Ferramentas Pessoais

Você está aqui: Página Inicial / Pós-Graduação em Ciências da Religião / Projetos / O ideal civilizador do protestantismo e a cultura dos pobres na América Latina

O ideal civilizador do protestantismo e a cultura dos pobres na América Latina

Responsável: Lauri Emilio Wirth

O presente projeto está vinculado ao Grupo de Pesquisa Religião e Vida Cotidiana, cadastrado, sob minha responsabilidade, no CNPq. Como fui responsável pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, nos últimos anos, não dispunha de carga horária para o desenvolvimento sistemático de pesquisas. Neste período, as atividades do Grupo restringiram-se ao acompanhamento e orientação de mestrandos e doutorandos e à atualização mínima dos referenciais teóricos necessários à orientação das pesquisas dos discentes. O projeto, portanto, é uma das estratégias da retomada das atividades do Grupo de Pesquisa Religião e Vida Cotidiana.

A hipótese geral que orienta a presente proposta pressupõe certa convergência entre o catolicismo romano, por um lado, e os diferentes protestantismos, por outro, quando se trata de decifrar, valorar e enquadrar as culturas locais. Tanto a integração dos povos conquistados nas nações cristãs através de sua cristianização católico romana, nos séculos 16 e 17, quanto o ideário civilizacional protestante anglo-saxão, dos séculos 19 e 20, trazem em seu bojo a idéia de uma hierarquia interna. Os povos cristianizados da cristandade colonial, bem como os posteriormente convertidos ao protestantismo sempre serão, de acordo com este imaginário, cristãos assimilados à cultura dominante eurocêntrica, o que lhes confere um status de subordinação, de acordo com critérios étnicos e raciais considerados científicos na época.

As pesquisas historiográficas e as produções teóricas sobre a relação entre colonialismo, eurocentrismo e cristianização das regiões subalternizadas pelo processo de expansão europeia restringem-se, quase que exclusivamente, à variante católico-romana do cristianismo. No que se refere ao recorte histórico, o foco das investigações privilegia os séculos XVI ao VIII. Ou seja, estão focados num período histórico ainda determinado pelo imaginário cristão de um Deus situado fora da história como referência e fundamento de um sistema mundial em processo de consolidação. Daí a centralidade dos argumentos religiosos (pense-se em Las Casas) nos embates, não só teóricos característicos daquele período.

Ocorre que o século XIX, o chamado século protestante e de hegemonia anglo-saxônica, dispensa Deus como fundamento estruturador da sociedade e o substitui pela transcendência do livre mercado como entidade metafísica não sujeita a preceitos ou valores situados fora da lógica do sistema. Nas palavras de Giovanni Arrighi: “O imperialismo do livre comércio ... estabeleceu o princípio de que as leis que vigoravam dentro e entre as nações estavam sujeitas à autoridade superior de uma nova entidade metafísica - um mercado mundial regido por suas próprias ‘leis’ -, supostamente dotada de poderes sobrenaturais maiores do que tudo o que o papa e o imperador jamais houvessem controlado no sistema de governo medieval. Ao apresentar sua supremacia mundial como a encarnação dessa entidade metafísica, o Reino Unido logrou ampliar seu poder no sistema interestatal muito além do que era justificado pela extensão e eficiência de seu aparelho coercitivo”[1].

Os estudos da religião na América Latina discutem amplamente as implicações deste deslocamento tendo como referência as teorias da secularização, ou seja, a superação da religião como fundamento da cultura, do Estado e da Nação, como era característico na cristandade colonial católico-romana. O presente projeto terá como horizonte de investigação um outro deslocamento fundamental deste novo período, praticamente ausente nos estudos da religião e quiçá de consequências mais profundas que a secularização para se entender a relação entre religião e culturas na América Latina. Como diz Vitor Westhelle, um dos aspectos permanentes da expansão européia é a consolidação de uma mentalidade na qual o chamado “Novo Mundo ... emerge como a consciência de que um lugar novo instaura também um tempo novo, marcado por uma nova atitude: a de legitimar-se com referência apenas a si próprio, sem necessitar mais de uma norma externa, de uma heteronomia.”[2]. Este projeto associa-se, portanto, aos já consolidados esforços que investigam como o caráter autorefernciado da expansão européia impacta as culturas locais, especificamente através de seu processo de cristianização.

Contudo, o presente projeto tem como suspeita a existência de uma variável especificamente protestante neste processo de subalternização das culturas locais, cujas evidências se mostram em variadas estratégias discursivas que vinculam o protestantismo à cultura anglo-saxônica e o catolicismo romano à idéia de latinidade, sendo esta entendida como expressão de um estágio inferior da evolução cultural da humanidade. Neste sentido, o suposto efeito integrador dos povos conquistados nas nações em expansão através da cristianização sede lugar a uma espécie de hierarquia racial, que confere aos povos anglo-saxões o status de raça superior e concebe o protestantismo como expressão religiosa específica da cultura anglo-saxônica. Assim sendo, o projeto se propõe a problematizar este caráter messiânico decorrente do vínculo entre protestantismo e cultura anglo-saxônica, perguntando, principalmente pelas implicações práticas deste imaginário para a relação entre protestantismo e as culturas locais.

O projeto contempla ainda um segundo horizonte teórico, necessariamente relacionado ao primeiro, mas que segue uma lógica invertida. Seu foco privilegia as dinâmicas religiosas locais, problematiza as experiências religiosas nos espaços da vida cotidiana a partir dos argumentos, das interpretações e das atribuições de sentido dos sujeitos históricos destas experiências. Aqui o projeto dará continuidade ao aprofundamento teórico e ampliará os instrumentos metodológicos adequados para captar dimensões religiosas e suas redes de sentido, nos micro-espaços das relações familiares, nas estratégias de sobrevivência cotidiana, principalmente em situações de vulnerabilidade social e em suas articulações com os discursos religiosos dominantes e os macro-processos sociais em que estão envolvidos.

O grupo de pesquisa Religião e Vida Cotidiana acumula razoável experiência no que se refere à pesquisa qualitativa com recursos metodológicos da História Oral. O mesmo vale ao suporte teórico adequado ao estudo da relação entre religião, memória e cotidianidade, o que pode ser comprovado pelo resultado de vários projetos de mestrado e doutorado a ele vinculados. O presente projeto pretende ampliar estes referencias, valendo-se principalmente de algumas intuições teóricas dos estudos pós-coloniais. Uma delas requer o aprofundamento da noção de vida cotidiana que vá além das aproximações estruturalistas e das explicações binárias baseadas na lógica de causas e efeitos. Ou seja, o cotidiano precisa ser entendido como o espaço e o tempo em que as relações sociais se concretizam e se transformam em experiências de sentido: “a cotidianidade constitui a unidade que resolve na prática (isto é, em sua realização) a complexa relação entre agência e estrutura, subjetividade e objetividade, enunciados e gêneros discursivos”.[3]

Longe de serem relegadas ao âmbito da vida privada e restritas à subjetividade estritamente existencial, pensar as experiências religiosas nos espaços da vida cotidiana requer recursos metodológicos que possibilitam o acesso às artes de fazer de atores sociais em relações comunitárias locais, perpassadas de ambiguidades, assimetrias e contradições. Neste sentido a “cotidianidade, como unidade fundamental da análise social, encontra sua expressão concreta nas comunidades às quais pertencem os indivíduos em questão. A comunidade não é uma realidade simples e dada a priori, primeira, anterior e inferior ao Estado e outros modos de organização mais complexa; não é tampouco o lugar de identidades fixas, primordiais ou transcendentes”. Ao contrário, “é na comunidade onde se levam a cabo e encontram guarida aqueles jogos de linguagem que constituem uma forma de vida, onde se define o repertório dos enunciados e das ações possíveis, onde se encontram os recursos sócio-culturais com os quais as pessoas enfrentam a adversidade”.[4]

No que se refere à metodologia da História Oral e as teorias da memória aplicadas ao estudo da religião, o projeto se propões a aprofundar especialmente a dimensão testemunhal do depoimento oral. Assim, abre-se uma possibilidade de interlocução promissora entre as teorias pós-coloniais e os estudos da religião. Neste horizonte de reflexão o “testemunho não é simplesmente uma ferramenta metodológica para satisfazer a curiosidade intelectual; é uma forma de dar conta à experiência dos protagonistas e, em particular, das vítimas, sem perder de vista o sentido do evento. Por isto os testemunhos devem ser entendidos desde a cotidianidade dos que falam, inseridos em processos subjetivos e coletivos, estruturados por tradições simbólicas e entrecruzados por gêneros discursivos. Uma leitura atenta do testemunho deve abrir-nos simultaneamente à cotidianidade do acontecimento e ao testemunho enquanto acontecimento”

[1] ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX, p. 55.
[2] WESTHELLE, Vitor. Outros saberes: Teologia e ciência na modernidade. In: Estudos Teológicos 3(1995), p. 258-278, citação p. 259.
[3] ORTEGA, Francisco A. Reabilitar la cotidianidad. In: DAS, Veena. Sujetos del dolor, agentes de dignidad. (Francisco Ortega a. Editor). Bogotá: Universidade Javeriana – Instituto Pensar, 2008, p. 22
[4] Idem, p. 24.

Comunicar erros

SOBRE O PROGRAMA
X