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Ulysses Pernambucano

Por Alisson Dias Gomes

Ulysses Pernambucano: um homem à frente de seu tempo
Alisson Dias Gomes

 

Com toda a razão, diga-se, o sociólogo Gilberto Freyre, em discurso proferido na Câmara Federal, no Rio de Janeiro, em 30 de setembro de 1950, afirmou em certo momento: “[...] dizia eu – que quis sufocar com sua polícia de capangas a voz do operário que clamasse por seus direitos, a voz do homem do povo que revelasse sua dor e sua fome, a voz do estudante que não traísse sua mocidade para aceitar, ainda quase menino, emprego de espião policial contra os colegas e os mestres, a voz do jornalista, a voz do professor, a voz do médico independente como esse que se chamou Ulysses Pernambucano e que foi o mais pernambucano dos pernambucanos.”

Marcelo Alcoforado, 2012

 INTRODUÇÃO

Diante da proposta apresentada pelo grupo liderado por José Marques de Melo no sentido de coletar perfis de “Brasileiríssimos”, termo aqui utilizado, na acepção de personalidades expressivas do brasileirismo comunicacional, expressão concebida, por sua vez, como traços característicos do que é brasileiro ou do Brasil em Comunicação Social, é inevitável a identificação de intelectuais representativos de diferentes níveis comunicacionais.

No caso de Ulysses Pernambucano de Melo Sobrinho ou, simplesmente, Ulysses Pernambucano, designação com a qual se torna conhecido, este se enquadra em múltiplas classes ou diferentes níveis. De início, pode ser categorizado como erudito, no sentido de que detém instrução ampla e variada. Por formação, é médico psiquiatra, professor e psicólogo. Além do mais, também é um intelectual popular, haja vista ser reconhecido como pedagogo que consegue transmutar as relações comunicacionais na esfera da escola pública, instituindo, na linha do educador Paulo Freire, o diálogo professor-aluno, reconhecendo, prioritariamente, a diversidade dos sujeitos cognoscentes, isto é, para ele, os indivíduos possuem, sim, capacidade de conhecer e desvendar o mundo.

Ainda no ranking de intelectuais do campo comunicacional, Ulysses Pernambucano é considerado um personagem de tendência massiva, termo aqui adotado na perspectiva de quem consegue atingir coletividades variadas e amplas. Quer dizer, a expressão é empregada distante da concepção massificação x de-massificação advinda da expansão da internet. Na contemporaneidade, a massificação da sociedade, contrariando as tendências dos meios de comunicação de massa tradicionais, incentiva a massificação de hábitos, costumes e atitudes, mas, agora, em perspectiva vertical, ou seja, no modelo in-formativo, em que o emissor manipula as probabilidades de transmissão de dados. No momento, caminha-se para a comunicação direcional, que conjuga grupos de interesses comuns. Graças à atuação das redes eletrônicas de informação e de comunicação, sobretudo, a citada internet, expande-se vertiginosamente um espaço democrático, o qual permite a indivíduos de perfis variados externarem seu livre pensamento. Independentemente de quaisquer fronteiras e leis, as pessoas efetivam diálogos em tempo real, indiferentes às diferenças espaciais e temporais.

No caso, Ulysses Pernambucano é categorizado como massivo porque atinge parcela significativa de segmentos populacionais por suas ações sociais, atuando como referente cognitivo na literatura produzida por brasilianistas e brasilianeiros, acompanhando as premissas de Freire, quando insiste que o educando, em qualquer vertente de atuação, só é verdadeiramente agente social ao assumir compromisso com a sociedade. Ademais, esse pacto prevê a capacidade de reflexão e de interiorização do processo de reflexão Þ ação Þ reflexão. Reflexão sobre si mesmo e sobre o seu estar no mundo, associados à ação sobre o mundo consistem em condição essencial para que assuma o pacto social:

Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de “distanciar-se” dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer-se (FREIRE, 1991, p. 17).

E, de fato, como se verá adiante, a vida de Ulysses Pernambucano passa a ser uma sucessão de missões, lutas, batalhas, embates, conquistas, reconquistas e conflitos, mas, sempre, um ciclo de esforços em prol de minorias marginalizadas da sociedade brasileira, incluindo crianças excepcionais, doentes mentais, negros e / ou adeptos de credos menos disseminados.

 

2          ULYSSES PERNAMBUCANO: FORMAÇÃO E ATUAÇÃO

Como consensual entre estudiosos da trajetória do pernambucano Ulysses, tais como Andrade (2009), Barreto (1992), Medeiros (2011), Piccinini (2012), Rosas (2001) e Silva (1982), esse nordestino, que carrega consigo, desde o próprio nome, traços de sua origem, tem vida intensa, produtiva, rápida e voltada às inovações do fazer profissional diferenciado, tanto na medicina quanto na psicologia e na educação. Existência rápida. Afinal, chega ao mundo em Recife – Pernambuco (PE), no dia 6 de fevereiro de 1892, e morre, aos 51 anos, na então capital Rio de Janeiro (Estado do RJ), em 5 de dezembro de 1943.

Filho do advogado José Antônio Gonçalves de Mello e de Maria da Conceição de Mello (ainda parenta do marido), Ulysses (Figura 1) procede de tradicional família, o que lhe favorece boas oportunidades de estudo e formação. Como comum em famílias abastadas de então, é alfabetizado na própria família, com a particularidade, neste caso, de ser o pai que assume o encargo. Mais adiante, segue estudos no Ginásio Aires Gama, educandário particular de Recife e adiante, ainda adolescente, viaja para o Rio, onde, posteriormente, estuda medicina, uma vez que, à época, inexiste Faculdade de Medicina em Recife.

 

Figura 1 –

O jovem Ulysses Pernambucano

  Ulysses figura1

Fonte:

https://www.google.com.br/search?q=ulysses+pernambuco

 

Antes mesmo da conclusão do Curso, escolhe como especialidade a psiquiatria. Sua tese de doutoramento, expressão designativa para o trabalho final de graduação naquele momento histórico, é intitulada “Sobre algumas manifestações nervosas da heredo-sífilis”, defendida em 1912, aos 20 anos.

Ainda de acordo com Andrade (2009) e Medeiros (2011), logo depois, inicia sua experiência médica no chamado Serviço do Professor Juliano Moreira, considerado o fundador da psiquiatria brasileira. O Serviço está no Hospital Nacional de Alienados (RJ) e Ulysses Pernambucano permanece sob a orientação direta de Ulisses Viana, a quem considera seu mentor ao longo do aprendizado psiquiátrico inicial, e sob a supervisão de Juliano Moreira. É a oportunidade única de presenciar verdadeira revolução nos procedimentos psiquiátricos da época, sobretudo, no que se refere à humanização das condições de vida dos pacientes internados.

Concluída sua formação em termos de graduação e de especialização, Ulysses Pernambucano retorna a PE. Em vez de optar por Recife, fiel a seus princípios humanitários, se desloca para o município de Vitória de Santo Antão, distante 55 quilômetros da capital. Com área territorial de 372,637 km² e densidade geográfica estimada em 362,76 habitantes / km², a população da “Capital da Zona da Mata” apresenta, como esperado, precárias condições de vida, razão pela qual o jovem executa suas funções médicas como clínico geral.

 Dois anos depois, 1914, transfere-se para o Sul, município de Lapa (Paraná, PR) e não tarda a se casar, em 1915, com uma prima, também médica, Albertina Carneiro Leão. Os filhos – José Antônio Gonçalves de Mello Neto e Jarbas Pernambucano de Mello – seguem seus rumos. O primogênito torna-se historiador e docente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O mais jovem segue a carreira do pai e chega a sucedê-lo na Disciplina / Cátedra de Clínica Neurológica, mas falece prematuramente.

O fato é que, em termos profissionais, mesmo reconhecido no PR, em 1916, Ulysses, movido por sentimentos de saudade de sua terra e de sua gente, retorna a Recife, onde instala seu primeiro consultório de psiquiatria. Em 1918, cria-se, em Recife, a Disciplina Psicologia e Pedagogia na Escola Normal Oficial do Estado de Pernambuco, e, por conseguinte, se instaura concurso público para preenchimento da vaga. O médico concorre com a dissertação: “Classificação das crianças anormais. A parada do desenvolvimento intelectual e suas formas; a instabilidade e a astenia mental.” Classificado em primeiro lugar, por motivos políticos, o então Governador de PE, entre 1915 e 1919, Manoel Antônio Pereira Borba, arbitrariamente, nomeia o segundo colocado para ocupar a cátedra.

Em sua obstinação e ciente de seus ideais, ainda em 1918, Ulysses volta a se inscrever junto ao concurso de catedrático de Lógica, Psicologia e História da Filosofia. De novo, alcança o primeiro lugar e, desta vez, é nomeado para professor catedrático do Ginásio Pernambucano, onde, mais tarde, exerce a função de diretor.

Indo além, ano 1923, Ulysses Pernambucano é designado pelo Governador  de PE, entre 1922 e 1926, Sérgio Teixeira Lins de Barros Loreto, para ocupar o cargo de Diretor da Escola Normal, função em que permanece até 1927. Sua gestão se caracteriza por reformas de impacto pedagógico e social, dentre as quais chama atenção o exame de seleção para admissão à Escola, pondo fim ao regime vigente de apadrinhamento. Além de mudanças organizacionais, incorpora novos conteúdos programáticos e métodos inovadores de ensino. Institui exames de promoção por média em conjunto. Faz circular um jornal, o que prova sua preocupação com a circulação de notícias e com a comunicação em geral. Assegura a merenda escolar. São iniciativas sempre alusivas ao bem-estar dos menos favorecidos, atraindo, consequentemente, adeptos e desafetos, haja vista que esse profissional imprime, irremediavelmente, à sua prática como psicólogo, psiquiatra e educador, uma dimensão marcadamente política e igualitária.

Trabalhando sem cessar, antes mesmo de fundar o Instituto de Psicologia de Pernambuco, em 1925, Ulysses investe na formação de uma equipe, reunindo interessados na temática.  Entre eles, destaca-se a recifense Anita Paes Barreto. Em 1927, em colaboração com Ulysses, a jovem publica “Estudo psicotécnico de alguns testes de aptidão.” Entre 1925 e 1935, participa da prática e da realização de estudos pioneiros, no Recife, no campo da psicologia aplicada. A partir de 1931, coordena várias pesquisas sobre a revisão pernambucana dos Testes de Binet, Simon e Terman, cujos resultados são publicados, principalmente, em revistas locais de caráter científico.

Os três autores – os franceses Alfred Binet e Theodosius Simon (1929) e o norte-americano Lewis Madison Terman (HILGARD, 1957) – envolvem-se, no início e em meados do século XX, com quocientes de inteligência para avaliar as capacidades cognitivas dos sujeitos, com a ressalva de que os QI, naquele momento, despertam bastante interesse no Brasil e no exterior, o que demonstra a atenção de Ulysses desde sempre para as questões vanguardistas subjacentes à área de aprendizagem. Esta envolve não apenas recursos didáticos e pedagógicos per se, mas, sobretudo, o psiquismo dos sujeitos, atestando o perfil multifacetado de Ulysses Pernambucano como intelectual erudito, massivo e popular.

Como colaboradores nos planos de Ulysses para a criação do Instituto de Psicologia de Pernambuco, além de Anita P. Barreto (1992), destacam-se Sylvio de Lyra Rabello; Ana Campos; Anita Costa; Maria das Neves Monteiro; Maria Leopoldina de Oliveira; Alda Campos; Helena Campos; Maria de Lourdes Vasconcelos; Cirene Coutinho e Celina Pessoa. Retomando a idealização do Instituto, ainda em 1925, Ulysses consegue, junto ao Governo do Estado de Pernambuco, condições favoráveis para a criação da primeira escola para crianças excepcionais do país. No ano de 1927, como citado, deixa a direção da Escola Normal e, em seguida, 1928, passa a exercer a direção do Ginásio Pernambucano. Assume, simultaneamente, ainda em 1925, a criação e a chefia do Instituto de Seleção e Orientação Profissional de Pernambuco e desempenha a prática docente na Disciplina Neuropsiquiatria Infantil na Faculdade de Medicina em Recife. Com a morte do professor e doutor Gouveia de Barros, ocupa a cadeira de Clínica Neurológica.

Em 1930, Ulysses Pernambucano transfere a direção do Ginásio Pernambucano a Olívio Montenegro, por conta de convite do então Interventor Carlos de Lima Cavalcanti para coordenar os serviços de assistência aos psicopatas do Hospital da Tamarineira, Figura 2. Sua designação advém do nome do bairro recifense onde está situado. Por algum tempo, é nomeado, oficialmente, Hospital de Alienados. Por fim, graças à iniciativa do então Secretário de Saúde de Pernambuco, gestão entre os anos de 1979 a 1983, Djalma Antonino de Oliveira (Governos de Marco Antônio de Oliveira Maciel e José Muniz Ramos), a instituição hospitalar é renomeada como Hospital Ulysses Pernambucano (HUP), justa homenagem ao reformador radical de ações em prol dos pacientes internos.

 

Figura 2 –

Hospital Ulysses Pernambucano, Recife

 Ulysses figura2 

Fonte:

https://www.google.com.br/search?q=hospital+da+tamarineira

 

As condições adversas do manicômio durante décadas a fio, com ênfase para os anos 30 e 40, estão presentes até a atualidade na mente de muitas gerações de recifenses e pernambucanos, face aos horrores ali protagonizados. Por conseguinte, é voz geral o reconhecimento da população de que o avanço da psiquiatria no Estado, na região Nordeste e no Brasil tem um débito considerável para Ulysses, em sua condição de intelectual de extrema capacidade comunicacional e agente de ações sociais multiplicadoras. Por exemplo, é ele quem extermina os verdadeiros calabouços e o violento hábito do uso de camisas de força, levando o escritor brasileiro José Lins do Rego a ilustrar um de seus depoimentos com a transcrição:

Em menino, num engenho da Paraíba, ouvia falar da Tamarineira como o de um inferno. A casa de doidos do Recife criara a sua fama terrível. Ulysses reduziu-a a uma casa de saúde modelar. Tudo o que era camisa de força, grades de ferro, castigos, ficara como uma lembrança infeliz, uma recordação tenebrosa (ALCOFORADO, 2012, não paginado).

Assim, é evidente que a história do Hospital Ulysses Pernambucano nem sempre tem sido tranquila. Oficialmente, sua pedra fundamental é instalada em setembro de 1874. Alguns anos depois, 1883, ano efetivo de sua inauguração, na condição de patrimônio do Estado de PE, passa a ser administrado pela Santa Casa de Misericórdia, instituição encarregada da saúde pública da população brasileira, desde o Império. 

Em 1924, o Governo de Pernambuco reassume o comando por meio de Decreto do Governador Barbosa Lima Sobrinho. Diante da situação caótica do Hospital e do convite para Ulysses tomar as rédeas institucionais, no citado 1930, há visível melhoria. Mas, como sempre acontece com qualquer idealista, há um preço a ser pago. Não tarda a faltar condições infraestruturais para que ele prossiga seu trabalho na Tamarineira, a tal ponto que, forçado por sérias circunstâncias adversas que se agravam com rapidez, ele pede demissão do cargo, no dia 8 de novembro de 1935.   

É o momento da denominada Intentona Comunista ou Revolta Vermelha de 35 ou Levante Comunista, movimento a que se atribui, supostamente, uma tentativa de golpe contra o Governo de Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas].  Diz-se que em 27 de novembro de 1935, o Levante se dá liderado pelo Partido Comunista Brasileiro em nome da Aliança Nacional Libertadora, mas é combatido, com rapidez, pelas Forças de Segurança Nacional.

Em meio a todos esses acontecimentos, exatamente por sua atuação social e profícua, em 1935, o sonhado Instituto de Psicologia de Pernambuco é extinto e seu idealizador é preso na Casa de Detenção do Recife, por 60 dias, como subversivo, comunista e outras acusações adicionais. Naquele momento, Anita P. Barreto resiste e continua sua luta junto a crianças excepcionais. Assume a direção entre 1942 e 1957 da então Escola Aires Gama, assim denominada no período de 1941 a 1947, para ganhar, posteriormente, o nome de Escola Especial Ulysses Pernambucano. Esta, ao que tudo indica, pelo menos em suas funções originais, não mais existe.

Possivelmente, o corpo fraqueja diante de tanto sofrimento psíquico e mental. Ulysses Pernambucano, em 1936, sofre ataque cardíaco. A luta, porém, continua. No ano seguinte, colaboradores se solidarizam com o mentor e editam os Estudos Pernambucanos”, dedicados ao Mestre, que, indiferente às dores d’alma e do corpo, ainda consegue instalar o Sanatório Recife, 12 de julho de 1936. A entidade, pouco a pouco, transforma-se em instituição modelar de prestação de serviços aos portadores de deficiência mental, apesar de sua atuação na esfera privada. Reconhecido nacionalmente como centro psiquiátrico inovador, abriga, na ocasião, renomados psiquiatras, a exemplo de Arnaldo Di Lascio, René Ribeiro e Luiz Cerqueira.

Com a demissão junto ao HUP, a prisão e a morte do idealista e idealizador pernambucano, a vida do Hospital oscila entre períodos precários e de aparentes benesses. Nos dias de hoje, suas atividades têm continuidade como hospital psiquiátrico, inclusive em regime de internação, ambulatório e terapia ocupacional, figurando como uma das duas únicas unidades de emergências psiquiátricas do Estado de Pernambuco.

Mesmo tombado como Patrimônio Histórico do Estado, graças ao Decreto n. 15.650, de 1992, por sua beleza arquitetônica e extensão territorial, o Hospital tem sido alvo constante de movimentos liderados pela Santa Casa visando à demolição para abrigar prédios residenciais, shoppings e outros investimentos imobiliários. A situação chegou a tal ponto que, após declaração midiática dos administradores da Casa de que se desfariam da área, ano 2010, a população local reage publicamente em defesa do Hospital.

Além de lançar mão do apoio da mídia, cria-se uma organização não governamental “Amigos da Tamarineira” com o fim explícito de defender a causa ao lado do “Grupo Tamarineira: loucos por ela”, em amparo ao patrimônio histórico, e, em especial, de cunho ambiental. É preciso lembrar que o HUP se diferencia de uma série de outras unidades hospitalares por estar situado numa área verde de nove hectares, dos quais cerca de cinco ou seis estão completamente cobertos por plantação, inclusive exuberantes palmeiras, Figura 2. Trata-se de um espaço que garante aos internos um ambiente favorável a atividades terapêuticas e de lazer, e, por conseguinte, propício a uma recuperação mais rápida.

Nesse momento, 2010, órgãos governamentais se posicionam a favor do HUP, a exemplo da Assembleia Legislativa de Pernambuco, da Câmara Municipal do Recife, do Instituto Arqueológico, do Histórico e Geográfico Pernambucano e do Conselho Estadual de Cultura (HOSPITAL Ulysses Pernambucano, 2015).  E mais, Decreto Municipal de 4 de junho de 2010, assinado pelo então prefeito do Recife, João da Costa [Bezerra Filho], desapropria o terreno do HUP para transformá-lo em parque público, o que não ocorreu até o final de 2015.

O fato é que, hoje, o Hospital prossegue vivo, e desde 2002, atrai grande público, quando da realização do festival anual “Rock na Tamarineira”, a cargo de bandas independentes locais ou regionais, com o propósito de lembrar e dar continuidade à luta iniciada por Ulysses Pernambucano de Melo Sobrinho em aproximar as coletividades dos ditos deficientes mentais.

Ademais, o versátil profissional e comunicador investe, com vigor, na produção de pesquisas e estudos, muitos dos quais registrados em publicações, como: “Jornal de Medicina de Pernambuco” e em títulos por ele editados. É o caso, por exemplo, dos Arquivos de Assistência a Psicopatas de Pernambuco”, de 1931. A este respeito, para Lucena (1978, apud BARRETO, 1992, não paginado), ao investir, nos anos 30, na reestruturação da assistência a psicopatas do Estado, Ulysses Pernambucano “conseguiu pôr em funcionamento um modelo assistencial que rompia frontalmente com a tradição custodiada e de primado do Hospital.” Afinal, é evidente que o renomado pernambucano Pernambucano “[...] não foi um esteta da linguagem, sendo, isto sim, um verdadeiro superesteta da criatividade, da produção científica, da pesquisa social e da dinamização dos valores”, segundo palavras de Marques de Sá (1978, p. 1).

Como se tantos esforços não fossem suficientes, em 1938, Ulysses é nomeado professor catedrático de Clínica Neurológica e dá aulas de química e de fisiologia. Sem descuidar da produção científica como instrumento essencial de fazer chegar aos segmentos populacionais os conhecimentos recém-gerados, ou seja, sempre atento, ao poder da comunicação, edita nova publicação periódica, qual seja, a “Revista Neurobiologia.”

Os mencionados Arquivos de Assistência a Psicopatas de Pernambuco” constam como título extinto. De forma similar, a Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste criada por ele, também em 1938, não sobrevive. Segundo pesquisa exaustiva, salvo engano, a Sociedade mantém tão somente três congressos regionais, o último dos quais, em Natal – Rio Grande do Norte (RN), ano 1943. Em compensação, notícia impactante: a “Revista Neurobiologia” prossegue viva. Com 78 anos, mantém elevado padrão de qualidade, além de preservar a memória do fundador, como registro constante de seu endereço eletrônico acerca das comemorações do septuagésimo aniversário, há alguns anos atrás, confirma:

Em junho de 1938, o psiquiatra Ulysses Pernambucano fundou a Revista Neurobiologia, primeira publicação científica periódica de Neuropsiquiatria e Neurociências das Américas. Ao completar 70 anos, o periódico celebra o compromisso de ter mantido as publicações e a permanência de seu propósito inicial: ser o principal meio de divulgação de trabalhos científicos de Neurociências em Pernambuco e um dos mais importantes do Brasil (REVISTA Neurobiologia chega aos 70 anos, 2015, não paginado).

Depois do falecimento de Ulysses Pernambucano, notícias de fontes confiáveis da imprensa recifense dão conta de que o Sanatório Recife (Figura 3) chega ao fim, de acordo com palavras de Henrique Barbosa (2014, não paginado):

O último hospital psiquiátrico ainda em funcionamento no Brasil fechou suas portas. É o Sanatório Recife, localizado à Rua Padre Inglês, 257, na Boa Vista. Em seu lugar surgirá a faculdade IBGM [Instituto Brasileiro de Tecnologia, Gestão e Marketing] que adquiriu toda a área onde funcionava o Sanatório. O acordo está fechado a sete chaves, mas a transação já foi efetivada.

 

Figura 3 –

Sanatório Recife chega ao fim

 Ulysses figura3

Fonte:

https://www.google.com.br/search?q=imagem+do+sanatorio+recife&biw=1366&bih=633&tbm=isch&imgil=5vfkVHw

 

O compromisso é o de manter a originalidade do casarão inaugurado. Ele foi fundado [no dia] 12 de julho em 1936 pelo psiquiatra Ulysses Pernambucano, um dos maiores nomes da psiquiatria nacional.

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O dirigente do Hospital e neto do fundador, Ulysses Pernambucano de Mello, já esperava seu fechamento. Angustiado, dizia que a política governamental baseada na chamada reforma psiquiátrica prevê o gradual fechamento dos hospitais em busca de um tratamento desospitalizado. Os pacientes mentais seriam tratados em casa, e em caso de urgências, recebidos nos Centros de Assistência Psicossocial [...] e outras unidades de atendimento ambulatorial [...] Eu concordo com a ideia da descentralização hospitalar, mas a prática está mostrando outra coisa. Os centros não têm condição de receber pacientes que apresentam doenças mais graves, pois não dispõem de espaço físico e equipes capazes de lidar com crises agudas e violentas.

[...] A discriminação contra o paciente mental sempre existiu na história do homem. As culturas e lendas populares não morreram, apenas se adaptaram aos novos tempos. A banalização dessas doenças chegou a ponto de se incorporar à própria cultura, de serem “louco”, “doido” ou “maluco” alcunhas que não chocam, são nomes do imaginário popular. O desinteresse existe até na própria ciência. A doença mental é considerada a escória das doenças. Já quase não se formam psiquiatras nas turmas de medicina.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fim do Sanatório Recife ou revistas que não prosseguiram ou sociedades profissionais que fecharam suas portas não constituem sonhos mortos de Ulysses Pernambucano e, sim, sonhos vividos, dentro da reflexão maior de Paulo Freire quando insiste que ação e reflexão são elementos imprescindíveis à existência humana. Decerto, esta reflexão abrange ações para análise dos acertos e desacertos, haja vista que a maneira humana de existir está ela mesma condicionada à realidade em que cada indivíduo está inserido. Reitera-se que não há homem sem mundo. Não há mundo sem homem.

Nesta linha de pensamento, reflexão e ação estão sempre inseridas ou subjacentes à relação homem Þ realidade.  Tal relação, na visão de Freire (1991), acarreta a transformação do mundo, cujo produto condiciona tanto a ação quanto a reflexão. E, sem dúvida, a herança ou o legado que Ulysses deixa aos segmentos onde atuou ou por onde circulou é incontestável. Em vez de palavras e discursos, o médico psiquiatra, professor e psicólogo pernambucano mostra, a cada momento e em diferentes instâncias, seu compromisso como profissional e como cidadão, até porque não adianta discutir sobre a possibilidade de se manter uma dicotomia (sempre aparente e falsa) entre o compromisso na condição de ser humano e o compromisso na condição de profissional.

É a busca compulsiva da coerência comportamental, o que, talvez – mera elucubração – tenha conduzido Pernambucano ao estudo da mente humana. Isto conduz à ilação, sem temer o lugar comum, de que Ulysses Pernambucano de Melo Sobrinho continua vivo. Vivo em cada mente que conseguiu recuperar; em cada aluno que ajudou a buscar caminhos; em cada recanto das instalações que ajudou a cuidar; nos registros da medicina psiquiátrica e da psicologia do Estado de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil, como Rosas (2001) e Silva (1982) atestam. Vivo em sua produção, a exemplo dos 78 anos da “Revista Neurobiologia” que, literalmente, gestou...

Logo, não é à toa afirmar que a amplitude de interesses e de conhecimentos garantiu a Ulysses exercer, àquela época, uma prática psiquiátrica inovadora, a que hoje se denomina psiquiatria social, Piccinini (2012). Imprime, sistematicamente, às ações que implanta nítida preocupação preventiva por meio de ações integradoras e multidisciplinares, indispensáveis ao processo desenvolvimentista de povos e nações.

 

FONTES BÁSICAS DE REFERÊNCIA

ANDRADE, M. do C. Ulysses Pernambucano. 2009. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em: 14 dez. 2015.

MEDEIROS, A. Ulysses Pernambucano. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

PERNAMBUCANO, U. Classificação das crianças anormais. A parada do desenvolvimento intelectual e suas formas; a instabilidade e a astenia mental.

Recife: Imprensa Industrial, 1918.

_________. As médias de estatura de escolares em Pernambuco. Recife: Imprensa Industrial, 1927.        

ROSAS, P. (Org.) Memória da psicologia em Pernambuco. Recife: UFPE, Conselho Regional de Psicologia, 2001.

SILVA, J. F. da. Ulysses Pernambucano. In: _________. Vidas que não morrem. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1982. p. 447-449.

 

ULYSSES PERNAMBUCANO: PENSAMENTO COMUNICACIONAL

 

TÍTULO ORIGINAL

Ano

Sobre algumas manifestações nervosas da heredo-sífilis.

1912

Classificação das crianças anormais. A parada do desenvolvimento intelectual e suas formas; a instabilidade e a astenia mental.

1918

Bases fisiopsicológicas da ambidestria.

1924

As médias de estatura de escolares em Pernambuco.

1927

As doenças mentais entre os negros de Pernambuco.

1935

Revista Neurobiologia (em circulação).

1938-

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALCOFORADO, M. Pernambucano até no nome: Ulysses Pernambucano. 2012.   Disponível em: <http://www.josenimeloadvogados.com.br/joomla/index.php? option=com_content&view=article&id=77:pernambucano-ate-no-nome-ulysses-pernambucano&catid=18:memoria-pernambucana&Itemid=40>. Acesso em: 28 nov. 2015.

ANDRADE, M. do C. Ulysses Pernambucano. 2009. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em: 14 dez. 2015.

BARBOSA, H. Sanatório Recife é vendido e no lugar surgirá uma faculdade. 2014. Disponível em: <http://henriquebarbosa.com/sanatorio-recife-e-vendido-e-no-lugar-surgira-uma-faculdade>. Acesso em: 13 dez. 2015.

BARRETO, A. P. Ulisses (sic) Pernambucano, educador. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 12, n. 1, 1992.

BINET, A.; SIMON, T. Testes para medida do desenvolvimento da inteligência nas crianças.  São Paulo: Melhoramentos, 1929.

FREIRE, P. Educação e mudança. 18. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. 79 p.

HILGARD, E. R. Lewis Madison Terman: 1877-1956. American Journal of Psychology, [S. l.], n. 70, p. 472-479, 1957.

HOSPITAL Ulysses Pernambucano. 2015. Disponível em: <https://pt.wikipedia. org/wiki/Hospital_Ulysses_Pernambucano>. Acesso em: 22 nov. 2015.

MARQUES DE SÁ, J. Abertura do Ciclo de Estudos sobre Ulysses Pernambucano. In: CICLO DE ESTUDOS SOBRE ULYSSES PERNAMBUCANO, 1978, Recife – PE. [Anais...] Recife: Academia Pernambucana de Medicina, 1978.  p. 13-24.

MEDEIROS, A. Ulysses Pernambucano. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

PICCININI, W. J.  Ulysses Pernambucano e a psiquiatria social. Psychiatry On Line Brazil, v. 17, n. 3, não paginado, mar. 2012. (Part of The International Journal of Psychiatry, v. 20, Nov. 2011).

REVISTA Neurobiologia chega aos 70 anos. 2015. Disponível em: < https:// www. ufpe.br/agencia/index.php?option=com_content&view=article&id=10920:&catid=5&Itemid=78>. Acesso em: 11 dez. 2015.

ROSAS, P. (Org.) Memória da psicologia em Pernambuco. Recife: UFPE, Conselho Regional de Psicologia, 2001.

SILVA, J. F. da. Ulysses Pernambucano. In: _________. Vidas que não morrem. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1982. p. 447-449.

 

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