Você está aqui: Página Inicial / Enciclopédia / Verbetes / Europa / Philip Schlesinger

Philip Schlesinger

Por Francisco Rüdiger (Pucrs/Ufrgs)

A Rota Sul-Norte : Philip Schlesinger

Palavras-chave:
Estudos de mídia britânicos; Escola Latino-Americana; Rede Globo; Inglaterra; Escócia

Philip Schlesinger (*1948), Doutor em Sociologia pela London School of Economics em 1975, é um acadêmico britânico, de origem escocesa, que, no curso de seus estudos, teve sua atenção despertada para a contribuição à análise das relações entre mídia e cultura desenvolvida pelo pensamento latino-americano, em particular, no que aqui importa, pelas obras de José Marques de Melo e Renato Ortiz. Sua carreira começou em 1974, como professor de sociologia na atual Universidade de Greenwich, sendo marcada, nesta primeira fase, pelo esforço em entender o jornalismo com os meios da sociologia do conhecimento. Empossado em cátedra de estudos de mídia, transferiu-se em 1989 para a Universidade de Stirling, onde passou a estudar o papel das comunicações no processo de integração europeia desde o ponto de vista de seu significado político.

Professor visitante em Universidades e colaborador em centros de pesquisa na Itália, Espanha, Noruega e França, entre outros, o autor é, desde 1982, um dos editores da revista Media, Culture, and Society, cujas páginas abriu aos grandes porta-vozes da escola latino-americana (Marques de Melo incluído), coordenando número especial em 1988. Em 2006, abandonou Stirling para assumir uma cátedra de política cultural na Universidade de Glasgow, onde também foi nomeado diretor de pesquisas do Centro de estudos sobre Copyright e Novos Modelos de Negócios em Economia Criativa mantido pelo Conselho de Pesquisa Britânico. Desta última etapa de sua trajetória, marcada por preocupações de ordem mais aplicada, não daremos notícia neste verbete, até pelo seu relativo afastamento em relação aos temas mais centrais da área de estudos de comunicação (cf., por exemplo, Schlesinger 2007).

Schlesinger, notaremos, pertence à 2a. Geração de estudiosos britânicos a se dedicarem aos estudos de mídia, aquela que emergiu nos anos 1970 e foi responsável pela concepção e desenvolvimento dos primeiros cursos de graduação e pós-graduação na área em seu país. Apesar dos vários trabalhos em colaboração, marca de sua produção é um relativo distanciamento em relação aos dois eixos que, naquela conjuntura e em seguida, pautaram suas principais linhas de estudo.

Durante o decênio anterior, esclareçamos, houve uma primeira onda de estudos, impactada pela escola norte-americana, conforme a podemos acompanhar nos trabalhos feitos nas Universidades de Leeds (Blumler, McQuail) e Leicester (Gurevitch, Halloran). Nos 1970, verificou-se uma reviravolta nesse cenário, passou a influir com mais força o pensamento continental, notadamente o marxismo e as ideias estruturalistas que, respectivamente, redimensionaram as perspectivas do grupo de Leicester (Golding, Murdock) e do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham (Hall, Willis), fundado por Richard Hoggarth em 1964.

Schlesinger situou-se desde o começo a meio do caminho entre a economia política da mídia defendida pela primeira e o culturalismo de inclinação populista e militante que acabou predominando entre os partidários do segundo, lançando mão de um empirismo crítico cuja principal marca seria a cautela no proferimento de conclusões muito fechadas e abstratas a respeito de questão tão volátil quanto o é a da significação política dos fenômenos de mídia, por ele encampada ao longo de sua trajetória acadêmica.

Penso [por exemplo] que alguns que trabalham com estudos culturais fazem bons estudos e outros que trabalham nos campos da sociologia ou da economia política fazem trabalhos muito ruins. Para mim, as etiquetagens costumam ser um problema para a análise [de um fenômeno]. Parece-me transcendental, sim, seguir uma problemática importante e realizar investigações que, à revelia do método que empregam, conduzam a resultados livre de doutrinações (Schlesinger, 2002).

Em seus trabalhos, vê-se, na primeira fase, um esforço para ajuizar sobre o processo jornalístico sem defender pontos de vista pré-concebidos, antes pelo contrário – documentando suas nuances e peculiaridades. Na segunda, segue-se por esta linha, contudo o foco de estudo passa a ser o jogo político subjacente ao processo de formação da identidade europeia acionado através da mídia em meio à unificação daquele continente.

Durante os anos 1970, houve um esforço de parte dos estudiosos da mídia de vários países em conhecer a estrutura interna e padrões profissionais da manufatura da notícia através de estudos etnográficos (Cottle, 2003). Putting 'reality' together (1978) pôs Schlesinger no centro deste movimento, ao relatar seu trabalho de observação participante na redação e de entrevista com os profissionais de jornalismo da BBC. A conclusão pretendeu ser prova empírica do que ainda hoje muitos acadêmicos se recusam a aceitar. Os jornalistas, sim, manipulam nossa visão da realidade e, portanto, o que fazem não é neutro, mas isso não se deve apenas a interferência de fatores políticos e ideológicos de ordem externa, tendo a ver antes e sobretudo com as rotinas profissionais que estruturam seu trabalho.

Televising terrorism (1983) segue e aprofunda esta análise, desenvolvendo estudo de caso sobre a cobertura da mesma empresa em relação às ações do Exército Republicano Irlandês, rotuladas publicamente como “terroristas”. O método de análise se desvia um pouco do anterior, ao privilegiar a análise de conteúdo, procurar estabelecer de que modo seu noticiário se comporta diante da visão defendida pelas autoridades inglesas, se ele conserva ou não alguma independência jornalística e midiática. A conclusão da análise é a de que, embora não seja independente, a emissora logra manter momentos de autonomia no tratamento do assunto. A televisão pública britânica não se conduz linearmente em relação aos extremistas, apesar de a economia geral do discurso a seu respeito tender nela a legitimar a violência do aparelho de estado. A abordagem hegemônica comporta contradições e exige acomodações que se, por um lado, criam as condições para a legitimação de medidas repressivas, de outro abrem possibilidades de se refletir sobre a causa do grupo irlandês.

Schlesinger projeta esta linha de análise em escala mais ampla nos ensaios reunidos em Media, state, and nation (1991). A perspectiva revela-se mais ensaística, e o foco passa a ser as relações entre política e identidade no contexto de unificação europeia. A comunicação surge como pano de fundo cuja linguagem, símbolos e representações as várias forças em jogo procuram influenciar através dos meios de comunicação. O objetivo delas é moldar uma nova comunidade, transnacional, mas o próprio jogo de poder e disputas que lhe subjazem impedem o surgimento de uma estratégia linear e unificada. A comunidade imaginada por cada uma daquelas forças jamais se fecha às suas contradições. A mídia ajuda a construir um espaço marcado pelo discurso das elites, mas a eficácia daquele primeiro não é plena, esconde a multiplicidade de públicos e a variedade das identidades aí presentes, a começar por aquelas definidas no marco dos estados nacionais.

Surge neste contexto, salientemos, o interesse do autor pelos escritos da chamada Escola Latino-Americana, começando pelos de Jesus Martin Barbero, cuja obra principal ele prefaciou, ao ser traduzida para o inglês, em 1993. Schlesinger reconhece no esforço latino-americano por constituir sua própria teoria da comunicação parte da luta contra a dependência que marca a história do continente. Houve, nesse sentido, uma contestação do imperialismo cultural que teve sua relevância, mas esta perdeu sem tempo, conforme nossa própria região se foi desenvolvendo. Os países centrais não dominam mais diretamente os periféricos, incentivando neles uma modernização que todavia os transforma em dependentes de suas pautas e matrizes culturais e tecnológicas, como, com razão, argumenta o escocês, analisaram Cardoso e Falleto (1974).

Autores como Barbero merecem especial atenção não apenas por tê-lo percebido, mas visto que nossa identidade é motivo de disputa que se origina das contradições e ambiguidades de nossos próprios projetos de emancipação. Para Schlesinger, a guinada no sentido de privilegiar o momento da recepção que se viu em nossos estudos de mídia no final do século passado não é o mais importante. As relações com o estado e a volatilidade da questão da identidade com a qual a mídia trabalha teriam maior relevância.

Barbero para tanto contribui, na medida em que sua obra nos previne de ver a nação e a identidade de forma essencialista. A perspectiva que ele abre à análise e discussão é a de ver a primeira como uma formação sujeita a várias influências, cuja identidade se define em meio a um jogo no qual intervêm e dialogam o estado e mídia (Schlesinger, 1993). Trata-se de aporte fundamental, que se conecta com as preocupações vividas atualmente pelos europeus, ao nos ensinar que a cultura não apenas resiste ou se adapta às, mas pode interferir ativamente no processo político, argumenta o escocês (Schlesinger, 1989).

Comunicação e identidade na América Latina: as fronteiras culturais (1997) sistematiza a discussão com mais detalhe e foco nas reflexões feitas deste lado do Atlântico, via uma interlocução mais abrangente, que valoriza dois de nossos estudiosos. Sobre Renato Ortiz, observa-se seu mérito em estudar a identidade nacional brasileira como produto de uma construção em que o estado desempenharia papel estratégico. A cultura, ele revelaria, não possui uma essência, se agenciando de acordo as intervenções políticas de distintos interesses, cujas referências se deslocam do território para as representações veiculadas pelos meios de comunicação, conforme o país vai sendo palco da globalização.

Passando por alto esta última análise, chama atenção ao escocês antes o fato de o brasileiro ressaltar o papel do estado na formação da identidade e da memória do país até o início dos anos 1980. O estado autoritário favoreceu a exploração do folclore tanto quanto o direcionamento da mídia para temas de significado brasileiro. Relevo similar é dado à atuação de nossos intelectuais durante aquele período, na medida em que lhes coube transformar em questão de sentido o que era antes uma questão de força. O papel por eles desempenhado na criação de uma hegemonia nacional popular dirigida pelo estado pareceu ao escocês mais significativo do que a influência de modelos de consumo transnacionais agenciados pelos meios de comunicação.

Schlesinger reconhece que, como na Europa, este cenário, desde o final do século passado, começou rapidamente a se alterar. O avanço do neoliberalismo colocou em xeque os que defendiam a identidade nacional através da intervenção política do estado na cultura. As pretensões dos intelectuais de distintos matizes em fazer frente ao imperialismo com o desenvolvimento de políticas públicas e incentivos à cultura local via os meios de comunicação se extenuaram, conforme mostra Renato Ortiz.

Reflexo intelectual na área de estudos de mídia da conjuntura que então se abriu se encontra, por exemplo, no trabalho de José Marques de Melo feito durante os anos 1980. Segundo Schlesinger, sua relevância está em assinalar o papel de seu país e outros da região como importantes exportadores de bens culturais, telenovelas e música sobretudo. Para Marques de Melo, a Rede Globo ajudou o Regime Militar, que lhe favoreceu, através da criação de uma consciência de brasilidade. O argumento, no entanto, não fica nisso, pois com aquele apoio, o grupo conseguiu desenvolver uma produção cultural capaz de ser exportada e conquistar mercados no estrangeiro.

Schlesinger não nega o fato mas comenta o ufanismo com que o pesquisador brasileiro se refere à este processo, o elogio do mercado e de nossa capacidade de também intervirmos em seu movimento que se encontra em seus textos do período. Marques de Melo defenderia que, em vez do poder público, seria a empresa capitalista e os mecanismos de mercado a força criadora de uma nova ordem mundial da informação e da cultura, conforme então propugnada pelo célebre Relatório MacBride, das Nações Unidas. Para Schlesinger, passa um tanto por alto o autor a forma de estatismo que, no Brasil, como no México, implicou em uma manipulação do mercado estimuladora do crescimento e hegemonia de gigantes midiáticos como a Globo e a Televisa.

Marques de Melo, de modo totalmente consciente, reajusta os términos do Relatório MacBride, argumentando que o final da Guerra Fria exige um reposicionamento dos objetivos da Nova Ordem Mundial da Informação, por aquele último defendido, de acordo com o novo contexto democrático. Em sua opinião, a NOMIC não prosperou com mais propriedade na América-Latina devido à sua obsessão estatista em relação à radiodifusão mantida pelo serviço público e aos modelos [midiáticos] da Europa Oriental. A doutrina também fracassou no tocante ao reconhecimento da crescente pujança da produção nacional, por causa da fixação local na cultura popular e o descompasso entre os estudos propostos pelos acadêmicos e as necessidades da indústria (Schlesinger; Morris 1997).

Para este autor, afirma o comentarista, a entrada de empresas brasileiras no mercado internacional de bens simbólicos e seu relativo sucesso podem ser vistas como uma forma de realização dos objetivos de MacBride. Ocorre que, dado seus interesses privados, é, no mínimo, irônico considerar que empresas privadas possam promover um fluxo midiático mais equitativo no plano global. Destarte, Schlesinger aparentemente se inclina mais para o lado das análises propostas por Renato Ortiz, observando com ele que, embora tenha havido uma mudança a partir dos anos 1980, subsiste em meio à nova situação um certo sistema de poder ou hierarquia.

A diversidade – sustenta o brasileiro, não equivale à democracia; a modernidade mundial oferece aos grupos sociais múltiplas referências, e estes as usam de diferentes maneiras – mas isso não importa automaticamente em mais liberdade e democracia.

Por isto, endossa o escocês, não se deve traduzir o panorama sociológico em termos políticos: o procedimento é enganoso. A sociedade global, longe de incentivar a igualdade entre as várias identidades, é atravessada por várias hierarquias. As identidades são distintas e desiguais, porque seus artífices e seus partícipes ocupam cada qual diversas posições de poder e legitimidade.

Para concluir, notaremos em relação a Schlesinger, primeiro, o fato de seu brasilianismo ter se restringido ao nosso pensamento sobre a cultura e a mídia. O autor não se ocupou, como outros, de nossa realidade midiática. Em segundo, o fato de ele ter visto nossa contribuição à área no contexto da perspectiva latino-americana. As eventuais tensões e diferenças entre ambas não lhe despertaram preocupação. Por fim, o fato de sua atenção para tal perspectiva ter surgido de um interesse em ampliar os horizontes de uma reflexão sobre o avanço da integração continental europeia. A apropriação por ele feita de nossas ideias obedece a uma curiosidade de sentido sul-norte que, embora não seja em si mesma muito significativa, dá sinal das possibilidades de intercâmbio intelectual que talvez se abram aos estudos de mídia no século 21.

Referências
Barbero, J. M. De los medios a las mediaciones. Bercelona: Gustavo Gilli, 1987.
Cardoso, F.H.; Faletto, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
Cottle, Simon (org.) Media organizations and production. Londres: Sage, 2003.
Corner, John. Studying media. Edinburgo: Edinburgh University Press, 1999.
Curran, James. Media and power. Londres: Routledge, 2002.
Melo, J. M. As telenovelas da Globo. São Paulo: Summus, 1988.
Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. Sao Paulo: Brasiliense, 1985.
Ortiz, A moderna tradiçao brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Schlesinger, Philip. Puting 'reality' together. Londres: Constable, 1978.
Schlesinger, Philip et al. Televising terrorism. Londres: Comedia, 1983.
Schlesinger, Philip. Editorial. In Media, Culture & Society 10/4 (395-403) 1988.
Schlesinger, Philip. Media, state, and nation. Londres: Sage, 1991.
Schlesinger, Philip. Introduction. In Barbero, J.M. Comunication, culture and hegemony. Londres: Sage, 1993.
Schlesinger, P.; Morris, N.. Comunicación e identidad en América Latina. In Telos 49 (56-78) 1997.
Schlesinger, Philip. Open Scotland? Edinburgo: Edinburgh University Press, 2001.
Schlesinger, Philip. Entre lo público y lo privado – entrevista com Luis Albornoz. In Telos 51 (85-93) 2002.
Schlesinger, Philip. Creativity: from discourse to doctrine? In Screen 48/3 (399-387) 2007.

Comunicar erros