Tome Partido
Perfil
Douglas Belchior
Dos estudos à militância política, a trajetória de um negro que não virou estatística e que dedica sua vida à luta pelo fim do racismo no Brasil
Por Lucas Ichimura, Leticia Gomes e Rodrigo Loureiro
De segunda a sexta-feira, às 7 horas da manhã, Douglas Belchior entra na sala de aula, se dirige a lousa e começa a lecionar história. Em 50 minutos, ele tenta passar para os seus alunos de ensino médio da rede pública não só o que aprendeu na faculdade, mas o que uma vida de militância política o ensinou. O professor, que poderia ser confundido com um rapper, por seu vestuário e aparência, não faz da política um trampolim para melhorar de vida. Vindo de família humilde e com quatro filhos de dois relacionamentos diferentes, sua tentativa beira certo heroísmo: mudar a história. Dele e de milhões de brasileiros.
Vítima de preconceito, Douglas tinha de tudo para ter o destino típico da maioria dos jovens negros no Brasil. A eles, cursar uma faculdade é uma exceção - apenas 6% do total de formandos do ensino superior são negros, embora representem mais da metade da população. Mesmo assim, conseguiu sair das estatísticas e graças a uma bolsa de estudos concedida pela universidade, graduou-se em história na PUC, uma conceituada universidade particular de São Paulo. Desde pequeno, frequentou escola pública, um espaço que, segundo ele, contribui para a manutenção do pensamento conservador. “A educação é um elemento que pode libertar ou aprisionar. Tudo que a gente vive hoje é fruto de uma educação conservadora, tanto dentro da escola como fora dela”, contou.
Sua jornada como militante começa no bairro Vila Romana, na pequena cidade de Poá, localizada a 34 quilômetros da capital paulista. O mais velho dos três filhos de Wandico e Elza Belchior, 63 e 56, o garoto sempre foi bem relacionado e fazia amigos com facilidade. A educação rigorosa dos pais o afastou dos perigos e o aproximou dos estudos. Apesar de fazer parte de uma "turma boa", como ele mesmo caracteriza, Douglas reconhece que era diferente dos amigos que, como qualquer criança, não gostavam muito de estudar.
Desde adolescente, quando saía para jogar futebol com os amigos do bairro, Douglas fazia política; ele mobilizava a turma para arrecadar cestas básicas para os mais pobres. Esse espírito de solidariedade foi herdado da mãe, muito religiosa, que sempre ajudou e recebeu ajuda da igreja Católica. Antes mesmo dos 15 anos, ele já participava de pastorais de juventude e organizava grêmios estudantis na escola. Na classe, ele tinha um carinho especial pelas aulas de história, disciplina que mais tarde viria a se tornar o seu ganha pão.
Douglas só reconheceu a política como algo importante quando conheceu mais a fundo as ideias socialistas de Karl Marx. Ele se identificou com as mesmas logo de cara, pois, segundo ele, são muito parecidas com os princípios religiosos que aprendera com a mãe.
Não dá, no entanto, para resumir a base teórica da trajetória política de Douglas à religião. Ele próprio admite não ser uma pessoa religiosa. Talvez, por isso, um outro elemento também possa marcar o início de sua militância: o rap.
As rimas fortes que denunciavam a dura realidade do negro e do pobre que mora na favela fizeram parte da educação do promissor militante que crescia em Poá. A prova disso é que a música preferida de Douglas dos Racionais MC’s, “Racistas Otários”, traduz exatamente as suas concepções sobre a atual condição da população negra no Brasil.
“Os poderosos são covardes desleais/Espancam negros nas ruas por motivos banais/ E nossos ancestrais/ Por igualdade lutaram/ Se rebelaram morreram/ E hoje o que fazemos/ Assistimos a tudo de braços cruzados/ Até parece que nem somos nós os prejudicados.” Racistas Otários - Racionais MC's
Foi dentro da UNEafro, onde também leciona e convive com alunos como ele, vindos da periferia, que Douglas decidiu fazer da luta contra o preconceito racial uma bandeira. Passou a refletir e contestar a política brasileira que, segundo ele, contribui para a manutenção da estrutura social e de valores vigentes na época da escravidão. Ou seja, a supremacia dos brancos em relação aos negros.
“Do ponto de vista racial ainda somos colonizados, porque a cultura, os valores, a violência, são embasadas a partir de princípios raciais que mantiveram no poder os colonizadores em toda América. A política de Estado não deixou de ser uma política para os brancos”, comenta.
Douglas garante que suas ideias e propostas não têm nada a ver com o chamado revanchismo histórico. “Revanche seria querer que os brancos fossem escravos durante 400 anos. Aí a gente empata o jogo e começa do zero. O movimento negro nunca exigiu isso, o que a gente quer é a reparação”, dispara.
Se por um lado, pode parecer injusto que a imagem de Douglas se restrinja a de um ativista de esquerda, por outro, ele reafirma suas ideologias até nos momentos mais pessoais, como na escolha do nome do filho caçula: Fidel Felipe, 2 anos, em referência ao político cubano Fidel Castro.
Com as suas convicções, criou o Blog Negro Belchior, vinculado ao site da revista Carta Capital desde agosto de 2013. Em pouco tempo, se tornou o mais acessado do portal, sempre abordando temas relacionados à causa negra. Talvez isso aconteça por ele ter “uma clareza de ideias muito acima da média”, como disse o editor de mídia online da revista, Lino Bocchini.
Foi defendendo a igualdade racial e o fim da violência do Estado contra o jovem negro que Douglas se candidatou a vereador em Poá em 2012 pelo Psol (Partido Socialismo e Liberdade). Não ganhou, mas também não desistiu. Este ano, foi candidato a deputado federal pelo mesmo partido. Os 11.710 votos que Douglas conseguiu nas urnas não foram o suficiente para levá-lo a Brasília, mas, aparentemente, isto não o abalou. Para ele, a política seria só um espaço para que mais pessoas pudessem conhecer seus ideais e ajudá-lo a combater todos os tipos de preconceito – principalmente o institucional.
Mas se ele não foi eleito, a culpa não é da sua cor de pele e muito menos de suas propostas. O que mais prejudicou a campanha do militante foi a falta de estrutura e de verba. “A campanha foi feita puramente de militância e é muito difícil eleger alguém assim. Até teriam pessoas que gostariam de votar nele, mas nem sabiam que ele era candidato ou que existia alguém com a cabeça como a dele”, disse Lino.
Se pretende continuar na política? Não sabe, porque, a decisão de se candidatar ou não independe de sua vontade. “Eu vou cumprir a tarefa que o grupo que estiver comigo me delegar. Eu acho que posso contribuir como candidato assim como eu posso contribuir só apostando no movimento”, conclui.
Para o futuro Douglas não contará apenas com a experiência adquirida em 2014, mas com mais conhecimento acadêmico já que é mestrando no curso de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC (UFABC).
Com a voz carregada de inconformidade e com o jeito de quem já luta pelo povo negro há mais de 20 anos, não é difícil imaginar o militante entrando em uma audiência no congresso, com roupas nada formais, boné na cabeça e um microfone na mão, dizendo: “racistas otários, nos deixem em paz”.
Reportagem Especial
POLÍTICA DE OCASIÃO
Por Christina Volpe, Marina Cid e Yago Delbuoni
Chacrinha já dizia que “quem não se comunica, se trumbica”. Na política, essa regra vale ouro – Tiririca que o diga. Mas é nos bastidores dela que a comunicação faz toda diferença. Quem demora muito, fica sem aliados e se “trumbica” nas eleições. É aí onde nascem as coligações políticas, que são as alianças entre candidatos e partidos.
No período que antecede a campanha eleitoral, é partido pequeno indo atrás de partido grande e vice-versa para conseguir fazer o maior número de coligações. Tente falar rapidamente “PT, PMDB, PR, PRB, PROS, PDT, PC do B, PP, PSD” (a coligação “Com a Força do Povo”, da presidente reeleita Dilma Rousseff) ou até mesmo “PSDB, PMN, SD, DEM, PEN, PTN, PTB, PTC, PT do B” (coligação “Muda Brasil”, do adversário derrotado tucano Aécio Neves). Estas são algumas das coligações formadas nas eleições de 2014.
Os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) apontam que o Brasil conta em seu processo eleitoral com 32 partidos. Desde a última eleição presidencial de 2010, o país ganhou cinco novos partidos, o PSD (Partido Social Democrático), PPL (Partido Pátria Livre), PEN (Partido Ecológico Nacional), PROS (Partido Republicano da Ordem Social) e SD (Solidariedade). Além desses, há o Rede Sustentabilidade, partido de origem da terceira colocada nessas eleições, Marina Silva, que ainda não foi confirmado como um partido regular pelo TSE.
Em 2014, 28 partidos tiveram pelo menos um deputado federal eleito, e em 2010 o número de partidos com representação na Câmara dos Deputados era de 22.
Esses partidos não chegam ao poder sozinhos. Eles necessitam de “coligações” e “coalizões”, que são conceitos diferentes. O cientista político da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, o professor George Avelino Filho, explica que a palavra “coligação” é usada para descrever uma fusão de partidos durante o período eleitoral, que nada mais é, que a junção de todas aquelas siglas. Já a “coalizão” é feita apenas durante o governo, ou seja, quando os políticos já estão no poder e procuram aliados para governar.
No entanto, a afinidade ideológica entre os partidos e os candidatos aparece em último lugar quando se trata das parcerias, já que nos bastidores da formação das coligações palavras como “afinidade” e “ideologia” não têm relevância. Tomemos como exemplo as eleições de 2014, o PT se aliou a diversos partidos pequenos. O maior de seus aliados, o PMDB, é o partido do vice-presidente Michel Temer. O PMDB é um partido de centro que representa a elite trabalhista. Por exemplo, o ex-candidato ao governo de São Paulo do PMDB, Paulo Skaf, é um notório empresário do ramo industrial e presidente da Fiesp, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.
Outro exemplo discrepante de aliado do PT é o PSD. O partido foi fundado em 2011 por dissidentes do PSDB (principal opositor do PT) e tem como seus líderes o ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e Guilherme Afif Domingos, ex-candidato ao governo de São Paulo e atual ministro-chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República. Ou seja, é um partido sem a cara socialista ou esquerdista, duas características marcantes do partido da presidente Dilma. O restante de seus aliados ainda possuem um vesgo com as ideias petistas, como o PDT e PCdoB, porém, são poucos.
E para quem pensa que as coligações são sinônimo de corrupção, a cientista política do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, Cecília Forjaz explicou que elas fazem parte do jogo democrático. “Para governar, é preciso fazer alianças. O apoio político pode vir não necessariamente com o envolvimento do dinheiro. Ele pode acontecer porque existe uma concordância com o plano de governo. Coligação e coalizão fazem parte da democracia”.
Não é muito comum existir uma aliança entre partidos grandes, como PT e PSDB. Primeiro, porque eles são opositores históricos e disputam o poder em cargos altos, como os da presidência e dos governos estaduais. Segundo, ambos exercem grande influência em âmbito estadual e não há como unir eleitores dos dois partidos. Portanto, PT se alia a pequenos partidos que representam uma esquerda tímida, como PC do B e PRB, por exemplo; e PSDB se alia a alguns expoentes da direita, como DEM, mas também com partidos antipetistas, como o SD.
“Imagine o mapa de um estado qualquer com a distribuição de votos e dois partidos grandes, as interseções entre os dois mapas seria muito enorme, isso dá briga. É difícil você coligar partidos grandes entre si pelo trabalho que dá pra costurar aquela coligação localmente. Em determinado município, os partidos são adversários históricos mas, de uma hora para a outra, vão ter que sair juntos? Não é tão fácil assim”, explicou Avelino.
Para quem pensa que a ideia de alianças políticas começou apenas com o retorno da democracia, se engana. Esta forma de governo foi utilizada com Getúlio Vargas, que usava a influência para governar tendo como aliados dois partidos importantes da sua época, o PSD (Partido Social Democrático, que não é o mesmo citado acima) e o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) para derrubar a UDN (União Democrática Nacional).
Esta aliança tinha como integrantes as elites econômicas por meio do PSD e os trabalhadores pelo PTB. E assim fazia-se um governo de coalizão, no qual medidas eram tomadas sem que sofressem os reflexos da crise. Isto mostra que, desde o início da prática democrática no país, nenhum presidente conseguiu governar sem o apoio do poder Legislativo.
PARECE, MAS NÃO É
Apesar de as coligações parecerem apenas uma questão de nomenclatura, os motivos para essas formações são bem mais complexos. Avelino Filho esclareceu a diferença entre coligações em âmbito estadual e federal. “Se você coliga para governador, automaticamente coliga para senador também”. As coligações majoritárias incluem presidente, governador e senador, enquanto as proporcionais abrangem deputados federais e estaduais.
O principal interesse dos partidos grandes em acolher o maior número de siglas menores em uma coligação é conseguir mais tempo disponível no horário eleitoral da TV. Cada partido tem, por lei, no mínimo 41 segundos independentemente do seu tamanho ou relevância. Então, quanto mais partidos aliados, mais tempo para propaganda eleitoral. Já as pequenas siglas trabalham em outra direção, ao ceder apoio a um partido grande, eles fazem acordo para conseguir o maior número de cadeiras disponíveis para deputados federais e estaduais. “O que é discutível na nossa lista brasileira que é aberta é você votar no cara de partido X e eleger também o cara do partido Y, que você não gosta”, completou Avelino.
As coligações partidárias mudam completamente o cenário eleitoral. Em certo estado, o PT pode apoiar o PSB, partido que tem candidatura própria no cenário nacional, como é o caso do Amapá e, em outro, pode apoiar o PMDB partido que faz parte da base aliada, como é o caso do Pará. E isso confunde os eleitores. Os partidos têm coligações eleitorais diferentes porque a base partidária de cada estado é diferente. Segundo Avelino, isso acontece porque a política brasileira não é nacionalizada, ou seja, os partidos têm autonomia estadual.
Só para ficar um pouquinho mais complexo, no segundo turno, ainda existem os apoios. Eles não necessariamente fazem o mesmo papel de uma coligação. O maior nome de um partido, por exemplo, Marina Silva, da chapa do PSB, declarou apoio ao então candidato do PSDB, Aécio Neves, no segundo turno das eleições presidenciais de 2014. Entretanto, a posição de Marina não foi recebida com bons olhos em seu partido.
O cientista social e secretário de finanças do PSB capital, Dalmo Viana lembrou que existe também a política de ocasião. “Ela tem a sua base na troca de cargos, ministérios e em muitos momentos até dinheiro vivo”, disse. Mal se encerra a contagem das urnas e os políticos já começam a articular a permanência no poder. A presidente Dilma Rousseff enfrentou dois depois de reeleita uma derrota no Congresso, no projeto de participação popular, como forma de pressão do PMDB. Viana acredita que para o bem da sociedade é preciso realizar uma reforma que possa superar esse tipo de prática na formação das bases de governo e nas alianças de disputa eleitorais.
Coerência, ideologia, convicções políticas, tudo isso conta muito pouco na hora de formação das alianças partidárias. É a parte obscura da festa da democracia. Ou como o cantor Tim Maia já dizia: “Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”.
Candidatos Nanicos e suas adversidades
A equipe de reportagem acompanhou as campanhas de um candidato ao cargo de deputado federal, Marcelo Rocco (PROS), e, outro, Lúcia Nicolatti (PDT), para deputado estadual, faltando duas semanas para as eleições 2014. Sem dinheiro e espaço na mídia, esses postulantes aos cargos públicos precisam convencer o público para ganhar a confiança e o voto dos eleitores.
Por Lucas Ichimura e Marina Cid
Carros de Som ainda são utilizados para propagandas
Por Denise Duarte
Mesmo com as tecnologias atuais, o uso de carros de sons para se fazer publicidade, tanto para promover candidatos em épocas eleitorais, quanto para promover ações que os governantes estão realizando na região ainda está em alta, principalmente em regiões periféricas para fazer publicidade. Os carros de sons invadem as ruas, e criam as próprias melodias para políticos e empresas. Confira na reportagem abaixo o motivo pelo qual essa ferramenta de comunicação ainda é bastante utilizada, especialmente na política.
Ensaio fotográfico
Neide Tameirão
Por Denise Duarte
Entrevista
“Nenhuma grande mudança foi feita sem conflito”
Por Daniela Garcia e Rodrigo Mozelli
“Não estou aqui como Samuel, estou aqui como militante do MPL”. A sigla MPL significa Movimento Passe Livre, um grupo de jovens militantes que nos últimos anos vem lutando para conseguir a tarifa zero nos transportes públicos. O movimento ganhou mais visibilidade na sociedade brasileira e passou a ser mais conhecido pela população ao reivindicar a revogação do aumento no estado de São Paulo em Junho de 2013.
Por conta disso a revista Tome Partido ouviu um dos representantes do MPL em São Paulo. O agendamento da entrevista foi por meio de e-mails e ocorreu de forma lenta. Por fim, o integrante do movimento paulista que aceitou participar da entrevista foi Samuel Bezerra Jacob, 29 anos, estudante.
Nas respostas via e-mail, Samuel Jacob aparentou cautela com relação à imprensa. Tivemos que detalhar o teor da entrevista e explicar minuciosamente como ela ia se suceder. O encontro foi então marcado e aconteceu na biblioteca Mario de Andrade, na República, São Paulo. Samuel pareceu estar preocupado em ser filmado, fotografado ou mesmo gravado, além de receio de ser reconhecido pela polícia.
C
omo você, caro leitor, poderá perceber nas linhas seguintes, Samuel explicou tudo o que se refere ao movimento: Quando e como ele surgiu, o que desencadeou as manifestações do ano passado, as propostas do movimento, seus pensamentos sobre a polícia, a imprensa e a política atual, além do vandalismo praticado por alguns em junho de 2013. Nessa época, Samuel e seu irmão, Isaac, chegaram a ser presos pela acusação de desacato a autoridade, mas foram soltos pouco tempo depois. Confira a entrevista abaixo:
Tome Partido: Como surgiu o MPL?
Samuel Jacob: Surgiu estimulado por lutas de transporte, por redução de aumento. A principal delas foi a Revolta do Buzu, em 2003. Muitos jovens saíram às ruas entre agosto e setembro pelo aumento de tarifa em Salvador. Não conseguiram a revogação do aumento, mas conquistaram uma lei de passe livre estudantil. No ano seguinte, teve uma grande revolta em Florianópolis, que conseguiu revogar o aumento na cidade. Foi uma luta muito dura e ficou conhecido como Revolta da Catraca. Ali já começava a se organizar uma luta por transporte. Em 2005, foi fundado o Movimento Passe Livre no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Em São Paulo, a cada aumento o movimento saiu às ruas. A população que não é consultada não quer aumento e o movimento ajuda a catalisar essa contradição. O movimento começou defendendo o passe livre estudantil, mas no decorrer do tempo isso acabou não dando conta. Hoje o movimento defende que o transporte é um direito e não é um privilégio para todos.
TP: Como o MPL consegue levar tantas pessoas para as ruas nas manifestações?
S: O movimento tem uma capacidade convocatória grande. Três horas para chegar ao trabalho, com um transporte ruim, engarrafado, uma cidade que não tem transporte de massa como o metrô e depende dos ônibus. Porque o metrô não está na periferia, salvo raríssimas exceções da linha vermelha, mas que não dá conta. Acho que as pessoas têm certa simpatia por movimento que não é aparelhado por partido, que não é conduzido por essas forças maiores. O MPL atende uma reivindicação que é popular e as pessoas, principalmente os mais jovens, que têm certa aversão a essa política tradicional se identificam com o movimento.
TP: Como o movimento enxerga o transporte público atual no Brasil e o que vocês acham que pode melhorar? O que significa um transporte de qualidade para vocês?
S: O movimento entende que há uma mercantilização do transporte público. Ele é gerido pelos empresários, que têm o aval do poder público para controlar o sistema, e há a intenção deliberada de expulsar os pobres do centro. E são essas pessoas que viajam para construir a riqueza da cidade e o transporte público, tanto que o vale transporte que recebem só dá conta das viagens para o trabalho. Para o final de semana a maioria não tem condição de, na sua folga, circular pela cidade. E não só isso, o transporte é organizado dessa forma porque não é interessante aos poderosos da cidade que as pessoas circulem. O transporte que a gente acha que atenda o anseio das pessoas é um transporte com gestão popular. O transporte limita outros direitos, por isso que a obtenção do transporte como direito é importante para consolidar os outros direitos como saúde, educação, trabalho. Outra coisa que a gente defende é a mudança na forma de remuneração. Ela deve ser por viagem, porque não há nenhuma relação entre tarifa e custo.
TP: O MPL realiza estudos para propor a tarifa zero ao governo? Vocês têm uma sede de encontro? Vocês realizam reuniões? Como funciona?
S: Em relação à tarifa, a gente costuma não cair muito para esse lado técnico das coisas, mas a gente está munido de argumentação para buscar a tarifa zero. Uma coisa importante é que a escolha pela tarifa zero é política. Quando o movimento estava na rua, em Junho de 2013, a gente ouvia o governador e o prefeito serem bem enfáticos em relação ao atendimento da reivindicação popular, dizendo que não iriam revogar o aumento porque era impossível. Ora, se a tarifa foi revogada, não era impossível, era uma escolha. O custo do transporte é completamente previsível, por exemplo, para fazer o metrô funcionar, a estrutura já está montada, você já pagou. Em outros países, como os da Europa, que a tarifa é mais barata, há um ganho sem tamanho da circulação das pessoas. Quanto mais barata for a tarifa, mais as pessoas vão circular. O transporte não é público, a gente luta por um transporte público.
TP: Como vocês enxergam a política brasileira? Vocês estão fazendo política?
S: A gente faz política e a gente disputa um modelo de cidade que é bem diferente desse. A política brasileira é bem complicada. A perseguição da polícia militar, esse resquício, esse filhote de ditadura, está aí. A polícia age na periferia pra minar qualquer possibilidade de revolta popular. Ou seja, a política brasileira está em descompasso com as demandas populares. No meio dessa história, tem episódios entre poder público e o poder privado pra se diminuir as tensões sociais. Por isso que a gente acha que os nossos sonhos não cabem nas urnas. Democracia é muito mais que apertar um botão de dois em dois anos.
TP: Para vocês, o MPL representa a nova política brasileira?
S: A gente tem princípios que diferem bastante de princípios tradicionais e de luta social. O MPL não está nestes termos de política brasileira, ou seja, de disputa de eleição, é uma luta social, autônomo, apartidário, o que não significa que sejamos anti-partido, O movimento nunca se negou a dialogar, então o MPL é fruto disso, que pode soar como uma novidade e explicar também a simpatia que o movimento tem.
TP: Você mencionou a repressão da polícia. Como o MPL reagiu (nas manifestações) tanto com relação à polícia quanto à imprensa?
S: Dentro dos atos a gente age de uma forma a preservar nossa integridade física. Em teoria, a polícia está lá para garantir o direito à manifestação, isso está na Constituição. A polícia está lá para intimidar as pessoas. Em todos os atos, o movimento separava militantes para dialogarem com a polícia, tendo uma postura firme diante da negociação. O movimento não abria mão do que as pessoas queriam fazer, que era ocupar a rua. Com relação à imprensa, a gente sempre foi muito aberto para eles. No dia do ato da quinta-feira, 13 de Junho, foi o mais divulgado por conta da repressão que atingiu a própria imprensa naquele dia. A gente entende que a grande mídia também faz parte desse conglomerado de poderosos, não é a toa que eles quiseram deslegitimar a luta. Mas, o movimento ganhou força. A partir daí, houve uma virada da imprensa.
TP: Em 2013, o MPL imaginava o rumo que as manifestações tomaram? E vocês acabaram aderindo às outras causas?
S: É difícil o movimento fazer um prognóstico de como vai ser a luta. Alguns militantes do movimento de outros estados apontaram que em São Paulo ia ter uma movimentação muito grande, tanto que a gente já está há um ano sem aumento de tarifa. É muito maior do que a gente mesmo. O movimento acha que eram mais do que 20 centavos, eram por R$ 3,20. A revogação do aumento foi possível muito porque a pauta foi clara. Depois da conquista da revogação, as pessoas continuaram na rua porque havia uma efervescência da movimentação pela cidade, era todo dia. Como a população tinha conquistado a revogação em mais de 100 cidades, elas começaram a extrapolar mesmo a reivindicação, que é isso, pedindo direitos, de representatividade, de poder popular.
TP: Em algum momento o MPL enxergou esse vandalismo enorme que a imprensa divulgou? Por parte de quem?
S: A tensão social era a polícia que criava. Tem até um grito das pessoas na rua que ficou bastante conhecido: “Que coincidência, não tem polícia, não tem violência.” As pessoas estavam indo reivindicar e são amparadas por uma legislação que as protege. Aqui é comum ter repressão em manifestação. É um claro impedimento à liberdade de reunião. O Movimento Passe Livre tem uma atuação que prevê um limite da ocupação das ruas, para que a pauta seja noticiada e é dessa forma que a gente vai conseguir dobrar o poder público. O movimento não é a polícia e não tem nenhuma pretensão de policiar as pessoas. A gente organiza o ato de uma forma muito orgânica. As pessoas estão na rua e elas têm ciência dos atos e que vão arcar com eles. E o movimento também não tem como não deixar de entender que o poder público sabe que aí tem um interesse de impedir esses atos, pois eles sabem o prejuízo que causa para cidade um ônibus atravessado no meio da rua pegando fogo. E aí, ou se reprime, ou se negocia. A gente não impede e entende perfeitamente a revolta popular. Nenhuma grande mudança no seio da sociedade foi feita sem conflito. Então, essas tensões vão existir.