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Moisés Adão de Lemos Martins

Por Sonia Regina Soares da Cunha

Moisés Adão de Lemos Martins: a palavra é o caminho do encontro e o outro é o nosso destino.[1]

Sonia Regina Soares da Cunha*

Resumo: O espírito brasilianista de Moisés de Lemos Martins se revela mais precisamente, no trabalho meticuloso desenvolvido nos bastidores de reuniões e congressos com os pares brasileiros e portugueses, entre outros ao incentivar a escrita colaborativa entre dois ou mais pesquisadores de diferentes instituições e países, independente das áreas de origem, bem como coordenando encontros acadêmicos. É nesses momentos que Martins revela a enorme capacidade de articulação, organização e fortalecimento das relações sociais, culturais e acadêmicas, pois investe no entrelaçamento científico entre objetos e teorias, de forma a permitir a estruturação do compartilhamento de conhecimentos e saberes transdisciplinarmente, entre os investigadores de ciências da comunicação do espaço lusófono, galego e ibero-americano. Martins é um dos poucos pesquisadores lusófonos que contribui para a sedimentação do corpo teórico-conceitual do campo da comunicação, em Língua Portuguesa, através de elucidativos estudos e análises no âmbito da Sociologia da Cultura, Semiótica Social, Sociologia da Comunicação, Comunicação Intercultural e Estudos Lusófonos. Além disso, disponibiliza grande parte dessas publicações em um repositório  digital de acesso aberto, para que todo pesquisador acadêmico possa baixá-las sem custo.

Aquilo que os portugueses entendem por lusofonia só em parte poderá coincidir com aquilo que o Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Galiza imaginam e concebem como tal. O imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o imaginário da pluralidade e da diferença. Por essa razão, se quisermos dar sentido à “galáxia lusófona”, não podemos deixar de a viver como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, guineense, cabo-verdiana, são-tomense ou timorense. O espaço cultural da lusofonia é um espaço necessariamente fragmentado. E a comunidade e a confraternidade de sentido e de partilha comuns só podem realizar-se pela assunção dessa pluralidade e dessa diferença e pelo conhecimento aprofundado de uns e de outros. Moisés Martins

 Escrever sobre o sociólogo, professor catedrático, Moisés Adão de Lemos Martins sempre há de ser uma tarefa incompleta, pois ele é um dos maiores autores científicos em Língua Portuguesa da contemporaneidade. Eclético, dotado de uma incrível habilidade hermenêutica e exegética, além de vasta capacidade intelectual, Martins possui uma produção científica, em português, francês e inglês, que ultrapassa muitas centenas, e em breve alcançará a casa da milhar, entre artigos científicos, livros, capítulos de livros, discursos, artigos opinativos para jornais diários, orientações de bancas, livros de atas/anais, blogues, vídeos, postagens em redes sociais, revistas científicas, direção de entidades associativas, entrevistas, pareceres, relatórios, projetos de investigação científica, material para aulas e seminários acadêmicos, teses, ensaios, recensões, participações em júris, bancas e conselhos editoriais, coordenação e participação em centros universitários e congressos, tanto no Brasil e Portugal, como na Europa, América Latina e África.

Em 2016, Martins recebeu o “Prêmio Ciência 2016” da Universidade do Minho – uma universidade na qual há predominância de engenheiros, físicos e médicos. A premiação de “Mérito Científico 2016” ressalta a importância do trabalho científico desenvolvido pelo professor desde os anos 1980.

Em 1984, enquanto a nação portuguesa comemorava dez anos de liberdade, Martins, que cresceu e viveu boa parte da juventude sob o signo da ditadura, titulava-se como doutor em Sociologia pelo “Institut de Sociologie de la Université des Sciences Humaines” de Strasbourg, com uma profunda investigação sobre o poder salazarista em Portugal: “Une orthodoxie pour une nouvelle chrétienté. De la volonté de pouvoir de l'Église catholique à la volonté de pouvoir salazariste”, traduzida para o português e publicada em 1990, sob o título “O Olho de Deus no Discurso Salazarista”.

Em Portugal, o fim do ciclo ditatorial que durou quase meio século, aconteceu em abril de 1974, início da primavera no hemisfério norte, e por isso, o momento histórico é referenciado como a Revolução dos Cravos. O florescer da liberdade de expressão permitiu aos jornais diários, novas interpretações do horizonte futuro, bem como novos programas de rádios anunciaram outras visões do cotidiano. Novos meios de comunicação surgiram, possibilitando assim, a criação de empregos. A abertura de um novo campo profissional graças ao desenvolvimento da área da comunicação, principalmente em Lisboa, fez com que a Universidade Nova de Lisboa lançasse o primeiro curso superior em Comunicação Social. A formação dos novos alunos ficou a cargo de professores vindos de outras áreas, com destaque para as Ciências Sociais, pois havia um crescente interesse na pesquisa científica sobre o papel da comunicação na sociedade contemporânea.

Martins integrou este seleto grupo de doutores das Ciências Sociais, que investiu na estruturação do campo das comunicações em Portugal. O início da carreira como docente foi na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, instituição que havia frequentado como estudante e atuado como presidente da associação académica. E, provavelmente, imbuído pela força do ativismo social humanitário, em prol de uma educação superior acessível a todos os jovens portugueses, tanto da capital como do interior, o jovem pesquisador e professor Martins criou a licenciatura de Ciências da Comunicação na Universidade da Beira-Interior (UBI), na Covilhã, cidade turística de Portugal conhecida dos brasileiros pelos picos nevados das montanhas da Serra da Estrela. Na UBI foi coordenador do Departamento de Ciências Sociais e diretor do curso de Sociologia, deixando como importante legado a criação da revista científica de ciências sociais “Anais Universitários”.

Como todo português nascido e criado no Norte, Martins mantém uma fraternal ligação com a região entre o Douro e o Minho: terra de serras verdejantes, dos saborosos vinhos verdes, dos belos bordados regionais, dos pecaminosos doces conventuais, das inimitáveis filigranas e dos jardins aprazíveis. Assim, em 1990, Martins retornou à terra natal para assumir a regência das disciplinas de Semiótica e Teoria da Análise do Discurso, na Universidade do Minho, instituição à qual pertence até hoje, e onde permanece cotidianamente, por quase dez horas, a ministrar aulas, seminários, reuniões, criar e desenvolver projetos científicos, destravar barreiras (políticas, institucionais e financeiras), editar revistas, e em especial, a orientar universitários de diversas universidades do mundo, entre eles, os brasileiros. Dedicação essa, tão intensa e integral que, unida ao talento e competência, fez com que o jovem Martins (por volta dos 40 anos de idade), assumisse uma cátedra[2] no grupo disciplinar de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. O que lhe acrescentou outra importante incumbência, a de viajar, como professor catedrático, para atuar como jurado em concursos de docentes do magistério superior em diversas instituições portuguesas. O conhecimento advindo desses encontros certamente lhe permitiu refletir sobre as necessidades e oportunidades do campo da comunicação para que, em conjunto com os investigadores e docentes do Centro de Ciências Históricas e Sociais da Universidade do Minho, oferecesse ao público acadêmico uma das mais importantes revistas de comunicação em Portugal: “Comunicação e Sociedade”. Na introdução do número 1, Martins (1999, p.3) convida a comunidade científica, transdisciplinarmente, para o debate:

Ao iniciarmos Comunicação e Sociedade (uma série de Comunicação nos Cadernos do Noroeste) não queremos reduzir a comunicação a uma “arte de bem comunicar”, sem memória, sem compromisso, sem consciência. É nosso intuito favorecer o debate científico e democrático, com um espírito de rigor e de exigência, numa área das ciências sociais e humanas, de constituição relativamente recente, que compreende o estudo dos actos de comunicação socialmente elaborados, as significações neles inscritas, as relações e os fenómenos cognitivos que eles exigem, as representações socialmente partilhadas que lhes estão associadas e os efeitos destas representações nas relações sociais. (MARTINS, 1999, p.3-4)[3].

A preocupação hermenêutica de “interpretar em termos de gênese e interpretar em termos de estrutura”, são características presentes em quase todas as obras de Martins. Como por exemplo, as notas de rodapé do livro “Para uma inversa navegação. O discurso da identidade”, uma reflexão sobre a “rede simbólica de crenças e sonhos que perpassa o imaginário do Estado Novo”. (MARTINS, 1996, p.18).[4] As anotações são bastante significativas, pois retomam capítulo a capítulo, com ligeiras alterações, os estudos e os caminhos trilhados por Martins em sua primeira década como docente e investigador do campo da comunicação. Destaco o segundo capítulo “A periferia como encenação do local e do nacional”[5] que apresenta uma versão de comunicação científica apresentada em 1990, durante o I Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado na Universidade de Coimbra, quando da celebração dos 700 anos daquela instituição, e da titulação do sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes, como doutor honoris causa. Este primeiro encontro de cientistas sociais de Língua Portuguesa, em Portugal, propunha uma reflexão conjunta sobre as transformações nos paradigmas sociais, culturais, econômicos e políticos, em nível mundial, visando perspectivar os desafios suscitados às ciências sociais, tendo em vista a posição que as sociedades (de Língua Portuguesa) ocupavam no sistema global naquele fim de milênio. Conforme sugerido anteriormente, é provável que a vivência e convivência com doutores e pesquisadores de diversos centros de investigação acadêmica, e dos encontros nos congressos científicos portugueses e internacionais, tenham levado o intelectual Martins a refletir, do ponto de vista cultural e sociológico, bem como paradigmático, sobre o cenário em mutação das bases científicas do campo da comunicação.

A reflexão que proponho tem, pois na comunicação seu ponto de partida. Mas gostaria de precisar desde já que a razão comunicativa não se esgota na lógica da razão informativa. O imperativo tecnológico da teoria da informação, não pode dispensar o imperativo ético da racionalidade comunicativa. [...] No discurso não entra quem quer; entra quem pode, pelo que a comunicação não é uma ideia inocente. De facto, do que verdadeiramente se trata quando se fala de comunicação universal do conhecimento e da mobilização tecno-cientifica (electrônica) da comunidade cientifica para a competitividade no mercado. [...] Para além das dimensões informativa e argumentativa, a linguagem tem uma dimensão institucional, o que quer dizer que ela também é "palavra de ordem". Neste enquadramento, a comunicação acontece sempre no interior de um campo de relações de força. Finalmente, e esse será o terceiro ponto da minha reflexão, discuto, a traços rápidos, a comunidade ideal de comunicação, de inspiração neo-kantiana, o que me vai permitir um olhar "desencantado" (para falar como Max Weber), tanto sobre a universalização da ciência como sobre a universalização da comunidade científica. Olhar desencantado, tendo em ponto de mira a comunidade científica real, ou seja, a universidade. (MARTINS, 1997, p. 125)[6].

Desta forma, a busca pela colaboração acadêmica e cooperação científica entre as instituições, em Portugal e no mundo, aparece em destaque quando se analisa a carreira e o sucesso acadêmico de Martins. Como exemplo, podemos citar a cooperação científica entre brasileiros e portugueses que ocorre há quase duas décadas, através da Federação das Associações Lusófonas de Ciências da Comunicação (Lusocom).

Foi em Sergipe, na Universidade Federal, e não em nenhuma universidade portuguesa, que em 1998, foi criada a Federação Lusófona de Ciências da Comunicação - Lusocom. E o primeiro Presidente desta Federação foi o investigador brasileiro, José Marques de Melo, professor emérito da Universidade de São Paulo, que aliás havia sido, também, o principal instigador da sua criação. (MARTINS, 2015, p. 12)[7]

A participação de Martins como membro fundador e integrante da comissão científica, em 1997, ano do primeiro encontro, em Lisboa, passou de presidente de comissão organizadora, para coordenador de publicações científicas e presidente da entidade de 2011 a 2015. Ainda no período de estruturação da Lusocom, Martins revelou o espírito dinâmico e agregador ao organizar o terceiro encontro e recepcionar mais de trezentos participantes em sua casa, a Universidade do Minho, em Braga, no Norte de Portugal. Este encontro, em 1999, selou o acordo de cooperação entre os investigadores científicos da comunidade lusófona linguística e comunicativa das Ciências da Comunicação.

Hoje estamos na rampa do nosso lançamento para o mundo. Estamos indubitavelmente mais fortes e mais organizados do que no passado e começa a ser finalmente possível entre nós uma cooperação e um intercâmbio científicos vivos, plurais e regulares. Este Encontro conta com perto de 300 inscrições. São cerca de 130 as inscrições com comunicação, das quais mais de 70 são de investigadores portugueses e perto de 50 de investigadores brasileiros. [...] Em comum tínhamos logo à partida o essencial. Tínhamos uma língua que era testemunha, em si mesma, da história que, para o bem e para o mal, as nossas sociedades partilharam ao longo de séculos. Tínhamos o facto de sermos todos cientistas da comunicação, activos nos nossos distintos países. E tínhamos o afecto que circulava entre nós por sentirmos a fundura das raízes de que uma língua comum é garantia. (MARTINS, 1999, p.7-8)[8]

Na sequência do encontro, Martins e um grupo de investigadores doutores do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS)[9] da Universidade do Minho iniciaram o projeto científico de investigação do “Espaço lusófono – língua portuguesa e identidade lusófona[10]”, com o objetivo de realizar um amplo estudo sobre as comunidades lusófonas de Ciências da Comunicação nos diversos países da lusofonia, sobretudo em Portugal e no Brasil, mapeando o campo, quanto aos projetos de ensino, às linhas de pesquisa e aos desafios que tinham pela frente. A única brasileira convidada a integrar o projeto, logo no início, foi a doutora Regina Helena Pires de Brito, professora investigadora do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo) e do Instituto Nacional de Linguística (Timor-Leste), que desenvolveu em 2002, sob orientação do professor Martins, na Universidade do Minho, um estudo de pós-doutorado: “Língua Portuguesa e Identidade Lusófona”.  A pesquisa tratava das relações entre língua e identidade no universo da lusofonia, e rendeu entre vários textos escritos por Brito, o artigo “Considerações em torno da relação entre língua e pertença identitária no contexto lusófono”[11], assinado em conjunto com Martins. A comunicação foi acolhida para apresentação em abril de 2004, na Universidade da Beira-Interior, e publicada no livro de atas do VI Lusocom, II Confibercom e III Sopcom.

Na apresentação intitulada “Lusofonias – reinvenção de comunidades e combate linguístico cultural” do e-book “Lusofonia e Interculturalidade: promessa e travessia”, Martins (2015, p. 14)[12] destaca a importância histórica desse artigo:

Em 2004, apenas um artigo [do Anuário Internacional de Comunicação Lusófona] tem Lusofonia no título. Trata-se do artigo: “Considerações em torno da relação entre língua e pertença identitária no contexto lusófono” (Brito & Martins, 2004). Curiosamente, um dos autores é brasileiro, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, sendo português o outro, da Universidade do Minho. Trata-se do primeiro artigo em coautoria, que traduz uma efetiva cooperação luso-brasileira.

Essa quebra de paradigma revela o espírito desafiador de Martins, ao incentivar a escrita colaborativa entre dois ou mais pesquisadores de diferentes instituições e países, independente das áreas de origem. Acredito que o espírito brasilianista de Martins não se destaca explicitamente em sua obra, mas se revela mais precisamente, no trabalho meticuloso desenvolvido nos bastidores de reuniões e congressos com os pares brasileiros e portugueses, entre outros. É nestes encontros que Martins se concentra na articulação, organização e fortalecimento das relações sociais, culturais e acadêmicas, buscando o entrelaçamento científico entre objetos e teorias, de forma a permitir a estruturação do compartilhamento de conhecimentos e saberes transdisciplinarmente, entre os investigadores de ciências da comunicação do espaço lusófono, galego e ibero-americano.

Martins é um dos poucos pesquisadores lusófonos que contribui para a sedimentação do corpo teórico-conceitual do campo da comunicação, em Língua Portuguesa, através de elucidativos estudos e análises no âmbito da Sociologia da Cultura, Semiótica Social, Sociologia da Comunicação, Comunicação Intercultural, Estudos Lusófonos, entre outros; bem como, disponibilizando as publicações em um repositório[13] digital de acesso aberto, para que, todo e qualquer interessado, possa baixá-las sem custo. Como ilustração apresento o artigo “O Quotidiano e os Media”, publicado no Brasil, em 2003, pela revista científica “Todas as Letras”, Qualis A2. Trata-se de uma visão reflexiva escrita no início do século 21, que expunha cientificamente, a guinada epistemológica do processo de produção noticiosa. Como poucos autores científicos (fora do campo das Letras) o fazem em um texto acadêmico, Martins (2003, p.97)[14] buscou respaldo na escrita poética de Alexandre O´Neill (1999, p.13-15)[15]: “Que é notícia? / Um hoje que nunca é hoje, / um amanhã que é já ontem [...] Mas terá sido notícia?”; para refletir sobre a incapacidade de se vivenciar as próprias experiências, porque os acontecimentos não eram mais vividos, eram exibidos e assim, viravam notícias.

Ao tomar os media, as artes e as ciências sociais como refúgio da experiência, estendo às ciências sociais e aos media a sugestão que Benjamin reservou apenas para a literatura. Para Benjamin, a literatura tem esta responsabilidade de projectar a atmosfera de uma época, de dar uma figura não contingente à contingência, que todavia a ameaça de todos os lados. [...] Em meu entender, a actualidade não tem que se esgotar em novidade, em notícias, em vida que se não vive, mas que apenas se exibe. Penso que a actualidade, o que está in actu, a nossa experiência do confronto com as coisas e com os outros, pode convocar não apenas a gravidade da historicidade, ou seja, a responsabilidade pelo nosso estado e pelo estado do mundo. (Martins, 2003, p.104)[16].

Não raro, a obra de Martins revela ao leitor sua “sensibiIidade sociológica”, como no texto sobre os “30 anos de transformações de Portugal” (2004), onde o autor centra a análise no fenômeno social para expor o que denomina de “metamorfose do sistema e das relações de comunicação”.

Ao esboçar o quadro de tão abrangente quão complexa realidade, como seja debater, de um modo sintético e esquemático, as mudanças ocorridas na comunicação em geral, e no panorama dos media em particular, ao longo dos últimos trinta anos, defendo o ponto de vista de que passámos em Portugal, através de mudanças efectivas no sistema de comunicação social, e também de metamorfoses acentuadas na atmosfera da vida social e política, de uma utopia da comunicação, que é, na realidade, uma utopia de comunidade, a uma comunicação sem utopia, ou seja, manifestamente, a um simulacro de comunidade. (MARTINS, 2004, p.2)[17]

De qual “metamorfose” trataria o autor? Da comunicação, da comunidade da qual ele faz parte, ou dele próprio? No livro “Semiótica”, Martins (2004, p.67) ajuda a compreender a questão, embora procure advertir o leitor para o fato de que a escrita nem sempre revela os aspectos essenciais da ação.

Um sujeito está separado de um objecto que representa para si um valor, dado o universo axiológico que o enquadra. Através do jogo de uma simples transformação, o sujeito acaba por se apropriar do objecto que lhe escapa. Quer se proceda à aquisição ou à privação de um objecto de valor, segundo configurações diversas (dádiva, troca negociada, luta, roubo, etc.), actualizando valores materiais ou cognitivos (tesouro, conhecimentos, etc.), o núcleo narrativo da “transformação de estado” está assim na base de todas as narrativas existentes. (Martins, 2004, p.49)[18].

Parece simples pensar em “transformação de estado”, ou em “metamorfose” como base para uma narrativa. Mas, quão complexa a teoria pode ser na prática. Pois então, que este texto seja lido assim, apenas uma base narrativa para uma escrita em elaboração. E, como bem ensina o querido professor Moisés Martins, a escrita precisa ser pensada e ética. Em especial, para o pesquisador/autor das ciências sociais e humanas[19] ele escreveu o artigo: “A escrita que envenena o olhar – deambulação pelo território fortificado das ciências do homem”[20]. Longe de vaguear sem rumo, antes direto e reto, Martins esclarece que, para escrever é preciso ser adestrado, domesticado; e que, Theuth, o semideus egípcio, ofereceu a escrita aos homens como um remédio para curar a falta de memória. “A escrita é um conjunto de procedimentos, que encena apostas éticas, estéticas, científicas e institucionais.” (Martins, 1997, p. 186)[21].

Assim, o estudo bibliográfico que subsidia a elaboração desta base narrativa pede que se recorra à uma breve leitura diacrônica, com o objetivo de desvelar, ao menos em parte, a “transformação de estado”, pois como nos alerta o autor: “o diacronismo é a intervenção do tempo (se não mesmo da história) como dador, ou pelo menos como revelador de estrutura nos processos de desestruturação e de reestruturação.” (MARTINS, 2004, p.68)[22].

De 1997 a 2014 foram realizados onze encontros do Lusocom, em Portugal, Espanha, África e Brasil, todos com a presença e incansável participação de Martins. Hoje, a Lusocom congrega acadêmicos da Asociación Galega de Investigadores e Investigadoras en Comunicación (Agacom);  da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom); da  Associação Cabo-Verdiana de Ciências da Comunicação (Mediacom); e da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom). De 2005 a 2015, Martins foi presidente da Sopcom. De 2012 a 2015, Martins presidiu também a Confederação Ibero-Americana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação – Confibercom. De 1996 a 2000 e de 2004 a 2010 presidiu o Conselho Científico e o Conselho Diretivo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Foi o primeiro diretor do curso de doutoramento em Ciências da Comunicação, da Universidade do Minho, cargo que exerceu de 2009 a 2011. Criou e dirige desde 2001, o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, único avaliado como excelente, pela Fundação Ciência e Tecnologia (FCT) de Portugal, e “lar” de muitos brasileiros na última década, desde a graduação, mestrado, doutorado, professores visitantes e pós-doutoramento.

Desde a preservação e disponibilização digital de estudos, análises, teses e documentos científicos, fonte de saber imprescindível para o jovem universitário, das instituições de países de Língua Portuguesa, que se inicia no processo de investigação acadêmica;

à inspiração advinda de sua trajetória acadêmica, remédio intelectual e espiritual, vital para recuperação de ânimo de cientistas sociais lusófonos, nestes tempos de escassos recursos e da “hegemonia da razão instrumental”[23];

o brasilianista Moisés Adão de Lemos Martins é parte viva da memória histórica contemporânea, na estruturação e desenvolvimento do movimento científico intercultural – lusófono, afro, ásio, galego, brasileiro e ibero-americano – na mão e contramão do eixo norte-sul, do campo da comunicação.

Notas de Fim



[1] Martins, M.L. (2015) A liberdade académica e os seus inimigos. in Comunicação e Sociedade, v. 27. Braga: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. (citação da página 406)

[2] 1. Diário da República. Despacho (extracto) n.o 17 840/98 (2.a série). — Por despacho de 28 de Julho de 1998 do reitor da Universidade do Minho: Doutor Moisés Adão de Lemos Martins — nomeado provisoriamente professor catedrático do grupo disciplinar de Ciências da Comunicação, do quadro da Universidade do Minho, com efeitos a partir da data do despacho autorizador, por urgente conveniência de serviço, considerando-se exonerado da categoria anterior a partir daquela data. (Isento de fiscalização prévia do Tribunal de Contas.) 24 de Setembro de 1998. — O Administrador, J. F. Aguilar Monteiro.

 2. Diário da República. Despacho (extracto) n.º 20 397/2000 (2.ª série). – Por despacho de 24 de Julho de 2000 do reitor da Universidade do Minho: Doutor Moisés Adão de Lemos Martins, professor catedrático do grupo disciplinar de Ciências da Comunicação, de nomeação provisória - nomeado definitivamente na mesma categoria e grupo disciplinar, com efeitos a partir de 28 de Julho de 2000. (Isento de fiscalização prévia do Tribunal de Contas.) 19 de Setembro de 2000. – O Administrador, J. F. Aguilar Monteiro.

[3] Martins, M.L. (1999) Introdução. in Cadernos do Noroeste. v.12 (1-2), 1999. Série Comunicação. Comunicação e Sociedade 1. Braga: Centro de Ciências Históricas e Sociais da Universidade do Minho.

[4] Martins, M.L. (1996) Para uma inversa navegação. O discurso da identidade. Porto: Edições Afrontamento. Colecção: Biblioteca das Ciências do Homem.

[5] ibidem, p.33.

[6] Martins, M.L. (1997) A Sociedade da Informação e o Sentido da Mudança Cultural. in Actas I Lusocom – Comunicação e Cultura. Lisboa: I Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação. p.123-129.

[7] Martins, M.L. (2015) Apresentação. Lusofonias – Reinvenção de Comunidades e Combate Linguístico-Cultural. in Lusofonia e Interculturalidade – Promessa e travessia. Braga e V.N.Famalicão: CECS/UMinho e Ed. Húmus, nov. 2015.

[8] Martins, M.L. (1999) Comunicação Inaugural do Presidente do III Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação, Prof. Dr. Moisés de Lemos Martins. in Comunicação e Sociedade, v. 2. Braga: Departamento de Ciências da Comunicação. Universidade do Minho, 1999.

[9] O CECS foi fundado em 2001 por Moisés de Lemos Martins, com o propósito de promover a pesquisa em Ciências da Comunicação.

[10] “Espaço lusófono – língua portuguesa e identidade lusófona”: Investigadores: Moisés de Lemos Martins (principal), Aníbal Alves, Manuel Pinto, Helena Sousa, Rosa Cabecinhas, Helena Gonçalves, Gabriela Gama, Felisbela Lopes, Helena Pires.  Disponível em: <http://www.comunicacao.uminho.pt/cecs/publicacoes.asp> Acesso em 12 Fev 2015

[11] Brito, Regina & Martins, M.L. (2004) Considerações em torno da relação entre língua e pertença identitária no contexto lusófono. in Anuário Internacional de Comunicação Lusófona (pp. 69-77). São Paulo: Lusocom – Federação Lusófona de Ciências da Comunicação. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/1679> Acesso em: 10 dez 2015.

[12] Martins, M.L. (2015) Lusofonias – reinvenção de comunidades e combate linguístico cultural. in Lusofonia e Interculturalidade: promessa e travessia. Braga e V.N.Famalicão: CECS/UMinho e Ed. Húmus, nov. 2015.

[13] RepositoriUM – Universidade do Minho. Centro de Estudos Comunicação e Sociedade (CECS). Disponível em:   <http://repositorium.sdum.uminho.pt/browse?type=author&order=ASC&rpp=20&authority=1289> Acesso em: 20 dez 2015.

[14] Martins, M. L. (2003) O Quotidiano e os Media. in Todas as Letras – Revista de Língua e Literatura, v. 5, n. 1, p.97-105, 2003. Disponível em: < http://editorarevistas.mackenzie.br/> Acesso em 15 Nov 2015.

[15] O´Neill, A. (1999) Amanhã aconteceu. in: De ombro na ombreira. Lisboa: Relógio d’Água, p.13-15.

[16] ibidem, p.104.

[17] Martins, M. L. (2004) Da utopia da comunicação à comunicação sem utopia. Metamorfose no sistema e nas relações de comunicação nos últimos trinta anos em Portugal. in Actas Congresso Associação Portuguesa de Sociologia.

[18] ibidem, p.49.

[19] “Converter a escrita das ciências sociais e humanas em objecto de pesquisa constitui deste modo um procedimento autocrítico e auto reflexivo, onde o que se olha é o próprio olhar, o próprio regime de observação.” (Martins, 1997, p. 184).

[20] Em 2002, o artigo integrou o livro “A Linguagem, a Verdade e o Poder: Ensaio de Semiótica Social”, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa.

[21] Martins, M.L. (1997) A escrita que envenena o olhar – deambulação pelo território fortificado das ciências do homem. in A Linguagem, a Verdade e o Poder: Ensaio de Semiótica Social. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian e Fundação Ciência e Tecnologia. p. 169-192.

[22]Martins, M.L. (2004) Semiótica. Braga: CECS, Universidade do Minho. Disponível em: <http://www.cecs.uminho.pt> Acesso em: 12 nov 2015.

[23] Martins, M. L. (2015) A liberdade académica e os seus inimigos. in Comunicação e Sociedade, vol. 27, 2015, pp. 405 – 420 Disponível em: <doi: http://dx.doi.org/10.17231/comsoc.27(2015).2109> Acesso em: 12 dez 2015.

 

Referências

Brito, Regina & Martins, M.L. (2004) Considerações em torno da relação entre língua e pertença identitária no contexto lusófono. in Anuário Internacional de Comunicação Lusófona (pp. 69-77). São Paulo: Lusocom – Federação Lusófona de Ciências da Comunicação.

Martins, M.L. (1996) Para uma inversa navegação. O discurso da identidade. Porto: Edições Afrontamento. Colecção: Biblioteca das Ciências do Homem.

_____ (1997) A Sociedade da Informação e o Sentido da Mudança Cultural. in Actas I Lusocom – Comunicação e Cultura. Lisboa: I Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação. p.123-129.

_____ (1997) A escrita que envenena o olhar – deambulação pelo território fortificado das ciências do homem. in A Linguagem, a Verdade e o Poder: Ensaio de Semiótica Social. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian e Fundação Ciência e Tecnologia. p. 169-192.

_____ (1999) Comunicação Inaugural do Presidente do III Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação, Prof. Dr. Moisés de Lemos Martins. in Comunicação e Sociedade, v. 2. Braga: Departamento de Ciências da Comunicação. Universidade do Minho.

_____ (1999) Introdução. in Cadernos do Noroeste. v.12 (1-2), 1999. Série Comunicação. Comunicação e Sociedade 1. Braga: Centro de Ciências Históricas e Sociais da Universidade do Minho.

_____ (2003) O Quotidiano e os Media. in Todas as Letras – Revista de Língua e Literatura, v. 5, n. 1, p.97-105, 2003. Disponível em: < http://editorarevistas.mackenzie.br/> Acesso em 15 Nov 2015.

_____ (2004) Da utopia da comunicação à comunicação sem utopia. Metamorfose no sistema e nas relações de comunicação nos últimos trinta anos em Portugal. in Actas Congresso Associação Portuguesa de Sociologia,  2004.

_____ (2004) Semiótica. Braga: Centro de Estudos da Comunicação e Sociedade. Universidade do Minho. Disponível em: <http://www.cecs.uminho.pt> Acesso em: 15 Nov 2015.

_____ (2004) Conferência de Abertura: Lusofonia e Luso-tropicalismo. Equívocos e possibilidades de dois conceitos hiper-identitários. in Actas do I Congresso sobre Lusofonia, na PUC-SP.

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O´Neill, A. (1999) Amanhã aconteceu. in: De ombro na ombreira. Lisboa: Relógio d’Água, p.13-15.

* Doutoranda em Comunicação pela Universidade de São Paulo. Mestre em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.

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