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Isabel Ferin

Por Maria Cristina Castilho Costa ¹

Isabel Ferin - a cidadã do mundo

Palavras-chave:
Democracia; Globalização; Mídia; Portugal; África


Desdemocratização da Europa: o papel da mídia

No último volume da Revista Intercom, foi publicado artigo de Isabel Ferin Cunha² intitulado Democracia, Media e Corrupção Política , no qual a autora analisa a transformação da democracia européia, a partir de 2008, quando o princípio de uma democracia civil e social começa a ser substituído pelo de democracia de mercado.

Segundo Ferin, o capitalismo ultraliberal que passou a dominar no continente exige dos governos uma atitude empresarial que privilegia o superavit nas contas públicas ao invés da justiça social e do amparo às populações sob sua jurisdição. Em razão disso, medidas impopulares de contenção de gastos e de diminuição das despesas públicas passaram a ser exigidas de governos cujas contas parecem não fechar, especialmente nos países considerados periféricos, como Turquia, Portugal, Espanha e Itália – países estes recém saídos de regimes ditatoriais e pouco preparados para assumir o capitalismo concorrencial que impera no mundo globalizado.

Nesse cenário, completa a autora, a mídia, fazendo eco às tendências globais, tem atuado no sentido de valorizar as estratégias de combate ao chamado “desperdício”, à “ineficiência” e ao “despreparo” dos que ocupam cargos públicos, aplaudindo, em contraposição, medidas que reduzem garantias, direitos e ganhos dos trabalhadores. O combate à corrupção aparece nessa pauta como uma ação visando a combater o mau uso do dinheiro público e a incompetência dos administradores da coisa pública.

Notícias cobrindo processos de corrupção parecem ser o serviço que a mídia presta ao capitalismo liberal por defender a transparência de contratos e denunciar a fuga de dinheiro público para negócios ilícitos. Diante do sensacionalismo dessas matérias, divulgadas por uma imprensa cada vez mais precarizada pela concorrência dos grandes grupos internacionais, as medidas impopulares parecem corresponder a uma certa e adequada transparência na gestão pública.

Diz Ferin, a certa altura do texto:
Na decorrência deste percurso, a lealdade inerente ao exercício da representação em democracia é substituída pela confiança nas leis de mercado e pela lealdade aos contratos firmados entre os estados e os grupos econômicos e financeiros” .

Também sobre a globalização e as transformações que ocorrem na comunicação por conta da concentração de poder e capital nas mãos de poucas empresas, do capitalismo concorrencial e da hegemonia dos interesses de mercado, cabe destacar a proposição de Ferin no artigo Media e padrões da corrupção política: os casos Freeport e Face Oculta, publicado pela revista Media e Jornalismo, do Centro de Investigação Media e Jornalismo – CIMJ (Portugal,Lisboa), do qual é pesquisadora e onde coordena projeto de pesquisa sobre o tema. Diz ela:

Paulatinamente, a atividade jornalística foi-se subordinando às audiências, aos anunciantes e aos grandes interesses do capital, promovendo discursos “conformistas” e adquirindo características de infoentretenimento .

Mais adiante, a autora afirma que, se a ênfase dada às denúncias de corrupção podem ser vistas como “um serviço prestado à democracia, a saliência dada aos escândalos produz uma crescente desconfiança face à democracia e à capacidade dos políticos representarem o interesse coletivo dos cidadãos” .

Mídia, globalização e regionalismo
Os media e o regionalismo é o título do capítulo 9 do livro Contextos e Dinâmicas, publicado pelo Observatório da Imigração, em Portugal, de autoria de Isabel Ferin. Nesse trabalho, a autora disserta mais uma vez sobre a globalização. Baseando-se em autores importantes e conhecidos dos pesquisadores em Ciências da Comunicação, como Bauman, Giddens e Castells, entre outros, analisa o papel da mídia no fenômeno da globalização. Conforme os autores referenciados, os meios de comunicação seriam os responsáveis por um processo hegemônico e homogeneizador da cultura criada e difundida pela globalização. Por outro lado, a desregulamentação dos meios de comunicação e sua sujeição às leis de mercado teriam levado a uma mercantilização das programações, dos objetivos e das características dos processos comunicacionais. Em função disso, ocorre no mundo a concentração dos meios de comunicação em um pequeno número de empresas informativas, o que provocaria o enfraquecimento das empresas de menor porte, especialmente as regionais. Assim, a globalização, da mesma forma como enfraquece o Estado-nação, enfraqueceria a comunicação local e regional.

Ferin debate essas ideias e, não obstante,orienta seus estudos para outra direção. Considera que a globalização não afeta a produção simbólica da mesma forma como influencia a produção,a circulação e o consumo de bens materiais. Diz ela:

[...] as séries americanas e os filmes de Hollywood, tendo uma circulação global, não penetram, nem através de satélite, por razões políticas, econômicas e culturais, em determinados países ou regiões, enquanto os carros e os produtos farmacêuticos ou similares têm entrada franca ou mais facilitada.

Por outro lado, justifica a autora, uma série de nações de posição mais periférica em relação ao capitalismo globalizado, como o Brasil e a Índia, têm disponibilizado produtos que são consumidos por amplas regiões e diferentes países. Essas considerações, aliadas à resistência dos Estados nacionais em abrir mão de seu poder político, econômico e cultural no interior de seus territórios, mostram que a comunicação local e regional é estimulada a crescer em face do processo homogeneizador da globalização.
Essa resistência da comunicação local e regional é amparada, segundo Ferin, pelo idioma, história e cultura comuns, reforçando o sentimento de “pertença que articula a ideia de identidade” . Essa identidade afirma as características de um grupo ou de um público, ao mesmo tempo que o defende do que é diferente e que, de alguma forma, ameaça a sua memória e coesão. Nesse sentido, os media se mostrariam como um espaço simbólico cultural imagético de resgate da memória cultural do grupo. E, na medida em que cumprem esse papel, eles se tornam econômica e financeiramente viáveis.

Por outro lado, Ferin ressalta que essa função da mídia local e regional vem crescendo à medida que aumenta a globalização estimulando as migrações e os deslocamentos de grandes populações e a formação de comunidades culturais e linguísticas que já não correspondem aos limites de um território, mas ao alcance da sua identidade cultural.

São as comunidades dispersas, como é o caso da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa, a CPLP, que congrega uma população que vive em três continentes. Portanto, conforme a autora, haveria, entre a globalização dos meios de comunicação e a resistência dos regionalismos midiáticos, uma inter-relação importante em que os processos globalizantes alavancariam as resistências regionais, a criação e fortalecimento de novos grupos de produção midiática. A lusofonia, pensada como uma comunidade linguística, cultural e política reunindo uma população esparsa, que já não se limita à territorialidade e à vizinhança, é um dos resultados da globalização e se fortalece com ela, ao invés de se enfraquecer.
Assim, Ferin defende o papel dos meios de comunicação no fortalecimento dos pequenos e no apoio à singularidade cultural dos grupos, esse repertório de ações e tradições compartilhado por grupos próximos vizinhos e não vizinhos de uma mesmaregião.

Televisão e imagens da diferença
Memórias da Telenovela – programas e recepção é o título de um livro publicado por Isabel Ferin em 2011. Sobre o mesmo tema, publicou ainda A televisão das mulheres: ensaios sobre a recepção , em 2006.Essas obras e inúmeros outros ensaios, capítulos e artigos, publicados no Brasil e em Portugal, abordam este tema de grande interesse da investigadora – a produção ficcional televisiva seriada e, dentre desta, especialmente, o caso da telenovela. Estudiosa de como os meios de comunicação possibilitam entender as inter-relações entre cultura, comunicação e quotidiano, a telenovela se tornou para Isabel Ferin um objeto estratégico para aplicação de conceitos elaborados pelos cientistas da comunicação, em especial, os desenvolvidos pelos Estudos Culturais .

Tendo acompanhado o sucesso da telenovela brasileira nos anos em que viveu no Brasil e, no retorno a Portugal, em 1992, deparando-se com os altos índices de audiência alcançados em seu país natal, Ferin passou a ser uma atenta e constante pesquisadora do tema. Pertence, desde 2005, ao OBITEL(Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva), que reúne pesquisadores universitários de ficção televisiva de países da Europa e América Latina e é coordenado, no Brasil, pelo Centro de Estudos de Telenovela (CETVN), da Escola de Comunicações e Artes da USP. Com essa participação, dedica-se a entender as apropriações dos conteúdos das telenovelas pelo público dos países para os quais essas produções são exportadas, bem como a influência no quotidiano e no estilo de vida que resulta desse processo.

Analisou como a telenovela brasileira foi aceita em Portugal, como o público se identificou com fenômenos como Gabriela , inspirada em obra do escritor baiano Jorge Amado, e qual o papel da memória e da história nessa assimilação. Identificou no público feminino, a platéia por excelência da telenovela, a absorção de hábitos, costumes e expressões linguísticas a partir do acesso à televisão. Por outro lado, percebeu também a formação de estereótipos culturais relativos a minorias étnicas, como as mulheres ciganas ou mesmo as brasileiras. Em razão dessas constatações, dedicou-se a estudar a recepção das telenovelas por espectadoras que fazem parte desses grupos sociais, procurando investigar como elas se percebiam retratadas na teleficção. Ferin conclui:

Convém acrescentar que as mulheres ciganas fazem as leituras das peças em função do reconhecimento que têm do seu grupo e do olhar que pensam que a sociedade maioritária tem sobre ele. Por outro lado, o conjunto de observações indica a aceitaçãode uma ordem social baseada em diferenças entre a maioria e uma minoria, assumindo implicitamente o estatuto inferior que lhe é atribuído pela sociedade dominante, embora mantendo estratégias de resistência e sobrevivência .

O que há de comum nesses estudos?
Para responder à pergunta acima, recorro ao que me disse Isabel Ferin quando lhe solicitei que aceitasse a supervisão de meu projeto de pós-doutoramento, na Universidade de Coimbra, tendo por objetivo comparar a censura existente no Brasil, no século XX, com aquela havida em Portugal, na mesma época. Disse-me ela, na ocasião, que pesquisas que favorecessem a democracia e o desenvolvimento humano seriam bem recebidas por ela. Pois bem, o trabalho científico de Ferin expressa exatamente essa necessidade de lutar por uma sociedade mais igualitária e democrática, em que os meios de comunicação possam servir para o fortalecimento da tolerância, do pluralismo e da justiça social.

Com uma abordagem multidisciplinar que envolve os conhecimentos de História (sua primeira graduação), as Ciências da Comunicação (a partir das quais fez seu mestrado e doutorado), Política e Antropologia, e desenvolvendo uma metodologia que alia a profundidade teórica à paciência e meticulosidade da pesquisa empírica, ela reafirma em seus textos o anseio por uma sociedade mais justa e igualitária.
Nesse sentido, busca no papel relevante que desempenham os meios de comunicação, uma forma de atuação que favoreça o caminho capaz de nos levar a isso.

Brasilianista ora direis...
Chamam de brasilianista o cientista estrangeiro especializado em coisas do Brasil. O termo nasceu nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX, e designava aquele que, tendo privilegiado o Brasil como objeto de estudo, conseguisse vê-lo a partir de um olhar externo.

Sim, Isabel Ferin é uma brasilianista que por aqui viveu por longos anos, estudou, pesquisou, trabalhou e deixou que a cultura brasileira penetrasse em seu ser e se expressasse em seus trabalhos de pesquisa.

Foi aluna, pesquisadora, professora, orientadora de brasileiros, assim como, depois de retornar a Portugal, esteve continuamente por aqui fazendo palestras, publicando livros, desenvolvendo pesquisas, orientando trabalhos e compondo equipes e projetos. Sem dúvida, é uma fervorosa brasilianista.
Mas não só isso. É também uma africanista que lutou pela liberdade das colônias portuguesas e que se dedicou ao estudo da descolonização dos países africanos. Sendo também portuguesa e migrante, professora da Universidade de Coimbra, a mais antiga de Portugal e uma das primeiras da Europa, é sabedora do poder da cultura de origem e do pertencimento a essa proximidade afetiva e histórica da identidade lusófona.

Assim, como bem definiu Fernanda Castilho, sua ex-orientanda entrevistada por mim para este trabalho, ela é antes de tudo uma “cidadã do mundo”: viajada, professora visitante, pesquisadora migrante, militante do saber, alguém que deixa no Brasil, e emto dos os lugares por onde anda, inúmeras amizades, incontáveis alunos e incansáveis admiradores.

Bibliografia

CUNHA, Isabel, Ferin. Os media e o regionalismo. In: LAGES, Mário Ferrreira e MATOS, Artur Teodoro (Org.). Percursos de Interculturalidade (volume 2). Lisboa: Observatório da Imigração, 2008, p. 383.FERIN, Isabel. A televisão das mulheres: ensaios sobre a recepção. Liboa: Bond, 2006.
CUNHA, Isabel Ferin. Democracia, media e corrupção política. RBCC, Intercom, São Paulo, v.38, n.1, p. 37-63, jan./jun. 2015.
CUNHA, Isabel Ferin. Media e padrões da corrupção política: os casos Freeport e Face Oculta. Revista Media e Jornalismo, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. 14, n. 26, p. 58, 2015.
DURST, Walter George; AVANCINI, Walter; BLOTA, Gonzaga.Gabriela [minissérie]. Roteiro de Walter George Durst, direção de Walter Avancini e Gonzaga Blota. Brasil, Rede Globo de Televisão, 1975.
FERIN, Isabel. Comunicação e culturas do quotidiano. Lisboa: Quimera, 2009
FERIN, Isabel Cunha. Memórias da Telenovela. Programas e recepção. Lisboa: Horizonte, 2011.


¹ Professora titular do Departamento de Comunicações e Artes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (OBCOM), sediado na mesma universidade.


² CUNHA, Isabel Ferin. Democracia, media e corrupção política. RBCC, Intercom, São Paulo, v.38, n.1, p. 37-63, jan./jun. 2015.

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