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Tancredo Neves

Por Nair Prata

Tancredo Neves[1]
Nair Prata[2]

 

Como dizia Guimarães Rosa, contar é muito dificultoso, não pelos anos que já se passaram, mas pela astúcia que têm certas coisas passadas. Assim, a saga de Tancredo Neves tem a criatividade e o sabor dos velhos casos mineiros, apesar de ter acontecido de verdade e não somente na imaginação. Pois parece imaginação a vida de um político que fundou uma nova era política no país, chamada Nova República, foi eleito o primeiro presidente civil do Brasil depois de longos anos de ditadura militar e, na véspera da tão sonhada posse, frustrou milhões de pessoas ao ser internado às pressas com fortes dores abdominais, morrendo pouco mais de um mês depois. A agonia de Tancredo durou 38 dias, acompanhada de perto pela população e por todos os veículos de comunicação do país.

A imprensa de todo o país preparou com detalhes a grande cobertura da festa da posse. Em Minas Gerais, terra natal do presidente, rádios, jornais e TVs planejaram à exaustão o trabalho jornalístico mas, ao invés disso, seus repórteres tiveram que se desdobrar para levar ao público ávido as notícias diárias de cirurgias sucessivas – sete ao todo – e depois o drama da morte, o velório em Brasília e Belo Horizonte e o enterro em São João del-Rei. Pela imprensa, a população acompanhou todos os lances desse episódio histórico, participando da programação das emissoras, rezando em coro pela recuperação do presidente e sugerindo inclusive alternativas médicas para o drama.

Alain Besançon apud Arruda (1990) diz que “a história é feita tanto de razão quanto de paixão” (p.258). Nos fatos envolvendo a doença e morte de Tancredo Neves, a razão se mistura à paixão de forma inseparável, dificultando o trabalho do pesquisador na tentativa de olhar cientificamente temas tão imbricados quanto sonho, mito, mineiridade, doença, povo, política e morte.

 

  1. Tancredo Neves: mito e mineiridade

Cada governo tem a oposição que merece. A um governo duro, intransigente e intolerante corresponde sempre uma oposição apaixonada, veemente e destrutiva.

Tancredo Neves: então deputado, em 1977, logo após o fechamento do CongressoNacional pelo presidente da República, Ernesto Geisel 

Tancredo de Almeida Neves nasceu no dia quatro de março de 1910, em São João del-Rei, Minas Gerais. Formou-se em Direito, pela Universidade de Minas Gerais e iniciou sua carreira política em 1933, quando filiou-se ao Partido Progressista. Tancredo ocupou vários cargos públicos.  Começou como vereador e foi deputado estadual, deputado federal, ministro da Justiça (no segundo governo de Getúlio Vargas), primeiro-ministro durante o governo parlamentarista e senador.

Com a decretação do Estado Novo getulista, em 1937, interrompeu sua carreira, mas voltou à política em 1945, com a queda do Estado Novo. Foi eleito deputado federal em 1950 e, em 1953, com o apoio de Juscelino Kubitschek, foi ministro da Justiça. Exerceu também os cargos de Primeiro-Ministro no governo de Jânio Quadros e de governador do Estado de Minas Gerais em 1982.

Tancredo aceitou o desafio de se candidatar à Presidência da República e, com o apoio de Ulysses Guimarães, venceu as eleições no Colégio Eleitoral, recebendo 480 votos contra 180 de seu adversário Paulo Maluf. No dia 15 de janeiro de 1985 foi eleito o primeiro presidente civil em mais de 20 anos. A posse estava prevista para o dia 15 de março. Depois do fracasso da campanha intitulada Diretas Já, que pedia a volta das eleições diretas para a presidência da República, Tancredo Neves representava o sonho do retorno de um civil ao poder. Até uma expressão foi cunhada para essa era que estava começando: Nova República. Mas ele não chegou a assumir. Na véspera, foi internado no Hospital de Base, em Brasília, com fortes dores abdominais e o vice José Sarney tomou seu lugar interinamente.

Depois de sete cirurgias e 38 dias de uma dolorosa agonia acompanhada de perto pela população e pela mídia, Tancredo morreu no 21 de abril de 1985, aos 75 anos de idade, vítima de infecção generalizada. A reação da sociedade foi semelhante, no contexto nacional, ao suicídio de Vargas, quando as pessoas saíram às ruas para chorar o presidente morto. No caso de Tancredo, os veículos de comunicação acompanharam todos os passos do presidente eleito desde o Colégio Eleitoral, os preparativos para a posse, a primeira internação, as sete cirurgias, os boletins médicos, os diversos diagnósticos, a comoção popular e, por fim, o anúncio da morte e o sepultamento.

 

  1. II.                A imbricação entre as histórias de Tancredo Neves e Tiradentes

 

Se todos quisermos, dizia-nos há quase 200 anos Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la.

Tancredo Neves: discurso perante o Congresso Nacional, logo após sua vitória no Colégio Eleitoral sobre o deputado Paulo Maluf, 15 de janeiro de 1985

O dia 21 de abril é uma data muito especial para os mineiros e para todo o povo brasileiro. Feriado nacional, é o dia em que se celebra a morte de Tiradentes, o herói mais popular do Brasil, que participou da Inconfidência Mineira, primeiro movimento no qual a questão da liberdade se coloca efetivamente. Estão ligadas a Tiradentes palavras de peso como mártir, ideal e liberdade. Como também Tancredo Neves morreu em um dia 21 de abril, a data passou a ter um significado ainda mais amplo, como explica Carrato (1987):

Até 1985, o 21 de abril era comemorado, em todo o país e, em especialem Minas Gerais, como sendo a data da morte de Tiradentes, o mártir da Inconfidência. Dessa época para cá, esse dia, já tão cheio de significado, revestiu-se de importância maior ainda; nele morreu o ex-presidente Tancredo Neves, considerado por amplas parcelas da população brasileira como não só um estadista, mas também uma espécie de mártir da luta pela viabilização da democracia no Brasil. Exatamente por isso, o 21 de abril, desde então, transformou-se no início efetivo da Nova República, já que no período compreendido entre o que seria a posse de Tancredo Neves e a sua morte, o país literalmente parou (p.3).

O próprio discurso de Tancredo Neves como presidente eleito pelo Colégio Eleitoral busca inspiração na Inconfidência Mineira: A História da Pátria, que se iluminou através dos séculos com o martírio da Inconfidência Mineira, que registra com orgulho a força do sentimento da unidade nacional sobre as insurreições libertárias durante o Império. Segundo Arruda (1990), “a unção de Tiradentes para exercer o papel de artífice da liberdade e da nação brasileira possui dimensões de um intróito místico. Paralelamente, os fatos acontecidos durante a doença de Tancredo Neves assemelham-se aos passos do calvário e, não casualmente, a figura de Tiradentes” (p. 226). A autora explica que a Inconfidência Mineira tem um caráter de rito. E lembra:

De um lado, a comemoração da morte de Tiradentes está formalizada na presença do feriado nacional e nas celebrações que a acompanham. De outro, porque a sua revivescência no discurso político dos mineiros assume a dimensão de um rito. Estamos, assim, diante de um rito que busca legitimar de forma incontestável o lugar dos mineiros no Brasil, principalmente nos momentos cruciais, nas fases de transição entre o fim de uma época e a abertura de outra (p.100).

Arruda (1990) explica também que a morte de Tancredo Neves mostrou grande simbologia, acentuada pelo fato de o próprio mito repousar sobre o sacrifício de Tiradentes (p. 233). Segundo a autora, o tom redentor do discurso de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral “recupera a sacralidade da imagem do Inconfidente, que passou para a história brasileira como o homem que morreu pela liberdade. Vida e morte emergem indelevelmente conectadas, permitindo a Minas continuar fiel a si mesma e ao seu destino” (p.233). Sobre a coincidência das datas de morte, a autora diz:

O desenlace daqueles dias de aflição deu-se no mesmo dia da morte do Inconfidente, conferindo forte carga simbólica ao evento e realimentando o imaginário tecido em torno da figura de um redentor. A morte de Tancredo Neves, todavia, não se encontra isenta de outros significados capazes de simbolizar, concomitantemente, a ultrapassagem da imagem mítica de Tiradentes. Apesar do Inconfidente flutuar no discurso de Tancredo Neves, como arquiteto da nacionalidade, aparece, pela primeira vez, no mesmo, frente à exteriorização do imaginário mítico de Minas, a referência ao futuro nascido do presente e não do passado (p.227).

No prefácio do livro Tancredo Vivo – Casos e Acaso[3], o historiador Francisco Iglesias também faz esta relação entre Tancredo Neves e Tiradentes:

Verifica-se então a tragédia no dia da posse, o vitorioso está impossibilitado pela doença e começa o seu calvário. Tem de ser operado, e o será várias vezes, na mutilação de seu corpo que lembra a do conterrâneo mais admirado, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O vice toma posse. E Tancredo morre nas últimas horas do dia 21 de abril, em estranha coincidência com o seu admirado herói, que parece de encomenda para compor sua biografia. A Nova República já começara sem as luzes e a ação de seu chefe natural (COUTO, 1995, p. 10).

Desde o anúncio da morte do presidente Tancredo Neves, no dia 21 de abril, surgiu uma especulação na sociedade brasileira: Esta coincidência foi forçada? O anúncio da morte de Tancredo foi adiado para o dia 21 de abril para coincidir com o dia da morte de Tiradentes? Tancredo já estava morto há muito tempo? Este sentimento da população foi sempre rebatido pela família e por políticos e médicos envolvidos no episódio. Ronaldo Costa Couto, amigo pessoal de Tancredo e futuro ministro da Nova República, escreveu num livro sobre o presidente: “Muita gente acha de coração que o presidente Tancredo Neves foi assassinado. Homicídio doloso. Isso é um fato. É direito das pessoas pensarem assim. Ter certeza, dúvida ou suspeita. O contrário também é verdadeiro”(COUTO, 1995, pp. 277-278).

Em entrevista ao jornal Estado de Minas[4], o ex-governador mineiro Aécio Neves afirmou que essas suspeitas são uma grande bobagem e explica:

Para nós da família, naquela época, já não era nem mais relevante o presidente assumir. Era importante que o avô sobrevivesse, que o pai sobrevivesse. Ninguém seria maluco de adiar um anúncio desse, algo absolutamente irreal. Isso entra no campo das suposições, talvez pela própria coincidência histórica de ter ocorrido no dia da morte de Tiradentes. Tancredo resistiu até o dia 21 de abril e sua morte foi anunciada a partir do momento em que os médicos constataram o óbvio.A partir daí foi o que o Brasil inteiro já sabe. Isso entra no campo das especulações.

O ex-governador contou também, nessa entrevista, que quando viaja pelo Brasil ainda ouve pessoas querendo saber se Tancredo Neves foi assassinado.

  1. III.             Mineiridade

Mineiros: o primeiro compromisso de Minas é com a Liberdade. Liberdade é o outro nome de Minas.

Tancredo Neves: discurso de posse no governo de Minas Gerais em 15 de março de 1983.       

Não se pode falar de figuras como Tancredo Neves sem se buscar a questão da mineiridade. Um texto muito difundidoem Minas Gerais, de autor desconhecido, explica de forma bem humorada o que é ser mineiro: 

Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer. É fingir que não sabe aquilo que sabe, é falar pouco e escutar muito, é passar por bobo e ser inteligente, é vender queijos e possuir bancos. Um bom mineiro não laça boi com embira, não dá rasteira no vento, não pisa no escuro, não anda no molhado, não estica conversa com estranhos, só acredita em fumaça quando vê o fogo, só arrisca quando tem certeza, não troca um pássaro na mão por dois voando. Ser mineiro é dizer “uai”, é ser diferente, é ter marca registrada, é ter história. Ser mineiro é ter simplicidade e pureza, humildade e modéstia, coragem e bravura, fidalguia e elegância. Ser mineiro é ver o nascer do sol e o brilhar da lua, é ouvir o cantar dos pássaros e o mugir do gado, é sentir o despertar do tempo e o amanhecer da vida. Ser mineiro é ser religioso e conservador, cultivar as letras e as artes, é ser poeta e literato, é gostar de política e amar a liberdade, é viver nas montanhas, é ter vida interior.

Num livro em que discute o mito da mineiridade, Arruda (1990) explica que “surge muitas vezes o reconhecimento de que a subcultura de Minas, frequentemente denominada “mineiridade”, conteria os princípios do “entendimento nacional”. Reconhecem-se nos mineiros qualidades essenciais de bom senso, de moderação e equilíbrio, virtudes estas consideradas essenciais à urdidura do acordo”(p.14). A autora explica, ainda, que entre os mineiros, uma manifestação de cunho ritualístico é expressada no gosto de falar sobre Minas e que o regionalismo mineiro se afirma na integração. E completa: “a mineiridade preserva três dimensões essenciais: mítica, ideológica e imaginária” (p.257).

Uma emissora de rádio de Minas Gerais resume bem este espírito e até se auto-intitula “A Rádio de Minas”. Fundada por Januário Carneiro, a Itatiaia sempre manteve bons laços com os políticos mineiros e com Tancredo Neves não foi diferente. Com frequência, Januário e Tancredo almoçavam juntos e Tancredo visitava a emissora nos momentos importantes da vida política do país e de Minas Gerais. Márcio Doti, que dirigiu o Departamento de Jornalismo da rádio durante muitos anos, revela que foi Januário a primeira pessoa a falar de Tancredo como o nome para a presidência da República. Isso foi no início do governo de Tancredo em Minas. Doti conta como foi[5]:

O Januário fez uma festa na casa deleem Mariana. Antesda festa, houve uma homenagem para ele e também para o Tancredo,em Itabirito Entãonós saímos daqui, eu, o Tancredo, vários políticos, vários amigos da rádio, Januário, etc. A programação era: uma parada em Itabirito para uma solenidade e depois o almoçoem Mariana. Durantea homenagem, Januário fez um discurso de improviso e lançou Tancredo Neves como o homem para ser o primeiro presidente civil do Brasil depois dos militares.

Um dos episódios mais comentados envolvendo Tancredo Neves e a Rádio Itatiaia é relatado por Doti:

Quando Tancredo ganhou o governo de Minas a primeira coisa que ele fez foi convidar o Januário para um almoço no Palácio da Liberdade. O almoço foi a três: Tancredo, Januário e D. Risoleta. Nesse almoço, Tancredo disse para o Januário: Você sabe que a Rádio Itatiaia teve um papel importantíssimo para eu estar aqui hoje.O Januário perguntou: - Mas, como?

Tancredo explicou que logo depois das eleições para o governo de Minas, os veículos de mídia montaram seus esquemas de apuração paralela. Só que os resultados da Itatiaia eram completamente diferentes de todos os outros, inclusive os da TV Globo e também dos números oficiais do TRE: todos informavam que o candidato Eliseu Resende estava à frente, apenas a Itatiaia dava Tancredo Neves como vencedor.  À certa altura da apuração, houve um momento de grande tensão entre os funcionários da Itatiaia, que questionavam a cientificidade do método de levantamento dos votos empregado pela emissora. Mas a Itatiaia ficou firme na posição de apontar Tancredo como vencedor e o governador lembrou-se disso logo após a posse, homenageando Januário Carneiro com um almoço.

Outro episódio que mostra os fortes laços entre Tancredo Neves e a Rádio Itatiaia foi a cobertura que a emissora fez da viagem do presidente que acabara de ser eleito no Colégio Eleitoral. O repórter Acir Antão acompanhou Tancredo na viagem e conta como foi esse trabalho[6]:

A Rádio Itatiaia foi a única emissora de Minas e talvez do Brasil que acompanhou Tancredo nessa viagem. Era uma comitiva pequena. Nós viajamos no mesmo avião. No primeiro trecho, daqui para a Europa, Tancredo foi na primeira classe; depois foi com os jornalistas na classe econômica. A viagem começou por Roma, onde Tancredo teve uma reunião com o papa e o primeiro-ministro italiano. Depois ele foi à França, Espanha, Portugal. Da Europa fomos para os Estados Unidos. Em Washington, Tancredo se reuniu com o presidente Reagan.

  1. A Rádio Itatiaia na cobertura da doença e morte de Tancredo Neves

a)      A internação

Então, como foi? O Sarney tomou posse? Correu tudo bem?

Tancredo Neves: dia 15 de março de 1985, ao sair da anestesia da primeira cirurgia.

A Rádio Itatiaia estava com todo o esquema montado para a grande cobertura da posse do presidente Tancredo Neves.Em Belo Horizonte, a equipe de repórteres havia preparado matérias especiais para dar suporte ao palco central – Brasília – onde se desenrolariam os principais acontecimentos. Na Capital Federal, estavam os três repórteres escalados pela rádio para a cobertura: Acir Antão, Alexandre França Campos e Maurílio Grillo.

A equipe chegou, de carro, no dia 13 de março e se instalou num apartamento emprestado. Lá montou a central de transmissão. O planejamento, elaborado cuidadosamente pelo então diretor de Jornalismo Márcio Doti, previa a cobertura da missa no dia 14 e, logo depois, transmissão ininterrupta até o dia seguinte, 15 de março, data da posse. Nesse dia, haveria uma alvorada festiva para o presidente com a tradicional banda mineira Charanga do Bororó, às seis horas da manhã. Depois da transmissão da posse, alguns boletins sobre as festas que iriam se realizar e, mais um ou dois dias em Brasília, a equipe voltaria a Belo Horizonte. Mas não foi isto o que aconteceu. Uma cobertura planejada para durar dois ou três dias, acabou se arrastando por mais de um mês.

A equipe da Itatiaia em Brasília fez a cobertura da missa na Catedral Dom Bosco, com flashs ao vivo na programação. Ao sair da igreja, o repórter Maurílio Grillo foi à procura do então governador de Minas Gerais, Hélio Garcia, para gravar com ele uma matéria repercutindo a posse de Tancredo, que aconteceria no dia seguinte. O repórter encontrou Hélio Garcia saindo correndo de casa, aflito, sem informar a causa de tal pressa. O repórter foi atrás e descobriu o que estava acontecendo: Tancredo Neves sentira-se mal, tinha dores abdominais e fôra internado no Hospital de Base. Rapidamente, a notícia foi dada pela emissora dentro da jornada esportiva, para espanto do povo mineiro, que já se reunia em festas celebrando a posse do filho ilustre.

Segundo o ex-governador Aécio Neves, Tancredo fez a campanha com saúde plena, começando a sentir algumas dores talvez uns 15 dias antes da posse. Em Souto (2005), Aécio explica que seu avô foi medicado e a evolução do seu estado de saúde estava sendo acompanhada. O governador explica que nunca houve uma imposição dos médicos dizendo que a situação era grave, inclusive para a família. Aécio diz:

Na verdade, os médicos não estavam acompanhando de forma adequada a evolução do estado de saúde do Tancredo. Acho que houve sim, negligência. Até porque, no momento em que o Tancredo passou mal no momento em que saímos da Catedral Dom Bosco, em Brasília, por volta das 19 horas, na véspera da posse, eu tive uma dificuldade enorme em localizar os médicos que estavam acompanhando o Tancredo. Eles estavam em recepções festivas, foi mais de uma hora para localizá-los. O que demonstra que eles estavam muito tranquilos em relação ao estado de saúde do Tancredo (SOUTO, 2005, p.6).

O general Rubens Bayma Denys, homem forte do futuro governo Tancredo Neves, conta, em Castro e D’Araújo (2001, pp. 79-80), que ficou sabendo da doença do presidente no dia da missa. Ele diz que mandou o chefe da segurança pessoal do presidente ir à igreja e disse a ele: “Olha, vai lá, observa bem o presidente. Veja se nota algum sinal que possa refletir seu estado de saúde. Perceba algum sinal”. Na volta, o segurança informou ao general que Tancredo estava suando muito e parecia muito cansado. O general Bayma Denys telefonou então para o médico do Senado, Dr. Renault de Matos e narrou as observações do chefe da segurança. Mais tarde, foi informado da internação do presidente. O general fala das suas conclusões desse episódio da história brasileira:

Presume-se que Tancredo não quis se tratar porque o quadro era de incerteza para eles, os políticos dos partidos que tinham ganhado a eleição. O Dr. Tancredo era um político muito experiente e poderia ter pensado que, se ele adoecesse, fizesse a operação, retardasse a posse, poderia ter problemas para assumir posteriormente (CASTRO e D’ARAÚJO, 2001, pp. 79-80).

Na revista Veja do dia 20 de março de 1985, na seção Carta ao Leitor, há um relato de como a publicação ficou sabendo da doença do presidente. A repórter da revista Christiane Samaro estava presente no jantar oferecido na noite de quinta-feira pelo embaixador de Portugal em Brasília e teve sua atenção voltada para um recado telefônico vindo da Granja do Riacho Fundo. A esposa de Tancredo, Risoleta Neves, avisava que o casal não poderia comparecer à recepção e deixava a entender que havia alguma coisa errada. A repórter achou um telefone na cozinha da residência do embaixador e ligou para a sucursal da revista em Brasília, informando o que estava acontecendo. Poucos minutos depois, a repórter ouviu um comentário de um funcionário da embaixada de Portugal que dizia: “A coisa está preta no Riacho Fundo. O doutor Tancredo está com apendicite aguda”.  Em pouco tempo, a notícia de que Tancredo Neves estava internado no Hospital de Base chegou à sala de jantar.

A revista IstoÉ do dia 20 de março de 1985 reproduz, na página 29, o delicado diálogo do presidente Tancredo Neves com o governador Hélio Garcia. Garcia tentava convencer Tancredo de que a cirurgia era necessária:

_ Dr.Tancredo, os médicos dizem que o senhor precisa ser operado.

_ Podemos deixar isto pra depois.

_ Os médicos são nossos amigos, eles acham que o melhor para o senhor é operar.

_ Mas amanhã teremos posse.

_ A República é importante, Dr. Tancredo, mas o senhor também é.

A revista Afinal, datada de 19 de março de 1985, relata que Tancredo tentou por todos os meios adiar a cirurgia. Ele disse ao médico Renault de Matos: “Primeiro deixem que eu tome posse. Depois façam o que quiserem comigo”. Tancredo chegou até a prometer ao médico um documento isentando-o de culpa na eventualidade de algum desdobramento mais grave. Mas o Dr. Renault ponderou: “O que é que eu vou fazer com um papel deste? Explicar à Nação?” A determinação final foi do sobrinho Francisco Dornelles, futuro ministro da Fazenda do novo governo: “Operem de qualquer maneira. A saúde dele é mais importante do que a posse” (p. 16).

O presidente entrou no bloco cirúrgico do Hospital de Base às 23h45. O que aconteceu lá dentro beira o surrealismo.  Segundo a revista IstoÉ, edição de 20 de março de 1985, quatro dúzias de médicos estavam no bloco. A revista Veja de 20 de março informava que havia 20 pessoas no bloco cirúrgico, a maioria médicos. Ronaldo Costa Couto também fala sobre a presença de várias pessoas acompanhando a cirurgia. O texto reproduz um diálogo entre Couto e Aécio Neves:

Aécio: _ Aquela cirurgia com a sala cheia de gente foi uma loucura... Uma irresponsabilidade!

Couto: _ Você assistiu à cirurgia?

Aécio: _ Não. Nós estávamos numa sala lá fora, esperando notícias.Volta e meia saía algum paramentado lá de dentro para dizer como estava indo a operação. Teve um médico, ex-parlamentar, que buscou um banquinho lá fora e levou para dentro da sala, para assistir sentado ao restante da operação (COUTO, 1995, p. 295).

Depois da abertura do abdômen do presidente, o médico Pinheiro da Rocha concluiu rapidamente que não se tratava de apendicite. O médico exclamou: “É diverticulite de Meckel”. Segundo a revista IstoÉ, a plateia, dentro do bloco cirúrgico, aplaudiu entusiasticamente. Já a revista Veja fala que os cirurgiões ergueram os polegares na direção dos curiosos que estavam na sala ao lado, havendo, neste momento, um instante de festa no centro cirúrgico.

A população mineira acompanhou pela Itatiaia toda a movimentação daquela noite, sem imaginar como é colocar no ar uma cobertura de porte de última hora. O repórter Maurílio Grillo ficou de plantão na porta do Hospital de Base e, de lá, participava da programação da emissora com flashs ao vivo. França Campos foi para o Congresso Nacional repercutir as notícias, já que ninguém sabia, àquela altura, se o vice José Sarney tomaria posse e como ficaria a vida do país. O repórter fez uma parceria com Marcelo Moreno, do jornal O Globo, e passaram a entrevistar todas as personalidades que entravam e saíam do Congresso naquela noite. Acir Antão ficou no apartamento onde fora montada a central de jornalismo, de onde comandava toda a cobertura. Acir conta como foi aquela noite:

Foi uma noite de angústia. Ficou aquele negócio: toma posse, não toma, toma posse, não toma. O apartamento onde estávamos ficou cheio de gente o tempo todo. Os políticos mineiros chegavam em busca de mais informações sobre o presidente. Havia aqueles que chegavam e, ao se darem conta das notícias, exclamavam espantados: - O quê? A TV ficou ligada e eu tirava algumas informações dali, com transmissão o tempo todo, até de manhã.

Pela manhã, os três repórteres da emissora, que não haviam dormido durante a noite, foram fazer a cobertura da posse de José Sarney como presidente da República. Acir Antão conta que, logo depois da cerimônia, foi a uma padaria comprar um lanche e lá já encontrou a primeira piada sobre Sarney, contada por um vendedor: “Esse Sarney é igual Modess, tampa buraco e evita derramamento de sangue”.Três dias depois, Acir Antão voltou para Belo Horizonte e ficaram de plantão em Brasília Maurílio Grillo e França Campos, na cobertura diária dos boletins médicos e do estado de saúde do presidente.

b)     A agonia

Eu não merecia isso.

Tancredo Neves: ao neto Aécio, indo para a sexta operação, no dia 9 de abril de 1985.         

Durante os quase 40 dias da agonia de Tancredo Neves, a Rádio Itatiaia manteve vigília constante dos seus repórteres. Primeiro em Brasília, depoisem São Paulo. Foimontado um sistema de plantão, assim havia sempre alguém pronto para informar à população mineira os últimos acontecimentos.

A imprensa brasileira trabalhou com esse sistema de plantão permanente e foram muitos os problemas enfrentados pelos repórteres. A jornalista Ana Baumworcel, que trabalhava para a Rádio Jornal do Brasil AM do Rio de Janeiro, ficou de plantão em São Paulo e, pouco depois, foi enviada a São João del-Rei para organizar a cobertura do enterro do presidente. De lá, transmitia as informações. Ana Baumworcel conta como foi[7]:

Na época não havia celular e eu não estava com o carro da emissora. Muitas vezes tive que entrar ao vivo de telefone-orelhão ou apelar para comerciantes e moradores de São João del-Rei para conseguir enviar minhas reportagens para a rádio. Lembro-me de uma procissão nos arredores da cidade, em que corri na frente, liguei para a emissora pelo orelhão e esperei a procissão se aproximar. Depois entrei ao vivo com o coro da procissão ao fundo. Ficou uma matéria bonita.  Eu e muitos outros jornalistas ficamos em vigília na cidade natal de Tancredo quase um mês e éramos chamados de urubus, numa referência aos bichos que ficam rondando a espera da carniça. Foi muito desagradável. Os jornalistas chegaram a solicitar uma missa pelo restabelecimento do então presidente para provar que estávamos ali por ossos do ofício e que, no fundo, gostaríamos que ele melhorasse. Mas no jornalismo é assim: se uma personalidade é internada em algum hospital, os repórteres já começam a preparar a cobertura do enterro e a fazer a pesquisa sobre a vida pública desta personalidade.       

A jornalista explica que usava o telefone para transmitir suas matérias e que, no dia do enterro, chegou a alugar uma janela de uma casa para realizar seu trabalho:

Eu usava o telefone. Quando não era da casa de moradores ou do hotel onde estava hospedada, nem do “orelhão”, era de uma única e pequena emissora de rádio que havia na cidade e o estúdio ainda era revestido com caixas de ovos para ter melhor acústica. No dia do enterro, aluguei uma janela de uma casa simples que ficava bem acima do cemitério e me dava uma visão privilegiada para transmitir a cerimônia fúnebre. Nesse dia, a emissora enviou um operador de áudio e pediu uma linha direta para a Embratel e ficamos ao vivo direto da janelinha.

O presidente Tancredo Neves passou por todo o processo da doença e das cirurgias como qualquer paciente num caso assim: de início de cabeça erguida e com coragem; ao final, desanimado e cansado. Talvez Tancredo pudesse dizer como Manuel Bandeira no poema Consoada:

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!

O neto Aécio Neves explica: “O Tancredo resistiu muito. Ele sofreu sete cirurgias e é óbvio que, com toda a coragem que ele enfrentou as sete cirurgias, a partir de um certo momento ele foi se abatendo, o que é natural. Mas ele tinha muita confiança que assumiria”(SOUTO, 2005, p.6). O amigo Ronaldo Costa Couto relembra um diálogo que teve com o presidente, quando certa vez ele lhe falou do medo que tinha de perder a saúde:

_ E o senhor, doutor Tancredo, é sempre corajoso?

_ Que nada, meu filho. Só quando é preciso.

_ Mas tem alguma coisa que lhe mete medo?

_ Só duas. Perder pessoas queridas ou minha saúde. Quem perde a saúde perde tudo. Disso morro de medo (COUTO, 1995, p. 121).

A agonia de Tancredo provocou forte comoção popular, poucas vezes vista no país. Nos veículos de comunicação, os boletins médicos eram completados com explicações de especialistas com dados sobre as complicações que apareciam a cada dia. Nas ruas, nas famílias, nas empresas, nas repartições públicas o assunto era um só: a doença do presidente. Um ano após a morte de Tancredo o Instituto DataFolha fez uma pesquisa com a seguinte pergunta: “Na sua opinião, a morte de Tancredo Neves foi consequência de complicações cirúrgicas normais, de incompetência médica ou foi premeditada?”. As respostas foram: foi premeditada (36% dos entrevistados), consequência de complicações normais (27%), incompetência médica (26%).

Com a transferência de Tancredo Neves para o Instituto do Coração, em São Paulo, no dia 26 de março, a Rádio Itatiaia planejou uma nova cobertura. Tancredo foi embarcado no Boeing presidencial, às 6h30. Deitado na maca, o presidente foi coberto por um lençol, para escapar da mira dos fotógrafos e cinegrafistas. O primeiro boletim médico,em São Paulo, informava que Tancredo carregava uma infecção hospitalar contraídaem Brasília. Navéspera da transferência, Tancredo posara para fotografias junto com a equipe médica. Estava vestindo pijama e robe, calçando chinelos e tinha uma echarpe colorida enrolada no pescoço. Foram as últimas fotos do presidente, feitas pelo fotógrafo da Presidência da República Gervásio Baptista.

A Itatiaia escalou para essa nova cobertura o repórter França Campos. Mas o trabalho era muito pesado, com informações a toda hora do dia e da noite e a emissora mandou Acir Antão ajudá-lo. Dividiram assim o trabalho: França Campos ficaria de plantão durante o dia e Acir durante a noite, 12 horas cada um. França Campos iniciou então um forte processo de stress e teve que ser substituído. Romeu Araújo foi designado para o seu lugar.

Durante a agonia de Tancredo, a Rádio Itatiaia conclamava a população a rezar pela saúde do presidente. O jornalista Márcio Doti explica como foi:

A partir do momento em que o Tancredo piorava, que não havia mais esperança, aí partimos para o processo místico. Esse processo teve a participação de uma pessoa, a jornalista Hedonè Motta. Ela era evangélica e escrevia orações para serem lidas pelos locutores. Os textos pediam a Deus pela saúde do presidente, criando uma corrente de oraçãoem Minas. Aquilotransformou o Brasil inteiro numa corrente de fé. Essas orações eram repetidas várias vezes durante o dia e nos momentos mais difíceis.

No domingo, dia 21 de abril, a participação dos repórteres, tantoem Belo Horizontequantoem São Paulo, ficou mais frequente na programação da Itatiaia. As informações davam conta que Tancredo não passaria daquela noite.

c)      A morte

Para descansar, temos a eternidade.

Tancredo Neves: muitas vezes, a amigos, políticos e colaboradores     

A última crise de Tancredo começou na tarde do dia 21 de abril de 1985. O principal sintoma foi uma brusca queda da pressão arterial. Os problemas cardiovasculares eram decorrência do processo infeccioso abdominal, nunca debelado, que motivou seis cirurgias, e do edema intersticial pulmonar constatado após a quarta operação (Jornal Folha de S. Paulo, 22/03/1985).

Mas o presidente estava inconsciente havia dez dias. Desde a sétima cirurgia, Tancredo fôra mantido em coma induzido através de medicamentos. Na noite do dia 21 de abril o jornalista Antônio Brito saiu do Instituto do Coração, atravessou a rua e foi ter com os jornalistas no Centro de Convenções, como já o fizera tantas vezes.  Pela última vez, exatamente às 22h29, ele leu para a Nação: “Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite no Instituto do Coração, às 22 horas e 23 minutos”. 

O repórter Romeu Araújo estava de plantão, para a Rádio Itatiaia, na noite do dia 21. Ao perceber que a situação estava se complicando, telefonou para Acir Antão, avisando que o anúncio da morte era questão de horas. Acir conta como tudo aconteceu:

Eu cheguei no apartamento depois de um dia inteiro de trabalho, a fim de tomar um banho e descansar. Mas o Romeu me ligou e disse que era para eu voltar para o Instituto do Coração. Eu voltei para o hospital e, passados poucos minutos, o Antônio Brito chegou anunciando a morte. Aí passamos a noite toda no ar, com as informações sobre as providências que seriam tomadas e entrevistando as autoridades que foram para lá.

José Sarney, eleito para ser o vice, mas que assumiria no lugar de Tancredo, ficou sabendo da morte às 22h25 e chorou com a notícia no Palácio do Jaburu. Em seguida, foi para o Palácio do Planalto e, de lá, à 0h35, falou para o país em rede nacional de rádio e TV. Durante seis minutos, Sarney prometeu um governo de concórdia, trabalho e austeridade e disse ao povo brasileiro: “Nosso programa é o de Tancredo Neves”. Decretou luto oficial de três dias e informou que o dia seguinte, 22 de abril, seria feriado nacional. O presidente do Congresso Nacional, senador José Fragelli, convocou sessão extraordinária para o dia 22, às 10h, para declarar a vacância do cargo de presidente e confirmar José Sarney na Presidência da República (Jornal Folha de S. Paulo, 22/03/1985).

O corpo de Tancredo foi embalsamado e, às sete da manhã do dia 22 de abril, celebrada uma missa no Instituto do Coração. Às 9h o cortejo fúnebre seguiu no caminhão do Corpo de Bombeiros até o aeroporto de Congonhas. Em Brasília, durante dois dias, foi realizado um velório solene e o corpo do presidente exposto à visitação pública. A população acompanhou consternada a lenta subida de Tancredo Neves pela rampa do Palácio do Planalto: não sorridente e acenando para o país como todos sonharam, mas dentro de um caixão.

No velório, em Brasília, a cobertura da Itatiaia foi feita com dois repórteres: Maurílio Grillo, no Palácio do Planalto e Acir Antão, na central montada pela emissora num apartamento. Para facilitar os trabalhos, Acir ligou a TV e, à medida que as cenas iam se desenrolando, ia falando no rádio. Só que o improvável aconteceu: de tanto cansaço, acabou dormindo falando no ar. Ele explica:

Eu fui falando, falando e, esgotado, dormi durante a transmissão. Mas mesmo dormindo continuei falando, nem sei bem o quê. Na rádio estava todo mundo cansado e ninguém percebeu que eu falava coisas desconexas. Então o dono da rádio, Emanuel Carneiro, desceu para a central técnica e gritou para o operador: _ “Corta o Acir rápido que ele tá falando bobagem. Ele tá dormindo, sonhando e falando no rádio”. 

No dia 23 de abril, às 15h, o corpo do presidente aterrissouem Minas Gerais, sua terra natal. A população mineira se preparou para receber o corpo do ilustre presidente morto. Na manhã daquele dia 23, as pessoas começaram a chegar cedo à praça da Liberdade, em Belo Horizonte, um lugar majestoso onde fica a sede do governo de Minas, o Palácio da Liberdade. Tancredo já havia falado que “liberdade é o outro nome de Minas”. O corpo iria chegar à tarde e, desde o início da manhã, populares começaram a se espremer nas grades que cercavam o palácio, na esperança de ver, nem que fosse rapidamente, o presidente morto.  Segundo Ronaldo Costa Couto, presente naquele dia, o sentimento do povo era de grande tristeza:

Era um povo comovido, triste, desamparado, órfão. Havia enorme angústia ali. Mas muitos rezavam. Quase todos choravam, fazendo da emoção lágrimas de dor. Não parava de chegar gente. Mais gente. Não cabia mais ninguém. Não havia mais espaço.  Todos queriam despedir-se do presidente morto. Esforçavam-se pra chegar ao portão do palácio. Forçavam as pessoas à frente (COUTO, 1995, p. 214).

Com o decorrer das horas, a praça foi-se enchendo cada vez mais e era grande a aglomeração de pessoas em frente ao palácio. Calcula-se que 30 mil pessoas se acotovelaram na praça da Liberdade, na tentativa de ver o presidente. De repente, as grades que cercavam o palácio começaram a ceder com o peso das pessoas e houve grande tumulto. A esposa do presidente morto, Risoleta Neves, saiu de perto do caixão e subiu ao púlpito do palácio, pedindo à multidão que se acalmasse. Mas o resultado deste tumulto foi que várias pessoas ficaram espremidas sob as grades caídas e os feridos rapidamente encaminhados aos hospitais da região. O saldo do tumulto foi trágico: sete pessoas mortas (quatro na hora) e 271 casos de ferimentos não-superficiais, alguns graves. Morreram sob a pressão das grades ou pisoteados: Dalva Gomes Amora, 61 anos; Consuelita Evangelista Pereira, 46 anos; Luzia Gonçalves Rios, 62 anos; Alexandre Marins Monteiro, 20 anos; José Januário Ribeiro Bastos, 71 anos; Rosângela Araújo dos Anjos, 23 anos e Guiomar Torres de Melo, 54 anos.

A família de uma das vítimas – Guiomar Torres de Melo – lembra com tristeza o episódio. Guiomar era professora pública e, apesar de ter 54 anos, era casada há pouco tempo e não tinha filhos. Naquela manhã do dia 23 de abril, Guiomar acordou cedo, arrumou-se e convidou alguns parentes que moravam perto dela, no bairro Saudade, para irem velar o presidente morto. Ela tinha uma dívida de gratidão com Tancredo. Seis meses antes, a mãe de Guiomar, Amélia Torres, fôra internada no hospital Prontocor,em Belo Horizonte. Numcorredor, encontrou-se com Tancredo Neves, que fazia alguns exames. Tancredo conversou com D. Amélia que, já bem idosa, ficou grata pela atenção. Passados uns dois dias, Tancredo voltou ao hospital para buscar os resultados dos seus exames e foi ao quarto de D. Amélia para saber da saúde dela.

A partir desse dia, a família Torres ficou agradecida a Tancredo e, no dia da morte do presidente, Guiomar foi ao velório representando os 11 irmãos e as dezenas de netos de D. Amélia. Mas como ela chegou muito cedo à praça da Liberdade, postou-se perto da grade do palácio e, quando esta cedeu, Guiomar foi prensada pela força da multidão. Não resistiu aos ferimentos e morreu no dia seguinte.

Um dos sobrinhos de Guiomar, o professor Carlos Magno Torres, conta[8] que foi convidado pela tia para ir ao velório de Tancredo, mas que, como ainda era um garoto, não deu importância à gratidão da família Torres pelo presidente.

A tia Guiomar acabou indo sozinha, já que ninguém quis ir com ela. Mas alguém da família alertou: “Já que você vai mesmo, vá cedo porque aquilo vai virar um tumulto. Você chega cedo e fica num lugar melhor.” Durante o dia, a nossa família ouviu pelo rádio a confusão que estava na praça da Liberdade, mas era impossível qualquer notícia concreta. Às dez da noite, como ela ainda não aparecera em casa, começamos a procurar por ela nos hospitais onde estavam os feridos. Um primo nosso, chamado Tarcísio, trabalhava no Hospital de Pronto Socorro e passou várias vezes perto dela, mas não reconheceu a tia. O rosto dela estava desfigurado porque ela foi prensada e a grade fez com que os óculos dela entrassem dentro da carne.

Guiomar passou a noite toda na maca sem ser reconhecida, até quando, já amanhecendo o dia, o sobrinho Tarcísio Torres percebeu que era a tia pelas mãos dela e avisou a família.  Carlos Magno diz:

Eu vi um tumulto desses, com tanta gente assim na rua, só quando o papa veio a Belo Horizonte. Numa mais vi tanta aglomeração. Mas a reação da nossa família foi tranquila, pois a tia Guiomar, antes de sair de casa, falou que queria prestar uma homenagem a Tancredo Neves. E foi o que ela fez.        

O marido de Guiomar, Marcílio de Melo Neto, passou a receber uma pensão do governo do Estado. No dia 8 de abril de 1986, o juiz Francisco Reis de Brito, da 4ª Vara Criminal, determinou o arquivamento do inquérito policial que apurou a morte das sete pessoas no tumulto da praça da Liberdade. A promotoria não encontrou no caso qualquer responsabilidade do governo estadual, apesar da polícia civil ter concluído em seu relatório ter havido participação dolosa de pessoas postadas na grade do palácio, que cedeu e provocou as mortes (Jornal Diário da Tarde, 09/04/1986, p. 15).

Calcula-se que mais de dois milhões de pessoas - entre São Paulo, Brasília e Belo Horizonte - viram passar o esquife do presidente. Certamente foi um dos maiores funerais da história nacional.Em Belo Horizonte, as pessoas seguiam a pé atrás do carro do presidente, que ia a vagarosos40 quilômetrospor hora. Em São João del-Rei, o povo nas ruas gritava o nome de Tancredo e jogava flores no caixão. Cenas de lágrimas e dor foram registradas em todo o país.

Uma canção marcou a memória nacional durante os funerais de Tancredo Neves. A música Coração de Estudante, de Milton Nascimento, foi cantada e repetida incontáveis vezes. A canção diz assim:

Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves dentro do coração

Assim falava a canção que na América ouvi

Mas quem chorou ao ver seu amigo partir

Mas quem ficou,no pensamento voou com seu canto que o outro lembrou

E quem voou, no pensamento ficou com a lembrança que o outro cantou

Amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito

mesmo que o tempo e a distância digam não

mesmo esquecendo a canção o que importa é ouvir a voz do coração.

Seja o que vier, venha o que vier

Qualquer dia amigo, eu volto a te encontrar

Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

O corpo do presidente chegou a São João del-Rei no dia 24 de abril, às 10h05. Foi levado pelas ruas num carro blindado do Exército, seguido por uma caravana de motocicletas. Depois, Tancredo foi velado durante todo o dia por seus conterrâneos até a hora do sepultamento, às 22h, no cemitério da Ordem Terceira, na igreja de São Francisco de Assis. Às 23h30 Tancredo estava sepultado. Certa vez, numa roda de conversa no Senado, Tancredo previu um epitáfio para sua lápide: “Aqui jaz, muito a contragosto, Tancredo de Almeida Neves”. A inscrição não chegou a ser feita.

Os episódios envolvendo os funerais de Tancredo remetem ao poema O morto semiótico, que Antônio Barreto dedicou a Carlos Drummond de Andrade:

Mas como portar um morto nesta sala?/ Um morto com a sua morte indigesta/ um morto com a sua incômoda eternidade/ um morto com a sua nudez de tergal/ um morto com a sua alma travestida/como corpo de outra alma da família?/ Como acordar o morto nesta hora/ se ninguém tira a roupa da noite/ pra espiar a luz dormindo?/ E se um milhão de mortos ressuscitam?porque a lua geme em seu silêncio nos distúrbios?/ uma parte do morto é seu silêncio/ outra a palavra/ mas um morto mora na morte de outro morto/ e sobrevive/ um morto dorme em sua própria sombra/ e perde a hora/ E a noite do morto?/ faz de um dia outra memória?/

Jornalistas de todo o país foram para São João del-Rei cobrir o velório e as cerimônias de sepultamento. A repórter da Rádio JB do Rio, Ana Baumworcel, conta como foi o trabalho da emissora no enterro do presidente:

Era eu e mais dois repórteres que chegaram do Rio no dia do enterro. Um ficou dentro do cemitério entrevistando as personalidades, o outro ficou do lado de fora, entrevistando a população e eu fiquei da janela fazendo a transmissão. Foi difícil, pois a cerimônia foi muito longa, o coveiro muito lento e estávamos ao vivo. Eu toda hora chamava os colegas, pois não tinha como manter o interesse dos ouvintes e acabava me repetindo. Senti falta de mais produção de material “frio” sobre a vida de Tancredo Neves para colocar no ar de forma a tornar a transmissão mais dinâmica, interessante, rica em informação e menos monótona. A cena foi a mesma por muitas horas: várias pessoas apertadas, tristes, em silêncio, em volta da sepultura e do coveiro com aquela pá que ficou famosa.       

A Itatiaia escalou para a cobertura do enterro os repórteres Maurílio Grillo, Tânia Moreira e França Campos. Em Brasília e Belo Horizonte também havia repórteres a postos. O jornalista Márcio Doti relembra um dos muitos episódios vividos naquele dia do sepultamento:

No dia do enterro eu estava aqui na central técnica e mandamos instalar várias linhas para a cobertura. Para que tudo desse certo, em dado momento fui checar a posição de cada um dos repórteres escalados. E aí fui chamando um a um, pelos locais onde estavam postados. Quando eu perguntei: - E quem está no túmulo? Eu queria saber, evidentemente, quem estava a postos para cobrir o instante do sepultamento, mas a voz cavernosa do repórter Maurílio Grillo respondeu: _Tancredo de Almeida Neves.

Durante todo o dia24 aequipe da rádio se desdobrou em informações, entrevistas, repercussões. A programação da emissora foi inteiramente modificada pela participação dos repórteres e o povo mineiro acompanhou, pelas ondas da Itatiaia, o sepultamento de um de seus filhos mais ilustres.

  1. Considerações finais

O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade tem um verso que diz: Do lado esquerdo carrego meus mortos, por isso caminho um pouco de banda. A morte de Tancredo Neves, sem conseguir assumir o cargo de presidente, elevou-o à condição de mito, equiparando-o a Tiradentes: se Tiradentes foi o mártir da Inconfidência, certamente Tancredo foi o mártir da Nova República.  Tancredo passou a ocupar o lado esquerdo do peito dos mineiros, como poderiam dizer juntos Milton Nascimento e Drummond.

Arruda (1990) diz que “entre os elementos formadores da constelação mítica de Minas encontra-se a ideia de que os mineiros são portadores da missão de promover a unidade nacional” (p.215). Tancredo seria o exemplo prototípico dessa unidade ao protagonizar uma história fascinante.

Referências

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da Mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990.

CARRATO, Ângela. Nova República, dois anos depois...Jornal De Casa, 19 de abril de 1987, p. 3.

CASTRO, Celso e D’ARAÚJO, Maria Celina. Militares e política na Nova República.Rio de Janeiro: FGV, 2001.

COUTO, Ronaldo Costa. Tancredo Vivo – Casos e Acaso. Rio de Janeiro: Record, 1995.

FAUSTO NETO, Antônio. O corpo falado. Belo Horizonte: FUMARC/ PUC-MG, 1988.

Jornal Diário da Tarde, 09 de abril de 1986.

Jornal Estado de Minas, 14 de janeiro de 2005.

Jornal Folha de S. Paulo, 22 de abril de 1985.

NEVES, Tancredo. O regime parlamentar e a realidade brasileira. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares, 1962.

PRATA, Nair. Tancredo Neves: a agonia e a morte do presidente pelas ondas da Rádio Itatiaia. In: PRATA, Nair e CAMPELO, Wanir (Org.). Tancredo Neves – A travessia midiática. Florianópolis: Insular, 2011.

Revista Afinal, 19 de março de 1985.

Revista IstoÉ, 19 de março de 1985.

Revista Veja, 20 de março de 1985.

SILVA, Vera Alice Cardoso e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Tancredo Neves: a trajetória de um liberal. Petrópolis: Vozes; Belo Horizonte: UFMG, 1985.

SOUTO, Isabella. Houve, sim negligênciaJornal Estado de Minas, 14 de janeiro de 2005, p. 6.


[1] Este texto foi publicado originalmente no livro “Tancredo Neves – A travessia midiática”, organizado por Nair Prata e Wanir Campelo, com o título “Tancredo Neves: a agonia e a morte do presidente pelas ondas da Rádio Itatiaia”. Nesta nova publicação, o texto foi editado e adaptado.

[2] Jornalista (UFMG), doutora em Linguística Aplicada (UFMG), professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), vice-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (ALCAR) e diretora Regional Sudeste da Intercom. Membro do Grupo de Pesquisa Convergência e Jornalismo (ConJor).  nairprata@uol.com.br

[3] COUTO, Ronaldo Costa. Tancredo Vivo – Casos e Acaso. Rio de Janeiro: Record, 1995.

[4] Jornal Estado de Minas, 14 de janeiro de 2005, p. 6.

[5] Depoimento concedido especialmente para este trabalho.

[6] Depoimento concedido especialmente para este trabalho.

[7] Depoimento concedido especialmente para este trabalho.

[8] Depoimento concedido especialmente para este trabalho.

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