Democratização da comunicação: o embate da mídia brasileira

18/08/2016 14h40 - última modificação 04/04/2017 14h41

Arthur Marchetto

Pedro Zuccolotto

            A democratização da comunicação é um tema frequentemente debatido por profissionais da comunicação em todo o Brasil. A discussão se debruça sobre o processo de popularização dos meios comunicacionais através da pulverização das bases controladoras. No Brasil, atualmente, são poucos os grupos que gerenciam a quantidade de veículos que atuam no país e o material veiculado. A partir destas inquietações, o professor José Salvador Faro, docente da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e da Pontifícia Universidade Católica – SP (PUC-SP), explica que “uma mídia não democrática é caracterizada pela concentração de meios nas mãos de empresas. O que caracterizaria uma mídia democrática seria uma legislação que impedisse isso”, e completa, “nós temos 7 famílias que controlam a comunicação no Brasil numa sociedade plural de 220 milhões de habitantes. Como é que você acha que a mídia pode ser democrática?”

            Faro comenta sobre o papel do poder público na regulamentação da mídia e diz que, no momento em que “empresa de comunicação é capitalista ela se rege pelos princípios do capitalismo, a tendência é concentracionária e o Estado é quem deveria evitar isso”. O prejuízo não é causado pelas linhas editoriais e, sim, pela falta de opções no mercado comunicacional. “A Folha é conservadora, tem todo o direito. O Globo é conservador, tem todo o direito. O que não é direito é a sociedade só dispor dessa informação e ninguém toma controle para evitar isso.”, conclui.

Além disso, o professor comentou sobre mídias alternativas, papel do jornalismo colaborativo, precarização do trabalho jornalístico e a participação das mídias sociais no compartilhamento das informações. Confira abaixo a entrevista completa:

 

CÁTEDRA UNESCO/UMESP: O que caracteriza uma mídia democrática?

José Salvador Faro: Uma mídia não democrática é caracterizada pela concentração de meios nas mãos de empresas. O que caracterizaria a democracia seria uma legislação que impedisse isso. Os meios não podem ser concentrados no ponto de vista do capital e também uma mesma empresa não pode ter veículos concentrados em várias regiões, nem muitos veículos de naturezas diferentes. Isso cria um monopólio da informação, o que é prejudicial para a democracia.

Mais concessões, mais canais de comunicação auxiliariam, desde que houvesse algum tipo de regulação para a programação porque, no caso da televisão, é a concessão pública de um canal que uma empresa pode operar, mas no Brasil acontece uma coisa curiosa: essa empresa subloca esse canal para programadores e programas que não têm nada a ver com os objetivos educacionais e mais nobres da televisão, por exemplo igrejas evangélicas que sublocam e não é um projeto da mídia se transformar em palco de manifestações religiosas. A mídia tem que ser pública e não confessional.

 

C: Essa é uma realidade brasileira? Por quê?

JSF: Não. Na Argentina, por exemplo, um dos embates da Kirchner com o congresso foi justamente ela evitar que houvesse concentração de veículos nas mãos da empresa Clarín. Agora, com a chegada do [Mauricio] Macri no poder, acabou sendo revogada, o que é uma perda para a democracia argentina.

Eu tenho a impressão que essa situação se repete na América Latina e deve se repetir em alguns países da Europa. A medida que a empresa de comunicação é uma empresa capitalista, que ela se rege pelos princípios do capitalismo, a tendência é concentracionária e o Estado é quem deveria evitar isso. O Estado e a sociedade, por isso sou a favor de conselhos de comunicação formados por representantes da sociedade.

 

C: As redes sociais digitais se tornaram o maior local de procura por informações. É possível dizer que a grande mídia se tornou democrática ou, pelo menos, pluralizou suas vozes?

JSF: Não. Eu acho que os canais alternativos de informação pela via digital estão forçando a grande mídia a procurar democratizar suas informações, mas isso é consequência de uma nova realidade que o jornalismo está vivendo. Vou dar um exemplo para você com a cobertura que está ocorrendo sobre as manifestações contra o governo do Temer: uma boa parte dessas informações circulam nos canais alternativos e a mídia, às vezes, vai atrás porque ela fica superada na cobertura das mídias digitais, nos blogs... A internet divulga informações que não eram nem averiguadas e nem apuradas pela mídia tradicional e provocam o efeito de busca por mais credibilidade.

 

C: Os jornais internacionais tiveram muita presença durante a cobertura do impeachment no Brasil, inclusive criticando a conduta da imprensa brasileira. É possível dizer que a imprensa internacional se tornou mais confiável que a nacional?

JSF: No caso do impeachment, sim. A maior parte das boas informações políticas que consegui foi através do El País e do Intercept. Os jornais norte-americanos foram muito rigorosos com a cobertura do impeachment, mas a denúncia do golpe é comum na imprensa internacional. Ela só não é comum na grande imprensa brasileira. O episódio de manipulação da pesquisa da Folha foi denunciado por um jornalista americano do Intercept e quem foi atrás foi o Tijolaço, um veículo alternativo, e atrás dele foi o El País. Então esse caso é o exemplo do trajeto que a informação circulou, e que talvez seja como circula hoje. De um veículo estrangeiro para um veículo alternativo e de um alternativo para um outro órgão estrangeiro, só então os jornais deram a notícia e a Folha foi obrigada a admitir o que fez.

 

C: Existe uma mídia alternativa ou independente no Brasil?

JSF: Existe. Ela é independente, formada por jovens jornalistas ou por comunicadores que não querem cair no esquema da grande mídia. Eles compõem páginas, blogs, sites alternativos de informação, sites que são organizados por grupos sociais de gênero, etnia... Acho que o que aconteceu nos últimos dez anos foi uma pulverização dos canais de informação em consequência das possibilidades técnicas. Você pode ter o seu canal e isso põe em circulação na esfera pública uma quantidade de informações que, na minha opinião, acaba forçosamente democratizando o debate sobre as questões porque todas as pessoas que tem presença nisso veiculam. Acho que uma parte dessas mídias alternativas surge impulsionada pelos movimentos sociais e não propriamente por movimentos de natureza jornalística. Cria-se um movimento de defesa e essas informações que circulam no grupo acabam ganhando uma dimensão jornalística, mas o ponto de partida é uma defesa de demandas características daquele grupo.

Quando eu vejo uma notícia na grande imprensa eu vou procurar nesses portais alternativos para poder ver se os grandes jornais estão veiculando a informação corretamente. Geralmente, eu constato que não. Não que eles estejam mentindo, mas sim que não estão dando informação suficiente e precisa. Por exemplo, manifestantes levantaram cartazes de “Fora Temer” por 42 quilômetros na Olimpíada. A grande imprensa está escondendo esses fatos que estão acontecendo de manifestações, todas as informações que fogem um pouco do padrão do glamour da Olimpíada. E isso é um fato importante porque mostra que o mundo não está perfeito. As mudanças que feitas nas ruas populares do Rio deram uma plástica para poder receber imprensa. O Rio hoje é uma cidade ocupada.

 

C: É defendido que, para pluralizar as vozes e melhorar a situação econômica dos grandes veículos, é preciso utilizar um modelo de negócios baseado no jornalismo colaborativo entre grandes e pequenos grupos de comunicação. Você concorda com isso?

JSF: Se isso não ferir os princípios do jornalismo, eu concordo. Qualquer tipo de atividade colaborativa é sempre avançada desde que quem colabore não se assuma como patrão ou como dono do jornal. Vamos fazer uma empresa comunitária nossa e depois começaremos a adotar o princípio da empresa, mesmo com nome de comunitário, e atropelar os princípios do jornalismo? Precisaria ver que tipo de modelo de negócio baseado em jornalismo colaborativo. Estão falando que esse é o capitalismo do futuro. Eu duvido que uma empresa abra mão dos seus interesses privados para se tornar colaborativa.

 

C: A grande imprensa está enxugando redações e está sem base econômica para manter uma produção de qualidade. Algumas vezes acabam recorrendo aos materiais publicados em portais alternativos, ou em adquirir material de terceiros.

Esse modelo não está se tornando comum, inclusive seu hábito de consumo citado?

JSF: Isso não está acontecendo só comigo e não sei esse é o caminho para uma imprensa colaborativa. O que indica é que existe uma imprensa tradicional que não está dando conta da sua tarefa de informar o público porque ela está preocupada em manter a sua rentabilidade. [A imprensa] enxuga os quadros da redação e, se faz isso, produz menos jornalismo para poder garantir a rentabilidade. Eu penso que se uma imprensa faz isso, se ela quiser aumentar sua lucratividade transformando os repórteres em colaboradores, o que seria uma imprensa colaborativa, na verdade ela está dando um golpe na profissão do jornalista e transformando o jornalista em um colaborador.  O jornalista é um profissional. Ele tem que ser contratado pelo jornal, receber o seu salário de maneira digna e fazer a operação para qual ele se formou.

O profissional passa a ser chamado de colaborador ou cooperativado e, nos casos que eu conheço, posso estar sendo injusto, sempre há uma tentativa de a empresa burlar os compromissos sociais que ela tem: salário, fundo de garantia, décimo terceiro e as obrigações trabalhistas. É aquilo que deixa um trabalhador tranquilo: saber que ele vai receber o salário no fim do mês, ter direito a férias, décimo terceiro, etc. E não ficar preocupado com “será que esse mês a minha cooperativa vai ter remuneração?”. Por exemplo, a Folha de São Paulo acabou com o jornalista contratado. A maioria do pessoal que trabalha lá é freelancer ou é terceirizado. Então, a alternativa que a gente pode pensar que democratizou, porque o cara agora pode fazer freelance em vários veículos, na verdade precarizou o trabalho dele. Um cara que trabalha para vários veículos trabalha de maneira precária, ao contrário daquele que trabalha para um veículo só, que tem o compromisso com a linha editorial do jornal e conhece mais ou menos a cultura daquela redação.

Se eu presto serviço para Folha, para o Estadão, para o Diário do Grande ABC, para o Diário de São Paulo, eu fico produzindo um jornalismo absolutamente despersonalizado porque eu vou produzir cada matéria de acordo com o perfil de cada veículo. Isso é colaborativo? Isso é bom? Não, nem pro jornalismo e nem para o profissional. Se torna precarizado, porque o cara perder de vista qual é o tipo de prestação de serviço público que o jornal faz, perder de vista o compromisso dele com o interesse público. Ele faz uma notícia correndo aqui e tem que entregar outra logo. É assim que funciona.

 

C: E se for uma colaboração entre empresas de comunicação, não com freelancers?

JSF: Não vejo nisso um mal. Se você está respeitando o trabalho de cada grupo, não tem problema. O que eu vejo com receio é uma maneira de você enxugar os gastos às custas do jornalismo, porque o profissional é a consequência disso. Não pagar os tributos, não pagar os direitos do trabalhador porque aí eu vou poder ter uma sustentação financeira melhor, vou criar uma empresa e entro no ramo do empreendedorismo. Eu vejo com desconfiança isso. Há um lado mais fraco nessas inovações que é o trabalho. Eu escrevi um artigo sobre o empreendedorismo e como isso tem subvertido o conceito de trabalho. Não existe um mundo onde todo mundo vai ser patrão. Existe algo sedutor nisso, mas lá na ponta precisará ter alguém carregando.

São maneiras que o neo-capitalismo inventa para aumentar a lucratividade. Os empresários fazem aquilo que eles acham que tem que fazer e acham que estão certos. Nós é que não podemos cair na ilusão de que isso é um sonho. Eu vejo com restrição qualquer coisa que fuja de relações de trabalho regulamentadas pela lei, que foi pensada durante muitos anos no Brasil para assegurar direitos sociais.

 

C: Então, dentro desses parâmetros, o jornalismo colaborativo entre as empresas aumentaria a democratização da mídia?

JSF: Sim, mas tem que respeitar a profissão, os códigos éticos normativos jornalísticos. É complicado isso. O que que é prioridade? O guarda-chuva, no caso do jornalismo, é o interesse público, o compromisso com a verdade, com a objetividade dos fatos, bons textos, liberdade de imprensa... E vamos fazer o que embaixo? Vamos fazer o que você quiser, mas sem desrespeitar aquilo... vou dar um exemplo da assessoria de imprensa: Está todo mundo com a mão coçando para abrir uma assessoria de imprensa e é uma alternativa dos jovens formados.

Eu ponho dúvidas se assessoria de imprensa é jornalismo. Quando você vai prestar uma assessoria de imprensa você passa a trabalhar em função da imprensa para qual você presta assessoria e não necessariamente em função da notícia, e isso é delicado. Se eu fizer uma assessoria de imprensa para uma empresa que vende um produto que tem mercúrio, como é que eu faço se tenho consciência de que está sendo prejudicial para a saúde ou algo parecido? Então a assessoria de imprensa pode ser um tipo de um modelo do jornalismo colaborativo, porque jovens formados fundam uma imprensa de assessoria, habilidosos em tecnologia, em interatividade e fazem uma assessoria completamente virtual. Não tem mais pessoas, o esquema é todo muito ágil e competente, mas no final essa sofisticação técnica, esse brilho tecnológico, pode reduzir o DNA do que a empresa faz, que é jornalismo.

 

C: Você diria que um dos princípios desse guarda-chuva do jornalismo seria ter a pluralidade de voz?

JSF: Sim, com certeza. Em vários veículos. Por isso sou contra a concentração empresarial de mídia. Nós temos 7 ou 8 famílias que controlam a comunicação no Brasil, numa sociedade plural de 200 milhões de habitantes. Como é que você acha que a mídia pode ser democrática?

Aliás, quando saiu aquela pesquisa da Folha que 62% não queriam nem Temer nem Dilma, o jornal Estadão escreveu assim: a maioria nem sempre sabe da verdade. A maioria nem sempre está certa. Olha que coisa, rapaz! Como é que pode 62% ter algum motivo para não querer nenhum dos dois? Mas o Estadão não está errado e não é verdade que sempre acontece isso. O noticiário pode ser muito bom porque tem bons profissionais, mas o noticiário político do Estadão é muito editorializado. Ele tem muito dedo da política editorial do jornal, que é um jornal conservador e ele tem todo o direito de ser isso. A Folha é conservadora, tem todo o direito. O Globo é conservador, tem todo o direito. O quem não está direito é a sociedade só dispor dessa informação e ninguém não toma controle para evitar isso. Tinha que ter uma legislação que impedisse essa concentração. Eu sou a favor de cada profissão ter um conselho.

 

C: ...autoregulamentado?

JSF: Isso. Se não for autoregulamentado que tenha um conselho formado por pessoas brilhantes da área e inatacáveis, gente com reputação absolutamente limpa, que ia analisar casos de abusos. Então, por exemplo, o médico cometeu um erro, o paciente ficou aleijado ou morreu, ele tem que ser punido. A profissão dele está preservada pelo fato que ele é um médico, mas se ele cometeu alguma irresponsabilidade, receitou um medicamento inadequado ou às vezes até nem testou o medicamento que ele receitou, tem uma punição para isso, não se brinca com a vida assim.

Quando o pessoal da FNAJ quis criar o conselho de jornalismo, que era o conselho que ia ter a mesma função da OAB, do Conselho de Medicina, a grande mídia moveu contra essa iniciativa uma campanha que dá até pena, porque eles conseguiram fazer uma associação, na minha opinião mentirosa, de ideias que o conselho queria estabelecer uma censura. Nunca foi isso. O conselho queria estabelecer normas éticas do jornalista.

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