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No meio da crise, as armadilhas da desorientação

Este é o segundo artigo de uma série que professor Luiz Roberto Alves, coordenador da Cátedra Celso Daniel, da UMESP, vem publicando neste espaço sobre a realidade internacional e seus impactos na vida das cidades.

Já se sabe que a crise não foi gerada pelo trabalho e demais obrigações cívicas. Muito menos pelos investimentos públicos, pois os especuladores sistematicamente engoliram boa parte deles. A culpa total da crise é das corporações econômico-financeiras internacionais, com apoio decisivo de muitas nacionais.

Quem leu nos últimos 20 anos os documentos do Banco Mundial, da OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e demais agências assessoras dos países ricos viu o ataque contínuo aos deveres do Estado e aos investimentos no bem comum. Agora, a desorientação é geral. O ministro italiano das finanças acaba de dizer que o futuro próximo da economia é “exercício de astrologia”. Ele e todo o governo Berlusconi, antes a favor do desmanche do Estado, já não sabem o que fazer.

Também milhares de jovens espanhóis não sabem o que fazer e correm em massa para se alistar nas forças militares e tentar “sentar praça“ com vistas a um empreguinho. Jovens executivos, colarinhos brancos, da China ascendente voltam, às pencas, para as casas dos pais no profundo interior chinês e se propõem a trabalhar na agricultura, desiludidos com o eldorado das exportações para o mundo.

O presidente da famosa empresa de porcelana suíço-alemã, Geberit, ataca o ultra-capitalismo neoliberal que, segundo ele, desgraça a vida dos bons empresários.  Entenda-se que os textos das agências capitalistas (exemplo, o New Outlook), desde 1989, com a desculpa de que havia “déficit estrutural nos orçamentos nacionais, turbulências de mercado e fraqueza econômica geral” deram a receita ungida por Washington: reforma fiscal, reforma trabalhista, ajustes rumo ao superávit e contenção de gastos públicos. Receita que os próprios americanos não seguiram. Exigiu-se, acima de tudo, que o Estado fosse avalizado pelos mercados. Enfim, que os servisse.

É, porém, de pasmar que o editor-chefe da OCDE, Jean-Phillipe Cotis, dirigente de dezenas de experts em economia, escreva já em 2005 que a economia dos países ricos está “robusta” e há crescimento geral. Louco ou de má fé? O mesmo editor, em junho de 2007 (!), produz um texto ambíguo, que se denomina Alcançando um maior reajustamento? Lê-se que a Alemanha e a Itália se preparam para recuperação mais forte do que se esperava e que nos EUA “...o excesso de oferta de habitação se está a resolver gradualmente” e que possíveis excessos nos mercados financeiros de 2007 são muito menores do que os conhecidos no final dos anos 90.

Vê-se, pois, que a mal denominada crise financeira, que rouba o nosso presente, foi construída ao modo mítico, no interior dessa linguagem fundamentalista validada como moeda de uso global. Por isso é impossível compreender a crise presente por meio do discurso econômico. Somente um discurso ecumênico poderá encontrar novos valores e sentidos de futuro.

Horst Köhler, ex-diretor gerente do FMI, em entrevista ao jornal espanhol El Pais diz que a origem da crise está na falta de transparência do mercado. Resposta débil, pois de fato o chamado mercado aproveitou-se de uma sistemática incultura reguladora, que jogou todos os alto-falantes contra as esferas públicas e abrigou, confortável e silenciosamente, as malandragens da especulação mundial.

De passagem pelo Brasil, Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu, anunciou a valorização dos países emergentes no encaminhamento da crise, entre eles o Brasil. Se o discurso mistificador prevalecer nos próximos embates internacionais, tal “acolhida” de fato será uma nova armadilha.

É necessário desconfiar, profundamente, dos discursos dessas “comunidades do conhecimento”, como esses grupos de especialistas em economia gostam de se denominar. Durante todo esse tempo de crise semi-encoberta, setores do empresariado, agentes públicos e trabalhadores suportaram o peso de muitos fardos e, não obstante, empreenderam, chegando-se em vários países a melhor repartição de bens e usufruto de direitos, como ter saúde e comer.

No entanto, esse discurso-moeda, que fez do mercado uma divindade totêmica, antropomórfica (turbulenta, branda, nervosa e outras bobagens...) praticou a incultura da regulação, isto é, regulou as consciências ingênuas de milhões e garantiu o estelionato do sofrido superávit de todos os que trabalharam e contribuíram regularmente. No interior da desorientação devem estar sendo tramadas novas falcatruas. Todo cuidado é pouco, especialmente dos que trabalham com ética e visão de futuro. 

* Luiz Roberto Alves é professor e pesquisador da Universidade Metodista de São Paulo e da USP.

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