Comunicação popular e comunitária: um panorama brasileiro

13/10/2016 11h04

Foto: Pedro Zuccolotto

Arthur Marchetto

Pedro Zuccolotto

 

Os grupos tradicionais de comunicação dominam a mídia brasileira. Informações que são consideradas de importância nacional tomam conta do mercado de notícias em todos os níveis. Isso causa um afunilamento das visões compartilhadas pela grande imprensa, reduzindo, assim, a gama de informações obtidas pela população sobre a sua comunidade e o ambiente ao seu redor. Torna-se necessário, portanto, além da mídia alternativa, uma comunicação que tenha um enfoque mais comunitário e local: a comunicação popular.

Para tratar sobre esse assunto, a professora Cicilia Maria Krohling Peruzzo, docente na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e doutora em Ciências da Comunicação, discorre sobre o que é essa comunicação e qual o seu papel no Brasil. Ela destaca que “esse tipo de comunicação é fundamental no sentido da mobilização e da conscientização das pessoas e no sentido do exercício do próprio direito de comunicar”.

Apesar de desempenhar papel tão importante, esse tipo de comunicação se encontra desestimulado na sociedade, reforçando a soberania dos grandes grupos da mídia nacional. “Eu acho que esse tipo de comunicação é apenas tolerado”, conclui a professora. Além disso, outros temas como educação na comunicação popular, democratização da mídia e publicidade na mídia local também foram abordados na entrevista, que você confere na íntegra logo abaixo.

 

CÁTEDRA UNESCO/UMESP: Como você define comunicação popular?

Cicilia Peruzzo: Comunicação popular é aquela desenvolvida no contexto das comunidades, dos movimentos sociais. Poderíamos até chamar de comunicação popular e comunitária, porque tem aspectos nesse ambiente.  É aquela comunicação feita a partir das comunidades, dos grupos sociais, e que visam todo um processo de conscientização ou de mobilização e também procura a apropriação dos meios de comunicação, buscando os interesses dessas mesmas comunidades. Uma comunicação feita por eles e para eles.

 

C: A comunicação popular considera o receptor de uma maneira diferente da trabalhada pela comunicação em massa?

CP: Sim. Na comunicação popular e comunitária o receptor é alguém que, às vezes, se confunde com o próprio emissor. É um processo em que as próprias pessoas estão desenvolvendo a comunicação. É claro que há casos em que se fala para um público mais amplo, mas há casos em que esses dois momentos da comunicação se misturam.

Ao falar para um público mais fechado você usa um tipo de comunicação que está sempre voltado para uma questão específica desses grupos: ou um problema social a ser discutido, ou uma mobilização visando a transformação de alguma realidade concreta. Nesse sentido, o receptor é sempre tomado como um alguém ali dentro. Está falando para as pessoas que vivem naquele ambiente ou que participam daquele grupo, então não tem aquela dimensão da mídia tradicional, de ver o outro como aquele diferente que você vai apenas informar, mas ver o outro como alguém que participa, de alguma forma, e que tem total relação com aquele ambiente, com aquela proposta. Um receptor inserido naquele contexto. Ativo e participante, não um receptor desconhecido.

 

C: Qual a importância da comunicação popular para a sociedade e para a cidadania?

CP: Na experiência brasileira, esse tipo de comunicação é fundamental para a mobilização e conscientização das pessoas, no sentido do exercício do próprio direito de comunicar. Normalmente, o que se tem são os grandes meios de comunicação servindo à sociedade de uma maneira geral: fornecer informação, provocar o debate... mas esses grandes meios de comunicação, em geral, não se dedicam a essas temáticas mais específicas das comunidades, dos movimentos sociais. Às vezes até se dedicam, mas desvirtuando ou manipulando a informação, segundo os interesses dos próprios grupos de mídia.

Na comunicação popular e comunitária, não. Nesse universo está uma comunicação que tem a sua importância justamente por se ocupar de uma perspectiva da realidade que é pouco trabalhada nos grandes meios, e a importância vem justamente por dar conta de uma realidade, ou das realidades, das pessoas a partir de situações que, se não for dessa maneira, não serão tratadas. O próprio processo de comunicação auxilia na dinâmica de conhecer a realidade e de falar sobre essa realidade tendo em vista, sempre, sua modificação e isso ajuda a desenvolver a cidadania, ajuda a mostrar que a sociedade é mais ampla e complexa do que aquilo que sai na grande mídia. 

 

C: É como se ela tivesse, além do papel de informar, um papel pedagógico?

CP: Exatamente, inclusive ele vem, não só pelo conteúdo que é transmitido, um conteúdo esclarecedor que informa, mas também pelo próprio processo de fazer comunicação. É fazendo comunicação, participando ativamente, que as pessoas vão tomando mais consciência da própria realidade, de que elas podem fazer comunicação também.

O envolvimento no fazer comunicação não é só dando entrevista, depoimentos ou pedindo uma música no rádio. Você participa como emissor, como alguém, um ator daquele processo. Isso educa.

 

C: E qual o papel que essas mídias de comunicação adquirem no processo educação de alguém?

CP: Um papel de educação informal. Às vezes vemos como educando só a escola, ou a universidade. Mas não é, os meios de comunicação também participam desse processo de educação, informal. Os meios comunitários e populares agregam esse aspecto, não só o educar pelo conteúdo, mas o dito educar pelo envolvimento no próprio processo.

Isso só acontece quando esses meios são democráticos e altamente participativos. Porque é uma realidade às vezes controversa que pode não ser um processo tão avançado, o que gera conflitos, então eu falo desses aspectos como fundamentais na parte conceitual que explica esse tipo de comunicação.

 

C: Você fez, recentemente, uma introdução para a revista de Agriculturas e comentou como a comunicação comunitária tem auxiliado no processo de agroecologia...

CP: Sim, tem auxiliado muito e até foi importante você ter tocado nisso. Nós podemos pensar na comunicação popular, comunitária, não só naquela dimensão em que envolvem meios de comunicação, que seria o rádio, o boletim, o vídeo. É tudo isso, mas é mais do que isso: é também a comunicação presencial, a comunicação por meio do diálogo. Comunicação que se dá nos grupos, nas reuniões, no contato interpessoal.

Realmente, no mundo rural, esse tipo de comunicação faz parte dessa comunicação popular e, ás vezes, é a que está mais presente, porque é a forma como as pessoas se relacionam, se comunicam, se organizam. É bem importante a gente pensar a comunicação popular comunitária além daquela que a gente visualiza pelos meios tecnológicos.

 

C: Em relação ao tema Democratização da Comunicação, é possível dizer que a participação popular tem relevância nisso?

CP: Tem. Muita. Acho que falar em democratização da comunicação é falar também na democratização de números de meios de comunicação, democratização do poder de acesso aos meios de comunicação. Isso significa democratizar no sentido de aumentar o número de emissores e, com isso, ter uma diversidade maior de vozes interferindo no cenário geral da sociedade, discutindo política, mostrando questões da sociedade, discutindo grandes problemas, valores e etc., como a questão da mulher, do jovem, do negro. São tantas questões, uma diversidade grande de atores, de emissores, que tem potencial para se discutir.

Se não há democratização dos meios de comunicação nós não temos a democratização da comunicação, que é justamente a possibilidade de externar essas vozes, as diferentes vozes sobre uma mesma questão. Se a gente tem uma mídia altamente controlada só por grandes grupos econômicos, não haverá democratização da comunicação e será a visão desses grupos.

 

C: A gente tem caminhado nesse sentido, algum avanço foi percebido no cenário comunicacional?

CP: Tem, temos alguns avanços que poderíamos mostrar pelos próprios meios públicos e comunitários de comunicação. Apesar de grandes limites, das grandes contradições, nós temos uma lei de rádiofusão comunitária, de 1992. Foi uma forma de possibilitar as associações pelo país inteiro de terem os próprios meios. Outra a gente poderia dizer a comunicação pública. Com a lei de TV a cabo houve um avanço da sociedade da sociedade civil, através do fórum nacional, pela democratização da comunicação que lutou para ter uma lei democrática de TV a cabo, para não continuar na mesma linha que a TV aberta, onde você tem grandes grupos econômicos de origem familiar que controlam esses meios e foi ali que foram instituídos os 7 canais de uso público, entre eles o canal universitário de televisão, os canais legislativos, em nível federal, estadual e municipal, é um sinal de avanço.

Apesar de não serem canais de comunicação tão apreciados pela sociedade estão aí e são novos emissores produzindo comunicação. Para os alunos de comunicação, isso abre uma grande possibilidade de atuação, principalmente do ponto de vista da diferenciação dos conteúdos, que você tem que pensar conteúdos diferentes, não só pensar no telejornal ou no entretenimento para os grandes meios, é outra lógica que rege esses canais. Isso é um processo importante da democratização.

Claro que não é suficiente, se deve avançar muito, principalmente quebrando os oligopólios da grande mídia. Qual a realidade brasileira agora? Temos os grandes jornais, as TVs abertas com a predominância de um olhar sobre a realidade. Cadê o embate? Cadê os outros meios que podiam ter uma visão diferenciada dos fatos? Se não for pelas mídias alternativas, nós não temos isso. As mídias alternativas estão desempenhando um papel fundamental nesse sentido, mas não tem o poder de alcance que tem a grande mídia.

 

C: Como a falta de acesso da população aos grandes canais de comunicação afeta a vida dos receptores?

CP: É justamente porque recebem uma visão das coisas que é contra o próprio segmento da população que acabam incorporando visões que vão contra eles mesmos, sem, às vezes, terem consciência disso. É a falta dos confrontos, de outras visões, que podem dar conta de uma discussão mais ampla, de visões mais amplas. Quem só lê Veja vai ter uma visão de Brasil e essa visão de Brasil é favorável para o país, para a política, para a democracia?

Eu vejo como muito importante, nesse momento, o papel das mídias alternativas, que estão trazendo o contraponto, outro olhar. Muitos grupos estão fazendo outro tipo de abordagem, de cobertura, como jornalistas independentes ou o Mídia Ninja, mas que não têm a presença geral. Estão na internet, tem um grande poder dentro das mídias sociais, mas que não tem o alcance que tem uma TV aberta na realidade brasileira de hoje.

 

C: De que maneira as redes sociais tem influenciado a comunicação popular?

CP: Os meios alternativos usam muitas plataformas colaborativas de comunicação. Os próprios movimentos sociais, associações, coletivos e etc., vão criando seus próprios meios, seus próprios canais e também os observatórios de comunicação e de mídia. Eu acho que eles são muito importantes e têm crescido muito no país. Inclusive tem um dedicado à questão da democratização da comunicação, que se chama Intervozes. Ele criou um laboratório de democratização da comunicação e acompanha todo esse movimento. Por um lado denunciando os grandes meios, mas por outro também prestando atenção nessa democratização que ocorre no contexto da sociedade, uma grande pressão nacional em torno da democratização das políticas de comunicação.

A sociedade não está parada, há um processo, uma dinâmica muito interessante de luta para as coisas irem mudando e a internet, nesse sentido, ajudou muito porque expande a possibilidade de presença no mundo. É claro que essa liberdade não é tão ampla quanto se pareceu no primeiro momento. Eu vejo no Facebook que recebo as coisas de alguns, não de todos, porque tem o controle do próprio sistema, dos algaritmos que selecionam o conteúdo. Tudo isso é ainda muito controvertido, mas não resta dúvida de que qualquer grupo social hoje pode ter o seu blog, sem muitos custos, pode acompanhar mais o que está acontecendo no país por meio dessas mídias digitais do que se ficasse só presa aos canais convencionais de comunicação. Imagina a gente só sendo informado só pelos grandes canais de comunicação? Se fosse assim, não estaríamos sabendo que o Temer escrachado em Nova York.

 

C: O governo incentiva a comunicação popular?

CP: Depende do governo de plantão... É bem controverso. Por exemplo, você teve no rádio uma lei que garantiu a possibilidade de se falar sem ser na clandestinidade. É uma lei com muitas restrições. Ela foi regulamentada pelo governo, saiu do congresso, mas não tem avançado muito. Nós tivemos a Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro de 2009, que tirou centenas de propostas para resolver o problema da comunicação no país e isso não avançou. É bem complicado.

Eu acho que esse tipo de comunicação é apenas tolerado. Não há nada que possa, ou tem sido usado, para o avanço. As políticas de comunicação são mais impeditivas do que facilitadoras desse tipo de comunicação, mas já tivemos prefeituras que pensaram as políticas de comunicação em nível municipal, ou do estado, como foi o caso de Porto Alegre. Toda uma proposta de democratização, de comunicação, a partir de política estadual de comunicação, que representou bastante avanço... mas depois muda o governo e essas coisas vão se esvaziando muito.

 

C: E como os meios de comunicação popular se mantem financeiramente?

CP: No caso das rádios comunitárias a lei proíbe publicidade, então, a fonte de recurso é o apoio cultural, que é o anuncio institucional muito curto das instituições e comércio local. Às vezes conseguem doações e também funciona muito na base do trabalho voluntário. Vão se mantendo assim, na raça, podemos dizer. Uma doação aqui, outra ali. Não existe uma política pública que permita um tipo de financiamento para esses veículos. A lei diz: “não pode ter publicidade, mas se vira para você sobreviver”. As organizações vão sobrevivendo. O apoio cultural não é suficiente para manter uma rádio comunitária e acaba acontecendo que não dá para respeitar a lei e, de uma forma ou de outra, acabam tendo um apoio da publicidade que não se restringe só ao apoio cultural. A prática leva a isso. Se não há outra forma, o que vai fazer?

 

C: As redes sociais acabam ajudando financeiramente?

CP: Não tenho visto. Seguem a linha que falei e, às vezes, fazem festas no bairro. Rifas. Festas no bairro. Coisas que vão surgindo conforme surgem as necessidades e as condições de cada local.

 

C: Você acha que a proibição da publicidade é um erro?

CP: É controverso. Por exemplo, o movimento popular é bem dividido quanto à isso. Uns dizem que realmente não pode ter, pois condicionaria o resto da produção. Outros discordam e dizem “se não tiver, como vamos sobreviver?”

Do meu ponto de vista, não haveria problema de ter esse tipo de suporte, desde que realmente o meio de comunicação, a organização de comunicação popular tivesse total domínio e clareza de que o financiamento não vá condicionar o resto. Manter uma liberdade de atuação para que não haja os condicionamentos que a grande mídia tem: quem bota mais anuncio vai ser poupado de críticas. Não pode ser por aí. Isso pressupõe um avanço muito grande da organização popular no sentido de clareza de não se deixar condicionar por esse tipo de apoio.

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