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Lima Barreto

por Sérgio Luiz Gadini

Lima Barreto, um brasileiríssimo polêmico (e ousado) na crítica da vida social

Quem foi Lima Barreto e qual a contribuição de um escritor que viveu entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século seguinte ao pensamento cultural brasileiro? O que, hoje, em tempos de arquivos digitais, parece simples – ter acesso a informações e estudos sobre Lima Barreto – já foi assunto fora de pauta e, praticamente, ignorado pela inteligentsia verde amarela.

Por incontáveis motivos, ou justificativas, a obra de Lima Barreto não foi apenas incompreendida durante a vida do escritor. O reconhecimento e aceitação pública demoraram algumas décadas para chegar a um maior número de leitores do País e do mundo.

Foi no ano que registrou três décadas da morte do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, em 1952, que o jornalista Francisco de Assis Barbosa publica, pela Livraria José Olympio Editora, o resultado de vários anos de pesquisa e se torna uma referência indispensável quando se fala na obra do escritor carioca: A vida de Lima Barreto.

Otto Lara Resende, ao prefaciar a biografia, diz que Lima Barreto “ressuscitou na pesquisa” a partir do trabalho realizado por Francisco Barbosa (2012, p.16). Nas palavras de Beatriz Resende (a propósito da oitava edição, publicada em 2002), “50 anos depois da primeira edição da biografia, o livro permanece sendo o mais expressivo modelo de biografia escrito no país”.

No método, uma justificativa do resultado de um árduo trabalho investigativo feito por Beatriz Resende:

 

[...] o esforço e dedicação de Francisco de Assis Barbosa ao escritor carioca começou pelo resgate dos originais deixados no guarda-comidas da casa de Todos os Santos, após ganhar a confiança da família, especialmente da irmã, D. Evangelina de Lima Barreto, que se tornou importante fonte de informações. Em seguida veio o deciframento de diversos manuscritos organizados por Lima Barreto em amarrados, como o texto do Diário do hospício e as anotações, espalhadas por várias cadernetas, que formaram o Diário íntimo (...) (apud BARBOSA, 2012, p. 17).

 

Parte desta empreitada deve-se ao impulso e ‘faro’ jornalísticos do autor da biografia, como explica no prefácio da primeira edição (em dezembro de 1951): “repórter que tem feito do jornalismo diário o seu ganha-pão, tratei apenas de aproveitar, com a máxima honestidade, o material a mim confiado pela família do escritor, quando o editor Zélio Valverde, por volta de 1945, me incumbiu de organizar as Obras completas de Lima Barreto”, diz Barbosa (2012, p. 29).

“Pertencendo Lima Barreto à categoria dos escritores que mais se confessam através de suas obras (...), completei a arrumação do trabalho, dispondo em ordem cronológica as suas confissões e, sempre que pude, com as palavras mesmas do escritor”, explica o biógrafo (2012, p.29).

“A verdade é que Lima Barreto só passou a figurar em histórias de literatura e compêndios escolares na década de 1930”, diz Francisco Barbosa (2012, p. 25). O ano em que obras do escritor passam a integrar o mapa literário nacional é 1933. E, isso, vale ponderar, ainda que tímida e lentamente.

 

Referências autobiográficas e familiares marcam obra literária

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881, filho do tipógrafo e almoxarife João Henriques de Lima Barreto e da professora Amália Augusta Barreto.

De origem humilde, a família de João Henriques logo se desestrutura com a morte da esposa, Amália Augusta, vítima de tuberculose, aos 35 anos de idade (em dezembro/1887), deixando quatro filhos pequenos, sendo o mais velho (Afonso) com apenas 7 anos. A morte da mãe deixa marcas na família, que fica sob cuidados do pai, também responsável pela sobrevivência financeira de todos. O tipógrafo da Imprensa Nacional (pai do Lima Barreto) precisa dobrar expediente.

Das memórias da infância, além da perda da mãe, Lima Barreto destaca, mais tarde, ter acompanhado a abolição da escravatura (no dia do próprio aniversário, em 13/05/1888). Levado pelo pai, Afonso assistiu ao ato de assinatura no Largo do Paço e foi à missa no campo de São Cristóvão. "Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folgança e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia", conta o escritor (BARBOSA, 2012, p.63).

O fim do período monárquico e as polêmicas com o advento republicano impactam na vida familiar de Lima Barreto, pois o pai é pressionado a deixar o cargo de tipógrafo, ao qual se dedicou 12 anos, tornando-se em seguida almoxarife das Colônias de Alienados da Ilha do Governador.

No imaginário do escritor, a lembrança é sintomática. "Da tal história da proclamação da República só me lembro que as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabina e meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha" (BARBOSA, 2012; p. 65).

O assunto volta, mais tarde, em escritos de Lima Barreto. "Proclamada que foi a república, ali, no Campo de Sant'Ana, por três batalhões, o Brasil perdeu a vergonha e os seus filhos ficaram capachos, para sugar os cofres públicos, desta ou daquela forma". E, continua, "no fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados" (BARBOSA, 2012, p. 66).

Depois de passar pelo Liceu Popular Niteroiense, Colégio Paula Freitas e Ginásio Nacional, Afonso Henriques de Lima Barreto entra na Escola Politécnica do Rio de Janeiro aos 16 anos (março/1897). E foi lá que, em 1902, Afonso se torna colaborador d’ A Lanterna, “periódico de ciências, letras, artes, indústrias e esportes”, jornal estudantil, que também se apresentava como “órgão oficioso da mocidade de nossas escolas superiores” (BARBOSA, 2012, p.106). É neste impresso que Lima Barreto publica os primeiros textos. As crônicas publicadas, ali, já revelam a ironia nas descrições de ambientes e perfis de colegas ou professores da faculdade. “O sarcasmo já brilha nas suas crônicas”, diz Barbosa (2012, p. 108).

Com um perfil tímido e de poucas conversas, talvez um pouco próximo da descrição do Isaías Caminha, quando jovem: “os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos”, descreve. E, de rosto, “não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada” (apud BARBOSA, 2012, p.108). Pelas descrições, tem-se aí um alter do próprio jovem escritor.

É o racismo, contudo, que marca a projeção identitária de Lima Barreto, já nos tempos da Politécnica. “O estudante, pobre mas orgulhoso, era prevenido contra tudo e contra todos”, diz Barbosa (2015, p.111). No meio escolar, Lima Barreto “sofria com a convivência obrigatória dos colegas ricos, de outra condição social que não a sua”, conta. Muito próximo do que descreve uma personagem de Gonzaga de Sá, quando adulto, percebe a condição de desprezo, pelos “olhares vesgos e idiotas”, que não despregavam dele “nos cafés, nas ruas, nos teatros” (BARBOSA, 2012, p.111).

A desigualdade social, que atravessa a história do Brasil, também marca a trajetória de vida de Lima Barreto. O próprio autor expressa tal percepção no Diário Íntimo: “é triste não ser branco” (BARBOSA, 2012, p.113). Algumas cenas de discriminação registradas pela personagem Isaías Caminha, ao que tudo indica, são registros (auto)biográficos da juventude de Afonso. “Pretinho ou mulatinho “doíam mais que uma bofetada”, diz Caminha”.

A Lanterna se torna, em alguns momentos, o espaço de desabafo do jovem escritor, seja frente aos colegas ou professores. Em crônica de 20/09/1903, segundo Lima Barreto, “Jesus, Aristóteles, Homero e Descartes, provavelmente, seriam reprovados na Escola Politécnica”, enquanto alguns colegas “medíocres”, diferente do seu caso, aprovam habitualmente. Na ótica do escritor, aquilo seria mesmo perseguição: “tudo porque não nascera no luxo, vivia pobremente e era mulato” (BARBOSA, 2012, p. 116). São as memórias estudantis que, aos poucos, ganham sua própria versão literária, como é o caso da personagem de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Mas, Lima Barreto não conclui o curso da Politécnica, ainda que isso custasse caro ao pai (João Henriques) para honrar as mensalidades.

Nas palavras de Barbosa (2012), como Isaías Caminha, vindo do interior, que “luta sem esperanças na grande cidade desconhecida”, o jovem Afonso “sofreria tormentos e humilhações, num drama que é comum aos deserdados” (2012, p.134). “O desespero do estudante (Afonso) seria idêntico ao de Isaías”, avalia Barbosa (2012, p.135).

Em 1903, prestes a novas reprovações, que o levam a abandonar a Politécnica, Lima Barreto colabora com outros periódicos que surgem e, alguns rapidamente desaparecem, no início do século: A Quinzena Alegre, Tagarela, O Diabo, Revista da Época, dentre outros.

É no mesmo ano (1903) que Afonso assume o cargo de amanuense na diretoria de expediente da Secretaria da Guerra, o que vai aliviar os problemas financeiros e possibilitar que o escritor tenha mais tempo para avançar na criação literária. Com um expediente comercial, entre as 10 e 15 horas diárias, Afonso Barreto passa a contar com um tempo disponível para traduzir em palavras as percepções cotidianas da vida, do trabalho e da cidade, que pulsa a recente transição da monarquia ao prometido regime republicano.

No ano seguinte, Lima Barreto começa a escrever Clara dos Anjos e, em 1905, passa a colaborar no Correio da Manhã, como a série de reportagens publicadas a partir de 28/04/1905, sob o título “os subterrâneos do morro do Castelo”. Os anos seguintes serão de contínua produção literária, com Recordações do escrivão Isaías Caminha (1907-09), Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1906/07), bem como em colaborações a outros periódicos (Fon-Fon, Floreal, Papão, O Riso A Careta, dentre outros). E em 1911 publica Triste fim de Policarpo Quaresma, em capítulos, na edição vespertina do Jornal do Commercio. Três anos depois, publica, em folhetins, Numa e a ninfa, no jornal A Noite, obra que, mais tarde, também ganha versão em livro.

         Lima Barreto não foi, entretanto, um “intelectual orgânico”, na perspectiva gramsciana. Ainda que modesta, em militância e envolvimento direto em causas sociais coletivas, Lima Barreto registra uma trajetória coerente e politicamente independente. É deste modo que, em 1918, o escritor publica artigo na revista Brás Cubas, onde expressa simpatia pela revolução russa: “não posso esconder o desejo de ver um movimento semelhante aqui”, diz (BARRETO, 15/07/1918).

A mesma leitura social crítica motivou Lima Barreto, no ano seguinte (em 01/02/1919), a suspender colaboração ao impresso A.B.C. devido ao fato de o periódico ter publicado artigo contra os negros. Polêmico, e sem meias palavras nas crônicas, o escritor se apresentou, em dois momentos (1919 e 1921), como candidato à Academia Brasileira de Letras, em ambos os casos, sem sucesso.

A descrição das atividades profissionais de Lima Barreto (amanuense na secretaria de guerra), também ganha versão literária através de personagens ficcionais, em geral, muito próximos ao cotidiano do próprio escritor. “[...] assim denominávamos as nossas reuniões, em vista da profissão da maioria dos convivas – amanuenses, que tinham as suas grandes horas de satisfação e jucundo prazer ali, em torno daquela mesa e com uma orgia regada a café, entre o enfado da repartição e as agruras de lares difíceis” (Gonzaga de Sá).

E o que fazia Lima Barreto no serviço público federal? Nas palavras do memorialista Augusto Machado, outro alter-persona do autor, uma descrição funcional: “puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das cousas governamentais”, narra a personagem.

Mas de que ambiente e momento falam as personagens de Lima Barreto? Como em Gonzaga de Sá, onde o narrador/biógrafo se apresenta como um escritor “jovem mulato”, Lima Barreto traz ao contexto da produção literária alguns dos questionamentos que marcaram as primeiras décadas do século XX, tendo a então capital federal (Rio de Janeiro) como cenário social. Daí parte, e situam-se, as críticas aos hábitos de vida da época, tensionados por angústias existenciais de intelectuais dotados de sensibilidade crítica no Brasil ‘republicano’, mas, acima de tudo, inconformados com situações que revelam desigualdades sociais, práticas discriminatórias e condições de pobreza vivenciadas pela maioria da população.

Os primeiros anos de 1900 no Rio de Janeiro marcam a ‘modernização urbana’, da reforma proposta (ou imposta) pelo prefeito Pereira Passos. É quando surgem os bondes elétricos (“mastodontes da Light”, nas palavras de Barreto). Na esteira de reformas urbanas lançadas nas principais cidades européias, os administradores da capital federal buscavam uma modernidade ‘verde amarela’. Em meio à proliferação de cafés, confeitarias, lançamento de periódicos, que tentavam polemizar temas latentes, o Rio de Janeiro registra, no início do século XX, uma população estimada em 700 mil habitantes, de acordo com indicadores da época. É neste ambiente, onde o café se torna referência geográfica para drinks e diálogos intelectuais, que Afonso Henriques vislumbra um desafiante papel de escritor... cronista do  cotidiano!

A aposta no jornalismo, mais que uma paixão pela expressão literária, era uma expectativa de sobrevivência, capaz de projetá-lo, simultaneamente, à condição de escritor, social e politicamente reconhecido pelos seus pares. Afinal, era preciso, também, pensar condições de contribuir nas despesas familiares, ciente das dificuldades que marcam a história e vida do pai e irmãos.

Não faria qualquer coisa, entretanto, para entrar e se manter no meio jornalístico. Para o biógrafo do escritor, Lima Barreto “não se conformaria jamais em escrever louvores, mesmo sem a sua assinatura, aos mandarins da política” (BARBOSA, 2012, p.149). Daí porque foram várias as tentativas e aproximações do escritor aos jornais de maior expressão na cidade (como o Correio da Manhã), onde só foi aceito após passar por outros periódicos menores e com menor influência na época.

Entre a busca de melhores condições de vida e os desafios da escrita, Afonso Henriques concilia, por longos anos, e variadas situações, o expediente na secretaria de guerra e a passagens por jornais do Rio de Janeiro. É neste ambiente que ele cultiva e alimenta o vício do bar, atraído pelo clima boêmio da intelectualidade, o que vai, em poucos anos, contribuir para a depressão e o estado de saúde, que fragiliza a vida do escritor.

Angustiado pela percepção das contradições da vida social, Afonso Henriques traduz, em diferentes momentos e textos, as escolhas e identificações humanas. “Pessoas simples, naturais, humanas é que amava. Aos outros – enfatuados, pedantes, presunçosos – tinha ódio, pois não sabia olhar a ninguém com indiferença”, explica Barbosa (2012, p. 158). E, assim, “o rapaz cheio de sonhos não aceitou sem relutâncias a mediocridade da vida que passaria a viver”, completa.

O reconhecimento da pobreza econômica, entretanto, não o conforta e tampouco acomoda na resignação: “tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer, em vida comum com eles”, revela em Diário íntimo (apud Barbosa, 2012, p. 159).

Frente a eventuais deboches, gestos de desprezo ou discriminação, observados por LB, tinham como resposta mais frequente a ironia. Daí porque a ironia como recurso estilístico pode ser encontrada em inúmeras passagens, crônicas ou romances do escritor. A ironia contribui, assim, a expressar a crítica social em frequentes produções literárias. E, como se sabe, a ironia é um recurso mais facilmente instrumentalizado por pessoas dotadas de sensibilidade e percepção criativa, capazes de simplificar a crítica a situações aparentemente complexas da vida social.

A condição negra aparece em diversas passagens da literatura de Afonso Barreto, como na d’ “o pecado” (Barreto, s/d; p. 90), em que a alma de um recém-morto quase entra direto no céu, despercebida de uma situação preliminar: “Houve engano... Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório”, conclui o conto publicado na Revista Souza Cruz, em agosto de 1924, pouco depois da morte do escritor.

A crítica ao jornalismo provinciano, que perde a dimensão social da pluralidade e relevância de problemas coletivos, aparece em diversos momentos e, inclusive, nas principais obras de Lima Barreto. Em Gonzaga de Sá, tais críticas atravessam a criação, beirando a similaridade com atores reais.  Em Nova Califórnia, por exemplo, a personagem Capitão Pelino é apresentada como “mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista”. E, pois, co-responsável pela manutenção da ordem, moralidade e organização social, capaz de “contribuir” com as moralidades situacionistas (BARRETO, s/d; p. 55).

Triste fim de Policarpo Quaresma é uma criativa e metafórica representação de hábitos moralistas e conservadores de alguns setores da população do Rio de Janeiro da época. Patriota, a personagem principal se sente intelectual e, inclusive, pretende ‘salvar’ o País. Ingênuo, morre também pelas crenças e próprias convicções diante de uma realidade atravessada pela ambição, injustiças e práticas de corrupção. É nesta perspectiva que a obra dialoga com o jornalismo literário que marca a criação cultural na imprensa brasileira do início do século XX.

A literatura de LB é, ao mesmo tempo, a história por metáforas do cotidiano! “A história do falso Dom Henrique V, que foi imperador da Bruzundanga, é muito semelhante à daquele falso Demétrio que imperou na Rússia onze meses”, narra em conto de episódio da história de Bruzundanga (BARRETO, s/d, p. 62).

Como se vê, as relações viciadas presentes na imprensa, oportunamente apontadas por Lima Barreto ao Rio de Janeiro da época, não parecem tão distantes das práticas editoriais dominantes na mídia brasileira praticamente um século depois de escritas. A atualidade da crítica, neste caso, legitima a sensibilidade de Afonso Henriques.

A política, como espaço de representação, também é alvo do olhar crítico em criações literárias do escritor. Em passagem de Numa e a ninfa, o autor apresenta um parlamentar eleito pelo sogro, e graças ao círculo de poder familiar. “Casaram-se, e Numa Pompílio de Castro foi logo eleito deputado pelo Estado de Sernambi”. Na dificuldade, e sem condições autorais para discursar no plenário, o ‘deputado’ contou com a benévola ajuda da esposa, por sua vez, ‘assessorada’ “pelo primo, vagabundo, que lhe fazia os discursos...” (BARRETO, s/d; p.7). Manter a imagem, de “sucesso do deputado”, também tinha um preço!

A crítica também ganha forma de poesia em Lima Barreto (s/d; p. 67), como é o caso das profecias do professor Lopes (em “o falso Dom Henrique V”):

 

Este país da Bruzundanga

Parece de Deus deslembrado,

Nele, o povo anda na canga

Amarelo, pobre esfaimado...

 

Situação similar se verifica na descrição da Bruzundanga: (o chefe) “começou logo a construir palácios e teatros, a por casas abaixo, para fazer avenidas suntuosas. O dinheiro da receita não chegava, aumentou os impostos, e vexações, multas, etc (...)”. E, com ou sem metáfora, nas palavras do autor, “nunca houve tempo, em que se inventassem com tanta perfeição tantas ladroeiras legais” (BARRETO, s/d; p. 65).

Na avaliação de Nicolau Sevcenko (1999), "a função critica, combatente e ativista ressalta por demais evidente dos textos de Lima Barreto". Na mesma perspectiva,

 

[...] o temário de sua obra inclui: movimentos históricos, relações sociais e raciais, transformações sociais, políticas, econômicas e culturais; ideais sociais, políticos e econômicos; critica social, moral e cultural; discussões filosóficas e científicas, referências ao presente imediato, recente e ao futuro próximo; ao cotidiano urbano e suburbano, à política nacional e internacional, à burocracia, dados biográficos, realidade do sertão, descrições geológicas e geográficas (fragmentos) e análises históricas. (SEVCENKO, 1999, p. 162)

 

Pode-se dizer, em certos aspectos, que a resistência ou indiferença de setores intelectuais da época às produções de Lima Barreto deve-se à crítica, ousada e irreverente, que o escritor apresenta, onde também eram facilmente identificados atores reais que, nas palavras do escritor, ganhavam versões caricaturais, em geral, depreciativas.

Assim, enquanto alguns se afastavam por temer passar às páginas pelo texto de Lima Barreto, outros silenciavam por suposta solidariedade com a força da ironia descritiva, ao mesmo tempo em que, outros muitos, provavelmente tentavam se manter distantes por não concordar com as percepções, mas possivelmente ainda por adesão conveniente aos viciados círculos da inteligentsia, em geral temerosos aos conflitos intelectuais que tendem a geral polêmicas e tirar da zona de conforto qualquer ator em condições de ver, ler e perceber a cidade de um modo crítico e independente.

Em certo sentido, é este o mesmo dilema que a independência intelectual, seja no tempo e espaço social que for, tende a gerar nas relações de alinhamento, adesão ou silenciamento político, religioso ou cultural. Com uma formação humanista, e muita leitura dos clássicos, Lima Barreto não se deixou silenciar e tampouco passar batido na então capital federal, que ainda muito se ressentia das heranças do regime escravocrata, colonialista e hegemônico de séculos de dominação econômica. Sem dúvida, aos olhos dos ‘ouvidores’ ou aliados dos poderes instituídos, tal independência, um dia, teria um preço, que Afonso Henriques não abriu mão de pagar.

 

Cenas de um triste fim

“Fechou-se o caixão. Houve um pequeno ruído, seco, vulgar, exatamente igual ao de qualquer caixa que se fecha... E foi só!” As palavras da personagem Gonzaga de Sá, ironicamente, lembram a morte do próprio autor. A morte, também repentina, aos 41 anos, de Lima Barreto foi em 1º de novembro de 1922, na casa do subúrbio carioca. “Era dia de Todos os Santos. Chovia muito. Uma chuva miúda e persistente, chuvinha criadeira, escorrendo sem parar pela Rua Major Mascarenhas abaixo. No centro da sala de visitas da Vila Quilombo, armaram o serviço fúnebre”, narra o biógrafo de Lima Barreto (BARBOSA, 2012, p. 358). Era, pois, um outro “triste fim”! Apenas dois dias depois (em 03/11/1922), morre João Henriques, o pai do escritor.

         Quase um século após a morte de Lima Barreto, considerando a instigante e atual crítica que a obra do escritor revela aos atuais problemas do Brasil contemporâneo é, pois, um desafio e uma necessidade incluir o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma no Dicionário enciclopédico do brasileirismo comunicacional. Afinal, apostar na crítica em tempos difíceis, com publicações em jornais, revistas e demais espaços de expressão pública, arriscando-se a encontrar as dificuldades que o ambiente apresenta a quem ousa sair das linhas (quadradas) da adesão conveniente, é uma opção política e editorial que vai além do tempo físico e pode indicar pistas para entender o papel social de qualquer construção simbólica comunicacional.

O brasileirismo polêmico de Lima Barreto tem outra característica que extrapola os registros históricos, típico de intelectuais que exercem um papel perspicaz e vigilante aos problemas sociais do tempo presente. A coragem, ironia e crítica do “jovem mulato” revelam, aqui, um brasileirismo presente nas primeiras décadas da República e que, por coincidência, encontrou na escrita de Lima Barreto a sensibilidade de metafórica criação literária.

Sérgio Luiz Gadini, jornalista, dr em Comunicação, professor do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: slgadini@uepg.br


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