tornando anacrônica no período da redação. Pois se Israel ocupara Hesbom na época imediatamente anterior à conquista de Canaã, e se Jefté, durante o tribalismo (isto é, antes da monarquia davídica), faz referência à presença israelita no lugar há trezentos anos, em que época se deu, então, o êxodo? Seria a ocupação de Israel em Hesbom anterior ao êxodo? Alguns arqueólogos afirmam que nunca houve ocupação de Hesbom neste período ao qual a narrativa bíblica se reporta. (Veja Israel Finkelstein e Asher Silberman, A Bíblia não tinha razão, p.96.)