Para além da notícia: workshop discute o humor das charges nos jornais
30/09/2016 09h45 - última modificação 30/09/2016 11h01
“Ele se representa sempre com a camiseta preta, a calça jeans e um tênis surrado. Ele vem muito da inspiração punk, ele fez parte desse movimento”, comenta Barros.
Arthur Marchetto
Desde 1971, quando Francis Lacassin publica seu livro “Pour un neuvième art, la bande dessinèe”, ou “Para a nona arte, a história em quadrinhos” em tradução livre, as Histórias em Quadrinhos (HQs) foram classificadas como a nona das artes. No entanto, a linguagem já é conhecida desde o começo do século XIX e utilizada para contar uma história em diversos formatos, como tirinhas, reportagens ou romances. Tendo pesquisado um dos formatos jornalísticos que utiliza a linguagem das HQs, Iberê Moreno Rosário e Barros apresentou um workshop que discorre sobre as charges de Angeli nos jornais.
A apresentação, que aconteceu no dia 26 de setembro, na UMESP – Rudge Ramos, foi sobre uma das dissertações de Iberê, “Uma narrativa midiatizada do cotidiano: as charges de política internacional de Angeli (2001-2012)”. Além do mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e do mestrado em História pela Pontífice Universidade Católica/ SP (PUC/SP), Iberê também é produtor de conteúdo e participou da fundação do site Quadrinheiros, que analisa quadrinhos e outros elementos da cultura pop sob uma visão político-cultural e analítica.
Reconhecido internacionalmente, Angeli é um dos chargistas com maior produção. “Ele publicou charges diárias na Folha de S.Paulo de 1975 até 2015”, comentou Iberê, ao mesmo tempo em que produzia tirinhas, livros e outros projetos. “Era uma carga de trabalho muito grande”, disse o pesquisador. Ano passado, o chargista tornou público o fato de estar sofrendo de depressão forte.
Em sua apresentação, Barros destacou uma das falas ditas por Angeli em uma das raras entrevistas concedidas. Publicada pelo Canal TV Folha, no dia 6 de maio de 2012, o chargista comentou sobre a espécie de crítica política que procurava fazer em suas charges. “Eu acho que, em se tratando de político, num adianta – e de políticos de estirpe desses que a gente vê por aí – num adianta a gente ficar fazendo piada. Piada pela piada. Eu acho que você tem que ir com a estaca no peito do cara”, comentou Angeli. Pensando nisso, Iberê começou a questionar a postura que a maioria das instituições tinha sobre não reconhecer o quadrinho, ou tratá-lo como mero entretenimento. “A maior parte da minha pesquisa foi questionar isso: se é entretenimento, porque ele faz essas críticas?”, disse.
Acordes teóricos
Em sua pesquisa, Iberê utilizou três conceitos para formar a base de seu trabalho e as nomeou como Acordes Teóricos. O nome foi proposital. “Eu brinco com a ideia do “Samba de uma Nota Só”, explicou o pesquisador, “toda pesquisa vai se basear em um, dois ou três autores principais, mas, assim como o samba, você tem que dialogar com outros autores”, afirmou.
O tripé é constituído por narrativa, midiatização e cotidiano. Procurando saber o que é narrativa, como se narra e como se mostra a narrativa do jornal, Barros procurou a Narrativa Crítica do Jornalismo, de Luiz Gonzaga Motta, e também O narrador: considerações sobre Nikolai Leskov, de Walter Benjamin.
Baseando-se no Ofício do Cartógrafo, de Jesus Martin-Barbero, Barros trabalha a Midiatização. É a ideia de que tudo que é produzido numa mídia é influenciado pela cultura na qual ela está localizada, assim como tudo que está num determinado lugar é influenciado pelos meios de comunicação. São teorias sobre o processo de como se constrói a comunicação
A última perna do tripé é construída com Michel de Certeau e a ideia do cotidiano. Certeau ajudou Iberê a entender o que é dia-a-dia. “Se a charge sai todo dia no jornal, ela é algo cotidiano, e então é preciso entender o que é o cotidiano”, comentou o pesquisador. “O jornalismo, assim como a charge, publica o que está fora do cotidiano, mas para saber o que é ou não é cotidiano, é preciso entender os limites”, concluiu.
O conceito de cultura também apareceu ao longo do trabalho e utilizou-se das concepções de Antonio Gramsci e de Raymond Williams. O primeiro trabalha com a ideia de que a cultura é hegemônica, é uma estrutura da sociedade que não pode ser rompida. O segundo apresenta a ideia de que a cultura é ordinária – quando Williams narra a saída dele do campo para a sala de aula de uma universidade ele descreve placas, roupas, hábitos e conclui que tudo aquilo que ele teve contato faz parte da cultura.
Narrativa
Em suas análises, Barros identificou diversas características presentes na charge de Angeli. A primeira apresentada foi o fato da charge ser uma narrativa, já que narra um fato a partir de uma representação gráfica e verbal, o fato que pode ser um momento específico, como uma pose de um político em uma foto, ou sobre uma coisa sentida na cotidianidade, como conflitos presentes em algumas áreas. “Mesmo que usando de superlativos, de metáforas e de recursos fictícios”, explicou Iberê, a charge “apresenta e critica uma situação”.
História
Barros também evidenciou a carga histórica da charge. “A charge é histórica, uma vez que se relaciona com o fato histórico, mesmo que ela esteja permeada pelas mediações com as quais seus atores e seus leitores se relacionam com ela e através dela pela midiatização da sociedade, ela tem um fundo factual”, comentou. O fato de que a charge pode ter sido deturpada, ser uma representação manipulada pelos sentimentos do ilustrador, pela subjetividade do desenhista, se torna um fator positivo durante a leitura, pois mostra um posicionamento sobre o momento registrado. “Diferente de um registro descritivo ou laudatório, temos um registro emocional e afetivo daquela passagem do tempo”, concluiu Barros.
Cotidiano e Midiatização
Levando em consideração os pontos já citados conclui-se que a charge faz parte do cotidiano justamente por se fundamentar nos fatos que ainda estão quentes no momento em que é produzida. Além disso, Iberê explica que, diferente de outras produções que usam a mesma linguagem artística, a preocupação com o seu contexto é direta e escancarada na produção da charge. “Não há uma charge que não exija do leitor o conhecimento do seu entorno e do seu contexto, de maneira, inclusive, que uma charge alocada em outro espaço e tempo, não surtirá o mesmo efeito”, disse.
Por ocorrer dentro do cotidiano e ter uma carga simbólica sobre o momento atual, a charge é intrínseca aos processos de mediação e midiatização da sociedade, já que se for vista apenas como ilustração ou representação gráfica perderia o discurso crítico sobre a realidade e teria apenas seu espectro artístico.
Humor
A charge também trabalha com o humor e, para isso, utiliza um fundo arcaico, ou mítico, que é a base do conhecimento que já está presente em toda a sociedade, para criar uma ruptura do que é cotidiano. Em resumo, a charge é sempre ruptura e o humor só existe pela suspensão de algo. A questão do “humor negro” ou do “humor politicamente correto” entra em outro espaço do estudo.
“Quando falamos de humor negro assumimos que há um certo e um errado, mas o humor é só a ruptura, a alteração. Se categorizar ele como politicamente correto ou incorreto, você trabalha com o que há dentro do humor, uma categorização que pode ser negativa ou positiva”, comenta Barros, sem isentar o papel importante que o humor tem na sociedade. “Não é porque você pode falar de tudo que você vai falar de tudo. Você pode falar o que quiser, mas tenha consciência do humor que você está fazendo e para quem e arque com as consequências do seu humor”, argumentou.
Por fim, Iberê tratou da charge como uma “narrativa do absurdo” e definiu: “Ela traz à tona uma ruptura, mesmo que ela não seja inicialmente aparente. Mostra ao leitor, através do desenho e das palavras, as impressões e sensações que o cotidiano nos traz, questionando-o” e que, apesar de se questionar quais os limites entre o que é verdadeiro ou é fictício nesse espaço não há uma diminuição no seu valor, mas “uma amplificação dos aspectos e contradições a serem observados”, concluiu Barros.