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Um rumo freireano para a educação brasileira

O Projeto Brasil de Paulo Freire

A obra e a vida do educador Paulo Freire (19/09/1921 - 02/05/1997) revelam um programa para mudar e aperfeiçoar o Brasil. Reler seus textos quando ele faria 87 anos exige uma nova pergunta: não haveria, no interior da sua longa construção educativa um projeto global para construir, coletivamente, políticas de cultura e educação? Para nos arrancar da condição de ainda campeões em evasão, leitura deficiente, humilhações, desamores no ato educativo e freio cultural ao pleno desenvolvimento?

           

Sim, há, porque em cada página e fala de seus muitos livros, conversas e conferências há sinais claros de uma pedagogia do diálogo e da libertação e não somente uma metodologia do ensino e da aprendizagem. A pedagogia inclui, mas supera amplamente as estratégias dos que gestionam a educação, porque também a gestão tem de ser libertada e libertadora. Essa pedagogia politiza a gestão, porque não admite que um jovem seja incluído socialmente hoje para ser excluído amanhã, inclusive pelas novas tecnologias.

Observa-se hoje que os mais amplamente conhecidos discursos sobre educação vêm de banqueiros, donos de indústria e economistas dos vários continentes. Eles são sensíveis ao fundamento cívico e democrático da educação, como também demonstrou o  mestre Paulo a cada passo. Mas é necessário ir ao fundo de uma pedagogia libertadora de entraves objetivos e subjetivos, e isso não encontramos nos discursos mais famosos e atuais. Cada página de Paulo Freire é um passo de libertação para reverter a cultura colonizada e colonizadora que forjou a consciência de milhões de homens e mulheres do Brasil e demais sociedades injustas, construídas de cima para baixo, como ele também mostrou. Aí se organizam os maiores entraves. Essa cultura invasora seduz e se moderniza continuamente ao sabor da mais-valia. Faz parte de atos e sentimentos. Portanto, o risco é contínuo e somente uma pedagogia descolonizadora pode criar e recriar a autonomia das novas gerações, como também lemos no autor de Ação Cultural para a Liberdade. Ela supera o que as modernizações e a globalização nem de longe superam e, talvez, reafirmem, isto é, as novas colonizações. Essas ganham forma no sentimento de culpa dos "despreparados", na precarização do trabalho e na negação dos diferentes.  Diante das políticas internacionais fundamentalistas, isto é, que não consideram a diversidade e as diferenças, ainda mais importante se torna essa pedagogia do homem e da mulher libertados e, portanto, libertadores.

           

Essa pedagogia dialógica não pode admitir a presunção do saber, muito menos a acomodação ao saber imposto. Quanto à presunção, a pedagogia do diálogo nega que a realidade se transforme simplesmente porque se produz o discurso da mudança. O discurso da mudança pode virar blá-blá-blá.  Qualquer mudança somente se realiza no diálogo de saberes, incluídos, privilegiadamente, os empobrecidos e sofridos. Já o saber imposto é a negação de que somos seres inconclusos e, portanto, gente que somente aprende, apreende e cresce na relação criativa entre saberes. A "gentificação" se torna uma ação ética. Gentificar-se é uma escolha.  No livro publicado três anos depois de sua morte, Pedagogia da Indignação, 2.000, o mestre deixa claro o sentido da educação e, em conseqüência, da pedagogia: “... a educação em geral, na perspectiva progressista, hoje  tanto quanto ontem e por novas razões tem de continuar lutando contra as ideologias fatalistas.

( Existe a ) necessidade da certeza de que mudar é difícil mas é possível”

 

Daí que todas as políticas e programas sociais devem vir acompanhados da construção de consciência individual e coletiva que expulse as sombras dos velhos sentidos clientelistas em torno do ato de se alimentar, educar-se e produzir economia. Os seres-objetos de quaisquer políticas terão, como premissa para o desenvolvimento dessas mesmas políticas, de reverter a condição e assumir-se como sujeitos. Como disse a velha senhora pernambucana ao mestre Paulo: "Quero aprender a ler e escrever para deixar de ser sombra dos outros.

Não é fácil aos governos (e conseqüentemente aos governados) converter-se à pedagogia do diálogo e da libertação! Talvez por que raros governos se libertem de opressões de interesses e costumes políticos, os quais fundam e suportam suas práticas. Mesmo as governanças inovadoras exigem (ainda mais!) uma pedagogia capaz de autonomizar e integrar processos e pessoas.

Há uma página da sua obra póstuma Pedagogia dos Sonhos Possíveis, 2001, organizada por Ana Maria Freire, que é um símbolo de método, de caminho para projetos arrojados de mudança sócio-econômica e, fundamentalmente, de cultura educacional e política. Parafraseá-la é um apelo ao sonho do mestre para que não percamos o bonde da história em mais este desafiador momento do Brasil. Aqui, uma pedagogia para a mudança das relações entre professor-aluno, governante-governado, dirigente-dirigido, pais e filhos, pessoa-pessoa. Para construir autonomia e liberdade é imprescindível:

 

A. Superar qualquer procedimento de transferência ou concessão mecânica de favores ou saberes empacotados em prol de um que fazer em que os envolvidos se apropriem de conhecimentos, ensinando-se mutuamente, criando e inventando.

B. Respeitar as pessoas em sua identidade cultural e de classe.

C. Considerar os saberes da experiência e torná-los vividos/convividos, por meio da opinião, crítica, escolha, juízo e opção. Aqui o caminho único da criação cultural dos programas e políticas.

D. Trazer à tona, para discussão coletiva todas as questões, por mais delicadas que sejam, a fim de que o espírito crítico e a participação permitam a tomada de decisões compartilhada. E que as mais altas autoridades conheçam detidamente todos os fatos, problemas e contradições, para evitar o engano e a burla.

E. Pensar continuamente a própria prática, o que significa um processo de avaliação criador de distância crítica, indispensável para a seqüência de novas práticas e novos avanços.

Morto um dia depois do primeiro de maio, Paulo Freire cala-se no fim dos gritos das praças para se transformar no mais rumoroso silêncio dos que de fato acreditam no Brasil como sociedade democrática, para além dos modismos, da linguagem aprisionadora, das bajulações e da falsa segurança. Oxalá seja esse o nosso momento.

 

* Luiz Roberto Alves é professor e pesquisador na Universidade Metodista e na USP. Ex-Secretário de Educação, Cultura e Esportes de S. Bernardo do Campo e Mauá.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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