Doutor pela Metodista leva "Cristo afogado" para a Drew University
19/09/2016 13h15 - última modificação 19/09/2016 13h18
Qualquer história sobre Jesus Cristo permanece inacabada. Jesus divino, Jesus homem, Jesus transformador social, tudo cai numa incompletude semelhante à figura de Esteban, o afogado, retratado em conto de Gabriel García Márquez sobre um corpo trazido pelo mar e que causa dúvidas e adesões do vilarejo local. Parodiando Esteban, o professor e ex-aluno de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, Carlos Beltrán, pesquisou e escreveu sobre um Jesus fora do padrão cristão da igreja, que leve as pessoas a questionar inclusive o poder do próprio Jesus. Fez isso através do personagem-parábola de García Márquez.
Recém-chegado nos Estados Unidos, onde foi aceito no programa Scholar in Residence da Faculdade de Teologia da Drew University em parceria com a Postcolonial Networks e a Borderless Press, Beltrán levou na bagagem seu doutorado sobre "O Cristo Afogado: Uma Não-Cristologia. Religião, Literatura e Pós-colonialismo".
Confessando-se indisciplinado e transgressor, ele fala direto:a igreja não pratica o cristianismo e trai o Evangelho em nome de propósitos institucionais. Beltrán ficará nos EUA até dezembro de 2016 e pretende partilhar e preparar sua tese para publicação em inglês.
“El ahogado más hermoso del mundo”, de García Márquez, narra o aparecimento de um corpo em um pequeno vilarejo do Caribe que recebe o nome de Esteban e que, justamente por ser desconhecido, atraiu atenções, críticas e simpatias. Logo a comunidade o torna o centro das atividades e promove uma autopurgação. Primeiro rejeitado, Esteban passa a ser visto com mansidão e humildade e ganha um funeral seguindo as tradições locais.
Acompanhe a entrevista:
1 - O que o levou a investigar esse tema?
Carlos Beltrán - O tema é fascinante, não acha? Procuro relacionarJesus, o grande herói do cristianismo, com a literatura latino-americana, que é esse caldo de cultivo onde cresceram as sementes históricas que refletiam o violento processo colonial, imperial e depois estatal, e ver no que dará tudo isso! Falando em Jesus, parece que falamos em religião, e ao falar em religião, isso parece excluirgeografia, história ou política, não é verdade?
Pois bem, o tema da minha pesquisa não é necessariamente a cristologia (e aí, já começo a responder o porquê do não no meu título). O tema da minha pesquisa é a mundanalidade, ou como a religião, a leitura do literário e os estudos da cultura rejeitam a forma mundana do pensar e partem para mundos abstratos. Tratei de encontrar uma forma de falar sobre o Jesus Cristo que tivesse implicações políticas, anticoloniais e de transformação, sem perder a dimensão prazerosa e mística que trazem a religião e/ou a literatura, e mais importante ainda: evitando aprofundar a monotonia de um Jesus-Cristo, de novo? Descobrimos, assim, que era impertinente falar sobre Jesus Cristo e fomos conduzidos a falar em Esteban, o afogado mais bonito do mundo, o conto de Gabriel García Márquez.
2 - O que é não-cristologia?
Carlos Beltrán - Uma não-cristologia é como quando alguém te pergunta se você deseja uma garrafa de água com gás ou sem gás, e você responde: quero água da torneira. Há uma continuidade, a água, mas você rejeita a garrafa, porque faz parte de um sistema que contamina e que transforma em mercadoria um recurso natural. A torneira não resolverá tudo, mas é um passo. A não-cristologia é um passo. Rumo ao que? Rumo a um horizonte em construção, ou talvez uma interrupção que abre um espaço diferente, onde o objetivo é destacar mais o processo do que o horizonte.
Essa palavra composta, não-cristologia, busca desenhar esse processo, em alguns passos. Primeiro, dizer não às cristologias hegemônicas ou dominantes. Segundo, é um não que contém um sim, que acolhe o cristológico de alguma forma ao negá-lo. Por fim, um não que busca transcender o cristológico por meio do exercício de leitura de outras histórias.
3 - No que ela coincide ou conflita com o cristianismo praticado pela igreja?
Carlos Beltrán - Sabemos que a igreja não pratica o cristianismo. A igreja, como corporação, utiliza algumas ideias do testamento cristão e do testamento hebreu, e da tradição patriarcal, para seus propósitos institucionais, os quais são firmemente (embora também veladamente) políticos e econômicos. Isso pode ser escandaloso para o senso comum, mas muitas pessoas, sobretudo aquelas um pouco libertas do poder da igreja, entendem muito bem essa traição institucional da igreja ao evangelho.
De um ponto de vista sociológico, essa traição talvez seja inevitável, porque a instituição vira ela mesma o próprio objetivo de existir. As teologias da libertação, e sobretudo as teologias feministas, descobriram e expuseram detalhadamente esta traição. Depois elas (re)imaginaram um Jesus coparticipante de um movimento social de firmes objetivos transformadores em termos de política, economia e relações sociais. No entanto, minha tese não busca recuperar este Jesus-de-movimento-social-transformador. Isto já fizeram teólogas como Elisabeth SchüsslerFiorenza. Procuro mostrar que qualquer história-teologia sobre Jesus-Cristo permanece incompleta e a figura de Esteban, o afogado, traduz muito bem esta incompletude.
4 - Qual sua versão: Jesus humano, Jesus divino ou os dois numa só pessoa?
Carlos Beltrán - Esta é, evidentemente, uma clássica pergunta cristológica. Poderia ser dito que nós, na América Latina, concebemos Deus de outra forma, mas não direi isso para não reforçar a geografia colonial que adora falar em América Latina entre aspas. Direi: nós, pessoas subalternizadas ao redor do mundo, historicamente temos falado do mistério de outra forma.
A pergunta pela divindade ou humanidade de Jesus está intimamente ligada às disputas pelo poder político na sociedade - o que cientistas da religião chamam de poder religioso, que na verdade não é nada além de um disfarce do poder político.
Uma não-cristologia não responde a perguntas cristológicas. Ela abre espaço para perguntas próprias de comunidades que refletem sobre o poder, incluindo o poder de Jesus-Cristos. Em lugar de divindade, ancestralidade: perguntamos como estaríamos irmanados com esses poderes sobrenaturais. Em lugar de divindade, natureza-mistério: inventamos histórias para compreender e aprofundar nossa relação com o todo.
5 - Por que o pós-colonialismo permeia sua pesquisa? O que houve durante o colonialismo e após?
Carlos Beltrán - O pós-colonialismo é a análise de uma falha: por que a libertação falhou? Por que a independência política das nações ex-colonizadas não lhes trouxe também independência econômica ou cultural? Por que a libertação não atingiu todas as pessoas e a Terra? Não se trata, portanto, de um novoconteúdo, mas de uma atitude, um questionamento profundo, a promoção de uma interrupção crítica.
Sou herdeiro das teologias da libertação, mas a ordem das coisas nesse discurso impunha a elaboração de um Jesus-Cristo libertador, ou de uma cristologia feminista, por exemplo. Tudo isso já existe, e, aliás, da perspectiva pós-colonial, aquilo também faz parte do problema. Sou descendente de indígenas, negros e espanhóis. Nessa pesquisa reivindiquei, com muita dificuldade, o lado da ferida colonial. E, reivindicando a subalternização dos povos colonizados, reivindiquei seu método: antropofagia, mitofagia... Engolimos quem nos coloniza e regurgitamos a nós mesmos transformados e em conflito.
6 - Você está defendendo uma nova linha de pensamento ou revisando o que já existe?
Carlos Beltrán - Minha tese faz duas coisas: recupera a cristologia de forma crítica, só para depois abandoná-la (ou engoli-la) por meio da mudança do foco para uma outra leitura, o conto de García Márquez. Talvez os profissionais teólogos e cientistas da religião não gostem disso, talvez eles quisessem mais uma nova cristologia. Mas meu compromisso não foi com a academia (não principalmente) e sim com a ferida colonial e com as gentes que resistem até hoje às consequências dessa ferida. Eu propus uma não-cristologia.
7 - O que já existe que te instiga?
Carlos Beltrán - Duas coisas. O que já existe sobre cristologia, em teologia e em ciências da religião, é em termos gerais monótono, desgastado, repetitivo e tende à erudição sem fim. É simplesmente isso: erudição sem fim, sem objetivo. Portanto, o que já existe, para falar a verdade, é muito chato (risos) e reflete o engessamento das estruturas institucionais, tanto eclesiásticas como acadêmicas, e a crescente despolitização dos estudos científicos.
Por outro lado, o que já existe no contexto de lutas e de movimentos sociais é outra coisa. É muito intenso e com certeza está à frente da própria academia em muitos sentidos. Minha tese, mais do que um avanço que irá ensinar as pessoas nas lutas e movimentos, é antes um reflexo orgânico de tais lutas.
8 –Qual a origem desse seu pensamento transgressor?
Carlos Beltrán - Nasci na Colômbia. Vim para o Brasil fazer o mestrado e depois o doutorado. A experiência no Brasil, tanto dentro como fora da academia, está refletida nessa tese. Destaco, particularmente, minha participação no movimento cultural e no movimento negro no ABC paulista, os sambas, a capoeira que pratico desde o último ano de doutorado, além do centro ayahuasqueiro do qual participo desde 2013. Todos esses espaços foram fundamentais para construção desse saber indisciplinado e transgressor, engajado nas comunidades diaspóricas, tanto de matriz africana como de matriz indígena e na sua sabedoria pós-colonial.
Essa imersão no contexto cultural brasileiro me tornou progressivamente um estrangeiro na Colômbia, ao mesmo tempo em que meu transfundo colombiano me torna sempre um estrangeiro no Brasil. Mas existe uma globalidade nascendo, da qual todos nos sentimos aos poucos pertencendo, para além das fronteiras imaginárias dos países. Considero esta tese como parte desse movimento internacionalista de união dos povos, desde as raízes, por uma sabedoria que nos traga uma vida melhor.
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Esta matéria foi publicada no Jornal da Metodista.
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