“A obscena senhora D” encontra uma Hilda Hilst angustiada

Autora aborda temas como Deus, a morte e o corpo

06/07/2018 14h30 - última modificação 07/07/2018 07h45

Imagem: Yuri Vieira

Igor Neves

Em vida, Hilda Hilst sempre quis ser lida, tinha desejo de se comunicar. Porém nunca alcançou os leitores que tanto desejava. Transmitiu parte de suas frustrações para seus livros que contêm personagens autores que não conseguem ser publicados, e são aconselhados por seus editores a escrever livros pornográficos para fazer sucesso.

Hilda nasceu na cidade paulista de Jaú, em 1930. Filha de Bedecilda Vaz Cardoso e Apolônio de Almeida Prado Hilst, um cafeicultor, poeta e jornalista. Formou-se em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e aos 20 anos publicou seu primeiro livro de poemas, fortemente influenciado pelo classicismo, Presságio (1950). Foi prontamente recebida com entusiasmo por muitos de seus contemporâneos, como Cecília Meireles e Jorge de Lima.

Em 1966, passa a ter a literatura como modo de vida ao mudar-se para Casa do Sol, em Campinas, onde viveu até sua morte, aos 73 anos. Entre 1967 e 1969 escreveu algumas peças de teatro, que receberam muitas poucas encenações, antes de se aventurar na prosa.

Foi só após a sua morte, em 2004, que Hilda passou a ter o reconhecimento que sempre desejou. E esse ano recebe um de seus maiores tributos ao ser a autora homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2018, que acontece entre os dias 25 e 29 de julho.

A autora teve uma extensa atuação literária, que conta com 25 livros de poemas, 11 romances e 8 peças de teatro. Suas obras abordam temas como o corpo, a morte, o amor e Deus. Esses assuntos podem ser observados em um de seus livros mais conhecidos, A obscena senhora D (1982).

Apesar de ser uma narrativa curta, que pode ser lida em poucas horas, é uma obra arrebatadora. Escrito de forma verborrágica, o livro passa a impressão, num primeiro momento, de ser um fluxo de consciência, porém o leitor é surpreendido por outras vozes que surgem de repente e vão embora da mesma forma. Há momentos em que a leitura precisa ser interrompida para que se entenda quem está falando, afinal a autora não separa fala de pensamento e presente de passado. O leitor é jogado nessa confusão e cabe a ele desvenda-la.

Na história, acompanhamos Hillé, uma mulher que após a morte do marido, Ehud, vive sozinha, ocupando o vão embaixo da escada. Nos poucos momentos em que abre a janela de sua casa aparece com alguma máscara que assusta as crianças da vizinhança. Todos a chamam de senhora D, apelido dado por seu marido. O D é de derrelição, que significa desamparo, abandono.

A narrativa alterna entre o que acontece na casa, os diálogos dos vizinhos sobre a senhora D e as conversas que ela teve com o marido no passado. Tudo parece acontecer no mesmo tempo, em um fluxo tão confuso quanto a protagonista.

Hillé é uma pessoa extremamente reclusa. Recua diante qualquer tentativa de aproximação externa, discute, xinga, grita. É atormentada pela existência, não consegue compreende-la. É cheia de perguntas que não encontram respostas, não consegue compreender nem o próprio corpo, nem os outros.  

“deverias ter casado com outro
por quê?
esses doutos, falantes, esses da filosofia, ai, devemos no amar, Hillé, para sempre, eu te dizia: tu tens vinte agora, eu vinte e cinco, pensa tudo isso não vai voltar, não terás mais vinte nem eu vinte e cinco, teremos cinquenta cinquenta e cinco, e vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás ao sessenta. eu estarei morto
por quê?
causa mortis? acúmulo de pergunta de sua mulher Hillé.”

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Imagem: Instituto Hilda Hilst

O questionamento da fé também está presente na obra, a senhora D já parece não acreditar em Deus, no conforto que deveria oferecer. Ela conversa com Ele, o diminui, cobra, humaniza.

“eu gritando que deus era uma menino louco
...
Pergunto ao Menino Louco: estás ai com Ehud? Morte, asqueroso, inchado, vermes, fosso fazem parte de Ti?
Hillé, nada de mim é extensão em ti
Não fizemos um acordo?
O quê?
Não és Pai?
Nem sei de mim, como posso ser extensão num outro?
Não houve um contrato?
Quê? Estás louca. Vivo num vazio escuro, brinco com ossos, estou sujo sonolento num deserto, há o nada e o escuro
Não te escuto
Digo que durmo a maior parte do tempo, que estou sujo
O quê? O quê, meu Deus? Não te escuto
Que um dia talvez venha uma luz daí
Quê?”

Hilda nos mostra todas as angústias do ser humano como a vida, a morte, a nossa existência, a fé. E, assim como Hillé, não conhece as repostas.

O pai de Hilda teve papel importante durante toda a sua carreira. Ele foi diagnosticado com esquizofrenia e internado em uma clínica quando ela tinha apenas 5 anos. Nesse livro ele parece assumir a forma do pai de Hillé, que em seus momentos finais pede a Ehud que não deixe sua filha seguir o mesmo caminho que ele, que não faça as mesmas perguntas que ele fez.

O pai de Hilda teve papel importante durante toda a sua carreira. Ele foi diagnosticado com esquizofrenia e internado em uma clínica quando ela tinha apenas cinco anos. Em “A obscena senhora D”, o pai de Hillé parece assumir a forma do pai de Hilda. Observa-se quando em seus momentos finais, ele pede a Ehud que não permita que sua filha siga o mesmo caminho que ele, e que não faça as mesmas perguntas que um dia ele fez.

Ela pode não ter conseguido o sucesso que queria enquanto era viva, talvez por ter nascido num país de poucos leitores, quem sabe por escrever de forma não tão acessível, como desejavam os editores, ou até mesmo por sua ousadia. Porém, agora surgem cada vez mais leitores e admiradores de sua obra. Antes tarde do que nunca.

 

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