Valorizando o Nosso Cotidiano
"Não vos inquieteis pelo dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados". (Mt.6,34)
Este texto bíblico faz parte do conhecido sermão do monte, pregado por Jesus Cristo (Mateus 5, 6 e 7). O versículo que lemos talvez seja um dos trechos menos acolhidos por nós, pela dificuldade de estarmos envolvidos na vida agitada das grandes metrópoles. Jesus diz que não temos o poder de acrescentar um segundo à nossa existência ou um centímetro à nossa estatura, por esta razão a nossa excessiva preocupação com o dia de amanhã não faz nenhuma diferença.
A filosofia oriental, cantada por Gilberto Gil diz: "O melhor lugar do mundo é aqui e agora". Não existe melhor frase para explicar o tempo bíblico "kairós". Esta palavra significa tempo oportuno, tempo que se chama hoje. Contrapõe-se à palavra kronos, que é o tempo cronológico, o tempo do calendário, do relógio.
Os textos sagrados, verdadeiros chamados a uma vida de qualidade, enfatizam-nos a necessidade de vivenciarmos a cada segundo, a intensidade lúdica, prazerosa e amorosa do Reino de Deus. Jesus disse que, para nos livrarmos da ansiedade, é preciso ficar humildes como os pássaros e as flores.
Infelizmente nossa formação pragmática e utilitária contribuiu para formar em nós, ainda que não venhamos a perceber, uma filosofia de negação do cotidiano. Aprendemos e incorporamos, por exemplo, que, em nome da previdência, acima de tudo, o que vale é poupar, preservar, garantir o amanhã. Então, na nossa vida de cada dia, poupamos a melhor toalha de mesa mais, o prato mais bonito e usamos no cotidiano a toalha velha e o copo de geléia. E tudo o que temos de bonito em casa fica guardado esperando uma visita importante que nunca vem. E se vier utilizará as mesmas coisas, pois na pressa não temos tempo de abrir os armários e as gavetas para achar o que está guardado inacessível. Devemos ter cuidado desperdicioso com os copos de cristal que temos, pois se não os usarmos, eles se quebrarão sozinhos. Os lençóis bordados, guardados para noites especiais, do mesmo modo, se não forem usados, se rasgarão sozinhos.
Os pais que ainda estão guardando os brinquedos para seus filhos não quebrarem - abram os olhos! Eles estão crescendo e logo aqueles brinquedos já não lhes interessarão mais! Alguém pode perguntar o que isso tem a ver com a palavra de Deus. Tudo! Em coisinhas pequenas e simples como estas, perdemos às vezes a oportunidade de exercitar a amizade, o carinho, o prazer de viver, a alegria de explicitarmos um cristianismo autêntico e encarnado em cada segundo que passa fugidiamente. Evangelho como prática do cotidiano.
Nosso testemunho evangélico com sua proposta de "novo céu e nova terra" só pode ter ressonância e atingir o coração das pessoas se formos capazes de, muito além de simples idéias, mostrar, efetiva e afetivamente, uma capacidade de viver o tempo de hoje com a qualidade de vida trazida pelo mestre: "eu vim para que tenham vida e vida em plenitude". Deixar o tempo passar por nossas mãos, sem usufrui-lo é afirmar que na vida, realmente, tudo é vaidade e sem sentido. Valorizarmos o nosso cotidiano nas mínimas coisas é testemunharmos a utopia maior do cristianismo, o Reino de Deus, que começa neste momento, neste lugar ou "aqui e agora".
- inspirada nas idéias originais de Carlos Alberto Rodrigues Alves in: ALVES, Rubem, Culto e Arte,tempo comum, Editora VOZES, p. 55.