A cidade e a cultura cidadã: a palavra do eleitor
Somos milhões de eleitores em nossa Grande São Paulo e somente somos eleitores porque somos pessoas culturais. O nosso voto – quando livre e autônomo - não somente repercute e desdobra as disputas simbólicas da e pela cidade, mas antes se realiza como símbolo da história pessoal e comunitária. O voto se culturaliza na construção de seus símbolos e valores. Na verdadeira democracia, o voto é uma linguagem poética da cidadania. A definição de nosso voto somente pode ser simplificada, ou banalizada, em leitura leviana, ou autoritária. Quando somamos a condição de moradores e contribuintes conscientes e nos constituímos cidadãos e cidadãs, o ato de votar recupera a experiência dos que aqui nasceram e dos que vieram de longe para a cidade do trabalho, o duro aprendizado de suas linguagens tão diversas, a sociabilidade e o exercício da amizade e do amor; em seguida à recuperação, o voto se transforma em fábrica de novas culturas, quais sejam as culturas da mobilização, do compartilhamento do poder e do gozo dos direitos humanos e sociais. Aí começa a constituir-se uma cultura de governança, ainda estranha a nossa República. Se não formos tomados de um propósito de urgência em construí-la, continuaremos a estimular a chamada política do favor e da clientela. É necessário atacar diretamente a linguagem da mercadoria eleitoral e dizer que o eleitor é um ser simbólico, em cujos gestos a cultura é eleita como a mãe da cidade. Portanto, quem deseja levar a cidade a sério e de fato partilhar do seu destino, precisa vê-la não somente como mosaico de culturas, o que de fato é, mas principalmente como rede de valores. Isto significa que a cultura é a primeira referência política para um programa de governo, o suporte metodológico para a realização das chamadas políticas de ação e o valor que dá forma e sentido aos objetivos comunitários. Por isso Paulo Freire e seus tantos discípulos e discípulas concebiam e concebem a prática educativa como círculo de cultura, caminho seguro para a construção da autonomia das pessoas, tão importante nos anos 50 do país rural-urbano quanto hoje, sob ímpeto globalizante. Quando eu, eleitor, apreendo esse valor de cidadania, que é uma espécie de poética política (que lembra o último canto do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral), faço das urnas não o depósito do voto, mas, ao contrário, uma caixa de ressonância para o meu trabalho político e de meus companheiros e companheiras de jornadas. Os atos de reivindicação de serviços, de busca de consensos na diversidade dos interesses em torno dos orçamentos, de cobrança de compromissos dos eleitos, de implementação e de avaliação e controle dos mandatos são uma linguagem cultural que tece essa rede de valores, que é a cidade. Somente uma rede de valores pode levar a quantificar e qualificar projetos e práticas integradas de saúde, educação, saneamento, transporte, orçamento, qualificação humana. Pois exatamente o que faltou aos planejamentos tecnocráticos amplamente disseminados a partir da ditadura político-militar brasileira foi uma concepção cultural. Considerado o fracasso deles, pode-se dizer que faltou tudo, pois sem valores e símbolos um planejamento fica vazio de métodos, de objetivos e de executores. Portanto, nós, eleitores cidadãos não precisamos ser considerados utópicos pelo que desejamos, ou pragmáticos pelo que exigimos, pois a cultura que construímos e que nos constrói necessariamente precisa ver a nossa metrópole sustentável do futuro na cidade mobilizada do presente. Os movimentos que sustentam a saúde, que constroem as cenas teatrais, que tecem as poéticas, que exigem a escola de qualidade e que não admitem a miséria e a violência, por serem culturais terão de tecer essa rede de valores que se move em vários tempos e, provavelmente, sigam e cresçam de geração em geração. Tomara se eternizem, como as obras culturais de qualidade. Essa cultura tecida em várias formas de comunicação ainda será o nome que daremos à sustentabilidade urbana. Sustentar-se também significa criar cultura de solidariedade, que é quando o cultural agrega valores à natureza.
Devo dizer que vejo um grave perigo, um risco grave a considerar, isto é, as campanhas eleitorais, hoje e antes, tendem a ser anti-culturais, o que é um risco para compromissos, programas e valores. Via de regra, certamente com exceções, os movimentos das campanhas conseguem em dois ou três meses inverter e subverter a linguagem da construção cultural. Em vez de trabalharem para o acúmulo de memória, projetos e expressões de solidariedade, que são da natureza da cultura, certos discursos eleitorais impõem palavras de ordem, como se naquela fala do palanque ou do panfleto estivesse nascendo algo novíssimo, a inversão do hoje. Quem acompanha o fazer cultural sabe que o amanhã será outro dia, mas não o contrário de hoje, dadas as muitas relações sociais a serem consideradas. As mudanças precisam ser quantificadas, qualificadas e postas no tempo devido, no tempo concreto da vida social. Portanto, tais discursos de campanha rompem redes de valores e buscam uma posição mítica, que pode dominar e seduzir, mas não educa nem constrói símbolos radicados na história concreta das pessoas e comunidades. No mero domínio sedutor reside, sempre, um projeto ou uma idéia de negação e, mesmo, de destruição cultural. Seria possível dar muitos exemplos, desnecessários diante de cidadãos que acompanham os movimentos do mundo. Como eleitor cultural, exijo uma campanha eleitoral que se faça cultural para incluir o voto consciente e comprometido, o voto carregado de valores.
Como tantos cidadãos e tantas pessoas desta polis de 18 milhões de pessoas, faço questão de que nesta geração e neste tempo cresça a cultura dos direitos e estes sejam exercidos na plenitude, por todos e todas. Tal cultura traz em si o respeito à diversidade, que se apreende como valor de referência para a cultura-mãe da cidade, a paz. Na tradição das nossas culturas de fé, a paz significa a possibilidade efetiva de nos tornarmos continuamente seres completos e felizes, dignos e dignificados socialmente. Nos anos 60, quando eu era quase menino, aprendi com Alceu Amoroso Lima, Mario Carvalho de Jesus e os teólogos da Libertação que a paz é fruto da justiça. Hoje posso dizer que a cidade é fruto da paz e o laço que liga paz e cidade é a cultura. Nossas tradições artísticas cultivaram sistematicamente tais valores e denunciaram as investidas, sutis ou violentas, de destruição da cultura e dos seres culturais. Nós, ao lado de outros milhões de cidadãos e cidadãs, queremos sinalizar a vida e a persistência criadora da cultura, o que significa que a nossa cidade, lembrando Jacques Le Goff, voltará a ter nossos rostos plurais e fecundará na alegria dessa diversidade. Para tanto, teremos de radicalizar sentidos da cultura cidadã, ou, para também lembrar Guimarães Rosa, iremos “até o rabo da palavra”.
**Professor e pesquisador na Universidade Metodista de São Paulo e na USP. Coordenador da Cátedra Celso Daniel de Gestão de Cidades da UMESP. Ex-Secretário de Educação, Cultura e Esportes de São Bernardo do Campo e Mauá.