O fim da História

Desastre no Museu Nacional é reflexo do descaso com a cultura e a ciência

10/09/2018 12h01

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Nila Maria

Fundado, no dia 6 de julho de 1818, por Dom João VI, o Museu Nacional havia acabado de completar 200 anos. As paredes que sustentavam o prédio na Quinta da Boa Vista, zona Norte da Capital fluminense, ouviram as conversas entre Dom Pedro I e Maria Leopoldina, que residiram no Palácio de São Cristóvão. Ouviram também os ecos da República. Estiveram erguidas por dois séculos inteiros, acompanhando as mudanças políticas, sociais e culturais do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo.

Aquelas portas estiveram abertas para receber cientistas de todo o mundo, além de curadores, artistas, antropólogos e, é claro, curiosos. Gente interessada em mundo, interessada em aprender e conhecer sobre o chão que pisavam, sobre o passado, o presente e – por que não? – o futuro. Pesquisadores que viviam de descobrir os mistérios do planeta em que vivemos, nossos ancestrais, nossas raízes.

O museu foi criado com a intenção de promover o progresso cultural e científico do país. Mais tarde, em 1946, passou a ser administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, na época, era Universidade do Brasil. Desta forma, pesquisadores de todo o país desenvolviam seus trabalhos científicos em diversas áreas nos laboratórios espalhados pelo espaço do museu.

Além das famílias Real e Imperial, o Palácio teve muitos moradores. Dom Pedro II ganhou de presente, em uma de suas expedições ao Norte da África, o sarcófago lacrado de Sha-amun-em-su, sacerdotisa que, segundo a lenda, entoava cânticos sagrados para Amon. Era a companhia do Imperador, que a manteve em seu escritório até a proclamação da República, em 1889. Ele, aliás, era grande estudioso dos povos árabes e do Oriente Médio – toda a coleção de múmias do acervo do museu foi trazida por Pedro II.

Moravam ali, também, alguns dos primeiros seres a pisar em terras brasileiras. Das 30 espécies de dinossauros descobertas no Brasil, um terço estava lá, entre fósseis reais e réplicas, como a do Titanossauro. Descoberto em 2006 no município de Prata (MG), tinha 13 metros de comprimento e viveu, aproximadamente, 65,5 milhões de anos atrás. Sem falar nos chamados dinossauros do Sertão, fósseis de plantas, insetos e até mesmo ossadas de pássaros e de um pterodátilo que viveram no Nordeste do Brasil há mais de 100 milhões de anos.

E morava ali a Luzia. Conhecida como “a primeira brasileira”, já que era o fóssil humano mais antigo encontrado na América, era, certamente, a mais ilustre moradora daquela casa. Luzia em carne e osso devia ter outro nome. Não falava nossa língua e morreu jovem – segundo os pesquisadores, devia ter entre 20 e 24 anos. Seus ossos ficaram na terra por milhares de anos, até, em 1970, ter sido encontrada. Luzia de carne e osso morreu há muito tempo, mas Luzia como História, ciência, memória e evidência do nosso passado como humanidade e nação, viveu muito mais e pôde ser eternizada.

Eram 20 milhões. 20 milhões de moradores vindos de toda parte do mundo. 20 milhões de histórias que explicavam e poderiam explicar muito mais sobre tudo o que sempre tivemos sede de saber sobre de onde viemos e para onde vamos. Registros de quem somos. Evidências de nossa trajetória. Vozes de nossas origens. Tudo o que era mantido vivo naquela casa bicentenária, tudo o que havia resistido por mais anos do que somos capazes de contar, em questão de algumas horas, virou pó. Virou fumaça. Cinzas.

As chamas começaram a arder, em um cantinho daquela construção, por volta das sete da noite do domingo, dois de setembro. A água que derramavam para tentar contê-las não era suficiente. O tempo corria e a História ardia, sem esperança. Já era manhã de uma nova segunda-feira quando o fogo parou de arder. Agora, aquela casa por onde a História andou com seus próprios pés não passava de um esqueleto sem cor, vazio e silencioso. O passado, agora, era fuligem.

Não se sabe onde foi parar Luzia ou a sacerdotisa-cantora. Os ossos dos dinossauros se partiram em milhões de pedacinhos e se espalharam pela casa. As línguas indígenas registradas em áudio para viver eternamente, agora, nunca mais serão ouvidas por ninguém. Bendegó resistiu. O meteorito que, do espaço, veio fazer morada na Terra e foi encontrado há mais de 300 anos, sobreviveu. Ele não era daqui...

Um museu padeceu em um incêndio. O Museu Nacional se acabou em chamas. Um acervo de 20 milhões de itens com milhões e milhões de anos se perdeu para sempre. E é assustador pensar que tantos outros, com igual importância, correm o mesmo risco.

Daqui, do presente, torcemos para que o fato não vire pó, também, na semana que vem. Que o esqueleto do Museu Nacional nos lembre de nunca mais esquecer o quanto isso importa.

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