João do Rio
João do Rio
Gilda Vilela Brandão*
Filho único de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática, e de Florência dos Santos Barreto, João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Barreto [Paulo Barreto] nasceu no Rio de Janeiro no dia 05 de agosto de 1881, em um sobrado situado na Rua do Hospício (atual Buenos Aires) e faleceu em 23 de junho de 1921, fulminado por ataque cardíaco, dentro de um táxi, logo após deixar a redação do jornal “A Pátria”.
Inicia sua carreira de jornalista meses antes de completar dezoito anos (1899), no jornal “A Tribuna”, com uma crítica da peça Casa de boneca, de Ibsen – indício de sua paixão pelo teatro –, encenada por Lucília Simões no teatro Santana (atual teatro Carlos Gomes). Meses depois é admitido em “A Cidade do Rio”. A partir de 1901, colabora intensamente nos jornais “O País”, “O Dia”, “O Correio Mercantil. Ingressa, em 1903, por indicação do então deputado fluminense Nilo Peçanha, em um dos jornais mais influentes do Rio de Janeiro: “Gazeta de Notícias”. Passa, então, a usar o pseudônimo que o tornaria famoso: João do Rio. Vale lembrar que o uso de um nom de plume, como costumam chamar os franceses, era uma prática comum nos círculos literários europeus e brasileiros, funcionando ora como ocultação de identidade, ora como um simples jogo de esconde-esconde com o leitor. Tal como Machado de Assis e Olavo Bilac, Paulo Barreto passa a assinar textos jornalísticos – crítica teatral, crônicas, entrevistas, reportagens – sob diferentes pseudônimos: José Antonio José, Joe, Claude, Máscara negra. Porém, é com o pseudônimo patronímico que ganha notoriedade no meio jornalístico e nas rodas mundanas e sociais. Aliás, para alguns, o pseudônimo João do Rio seria um tributo ao irrequieto jornalista e romancista francês Jean Lorrain [Paul-Alexandre Duval, 1855-1906], autor de Monsieur de Phocas e de Le vice errant (ambos publicados em 1901), de quem era um ardente admirador. Para outros, a escolha seria uma homenagem à cidade que ele tanto amava – razão de ser de sua obra. Ambas as justificativas têm algo a seu favor, mas não devem ser vistas separadamente.
Em 1904, escreve uma série de crônicas que mais tarde comporiam o volume As religiões do Rio, título inspirado em Les religions de Paris (1894), de Jules Bois (1868-1943). Para escrevê-las, João do Rio abandona a chamada “crônica de gabinete” e, à maneira de Eugène Sue (1804-1857), que largara as vestes aristocratas para escrever o romance-folhetim Les mystères de Paris, publicado no Journal des Débats, entre junho de 1842 e outubro de 1843, envereda pelas ruas e pelos becos fétidos cariocas em busca do que chamaria “a alma encantadora das ruas”. Exemplário das crenças praticadas no Rio de Janeiro, o livro recebeu, da Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – composta por Sílvio Romero, Afonso Celso de Assis Figueiredo e B. T. de M. Leite Velho –, um parecer elogioso, no qual, a par do irrecusável cunho histórico, destacam-se “a graça e a cintilação de estilo” do jornalista escritor. Dedicado a Manuel Jorge de Oliveira Rocha, fundador do jornal “A Notícia” (1894), o Rochinha, o livro abre-se com uma epígrafe extraída do pensador e filósofo renascentista francês Michel de Montaigne (1533-1592): “Cecy est un livre de bonne foy” (“Este é um livro de boa fé”). Guiado por esse princípio de fé, escreve, sem titubear, na Introdução: “O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa”. Tal diversidade pode ser encontrada, sem dificuldades, nas vinte e três crônicas-reportagens, dentre as quais a antológica “Missa negra”. Em “Os satanistas”, inventa um interlocutor e co-enunciador, o Dr. Justino de Moura, personagem que, tal como o Barão de Belfort e Godofredo de Alencar – apresentado em A profissão de Jacques Pedreira, como um “homem de letras que se dá com políticos de importância” – irá freqüentar assiduamente sua ficção, ora, simplesmente, como Justino, nos contos “Dentro da noite”, Honestidade de Etelvina amante”, “Puro amor”, e muitos outros, ora como Justino Gouveia (“Cleópatra”).
Seguindo o modelo de Jules Huret (1863-1915), que havia inaugurado, no periódico “L’écho de Paris”, a moda dos “inquéritos” literários (“Enquête sur l’évolution littéraire”, 1891), Paulo Barreto, ainda em 1904, atendendo à sugestão do poeta Medeiros e Albuquerque, começa escrever uma série de entrevistas (28 publicadas em jornal e nove acrescentadas ao livro) intitulada O momento literário. Dentre os entrevistados acham-se Coelho Neto, Elysio de Carvalho, Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, Nestor Vítor, Afonso Celso, Fábio Luz, João Ribeiro, Afrânio Peixoto, Olavo Bilac, Rodrigo Otávio (autor de Aristo, uma novela, conforme ele próprio afirma, que “ninguém leu nem conhece”) e Guimarães Passos (“Guima” para os íntimos), a quem sucederia na Academia Brasileira de Letras. Outros caíram no ostracismo. O livro tem como propósito indagar “parnasianos, líricos, decadentes, clássicos, naturistas, sociólogos, ocultistas, anarquistas, impassíveis, humoristas, simbolistas, nefelibatas” sobre a arte que praticavam. Tratava-se, sobretudo, de obter, por meio das cinco seguintes perguntas, uma cartografia do pensamento literário brasileiro: “1) Para sua formação literária, quais os autores que mais contribuíram? 2) Das suas obras, qual a que prefere? Especificando mais ainda: quais, dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere? 3) Lembrando, separadamente, a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação etc.) ou há luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores que as representam? Qual a que julga predestinada a predominar? 4) O desenvolvimento dos Centros Literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte? 5) O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a literatura?”. A última pergunta demonstra claramente uma preocupação com o futuro da literatura, ameaçada por uma nova tecnologia de impressão (Machado de Assis, em “O jornal e o livro”, também demonstraria a mesma inquietação). Como que prevendo a chegada de novas imagens com um poder comunicativo maior, João do Rio tinha, conforme se vê, as lentes de seu monóculo voltadas para o futuro.
Olhando o conjunto das questões, chama-nos a atenção a perspicácia do entrevistador, que, no final, não mascara sua decepção com os rumos da literatura brasileira: “A verdade é que cada um cuida de si. A época é de um individualismo hiperestésico. Há a estagnação dos corrilhos literários, mas a fúria de aparecer só – é prodigiosa”.
Comunicador nato, João do Rio trabalha intensamente nas duas “fornalhas”, a mundana e a profissional: “Há – dizia a Júlia de Almeida em O momento literário – na fornalha [do Rio de Janeiro], outra fornalha que me espera – o jornal”. De fato, centro político e difusor cultural do país, o Rio de Janeiro passava por uma série de turbulências, desde as habituais divergências político-partidárias até mutações culturais mais profundas. No plano histórico-cultural, duas ações, perfeitamente concatenadas, foram, decerto, as mais significativas. A primeira, proposta pelo renomado sanitarista Oswaldo Cruz, consistia em promover a vacina obrigatória (Revolta da vacina, 1904) e em erradicar a epidemia de febre amarela, na qual, aliás, João do Rio se inspirou para escrever, com tintas expressionistas, o conto “A peste” (Dentro da noite): “Os olhos [de Francisco] desapareciam meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes”. A segunda, promovida pelo prefeito Francisco Franco Pereira Passos, também durante o governo Rodrigues Alves, foi, como é sabido, a urbanização do Rio de Janeiro (1903-1904). Denominado, por Manuel de Souza Pinto, de “O Bota-abaixo” e fotografada pelo alagoano Augusto Malta, o projeto civilizatório muda a fisionomia da velha cidade colonial. Tendo como modelo as reformas urbanas promovidas, em Paris (1857), pelo prefeito George-Eugène Hausmann, Pereira Passos põe abaixo o velho casario colonial, igrejas, becos e cortiços; abre a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), projetada pelo engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin, transformando a cidade, com o perdão do clichê, em um “microcosmo de Paris”. Importante salientar que João do Rio percebe a urbanização como um processo dual: se, por um lado, aplaude a implantação de um moderno espaço urbano, por outro, rejeita a homogeneização cultural como algo profundamente negativo. Na crônica, “O velho mercado” (Cinematógrafo, crônicas cariocas, 1909), lamenta a derrubada do “estômago da cidade”. Conhecedor das tradições do Rio antigo, tinha consciência de que habitava, na acepção de Marc Augé, um lugar antropológico, que a civilização punha abaixo. Vale a pena citar esta passagem, prenhe de nostalgia: “Acabou de mudar-se ontem a Praça do Mercado. [...]. Que nos resta mais do velho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moderna é como todas as cidades modernas [...]. De súbito, da noite para o dia, [o Rio] compreendeu que era ser preciso tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas [...].
Ao mesmo tempo em que escreve uma série de crônicas sob o título “Dias de burla”, que mais tarde irão compor o volume Os dias passam – composto de quinze crônicas escritas na “Gazeta” e em “A Notícia”, entre 1904 e 1910 – colabora, juntamente com Olavo Bilac, na revista Kosmos, refinado mensário ilustrado em papel couché. Por essa época (1903-1904), a caricatura alcança um prestígio no vigor do traço de Calixto Cordeiro (Kalixto) e de Gil, que, na série “Os prontos”, capta o repórter-cronista e seu indefectível monóculo.
Aos vinte e cinco anos de idade (1905), candidata-se à Academia Brasileira de Letras (ABL), sob a presidência de Machado de Assis – autoridade moral na Academia – na vaga de Pedro Rabelo. Foi eleito Heráclito Graça, tio de Graça Aranha. Adoentado, João do Rio segue para Poços de Caldas (anos depois, voltaria à estação de águas), onde certamente já começa a angariar matéria convincente para escrever Correspondência de uma estação de cura (1918), romance epistolar, sem dúvida um dos melhores que escreveu.
Atraído cada vez mais pelo teatro, escreve, em 1906, sua primeira peça, a revista-burleta “A Folia”, cujo título seria mudado para “Chic Chic” . A segunda peça, “Clotilde”, drama em um ato, traz um dos assuntos prediletos do jornalista carioca: a infidelidade feminina. À estréia, em 8 de março de 1907, esteve presente o recém-empossado Presidente da República, Afonso Pena, recebido, à porta do teatro Recreio Dramático, pelo autor e pelo consagrado teatrólogo Arthur Azevedo, que também encenava, na mesma ocasião, sua peça, “O Dote”, baseada no conto “Reflexões de um marido”, de Júlia Lopes de Almeida, publicado em “O Paiz”. Tendo alcançado certo sucesso, escreve “Dinheiro haja!” (1908), “A bela Madame Vargas” (1912), baseada em um crime ocorrido em 1906, envolvendo uma senhora da alta sociedade. “Eva (a propósito de uma menina original)” e “Que pena ser só ladrão!” são encenadas em 1915. A peça “O Encontro”, publicada posteriormente sob o título “Um chá das cinco”, tem como núcleo mais um tema caro ao autor: a prostituição. Este texto dramatúrgico terá sua versão narrativa no conto homônimo, “Encontro” (A mulher e os espelhos, 1919) que narra o reencontro, após quinze anos, numa rua qualquer, de Teodureto Gomes com uma antiga amante, Argemira/Adélia. Não raro, sua inclinação pela arte teatral alcança um complemento na obra ficcional. Assim, o conto “A fada das pérolas” (A mulher e os espelhos) tem, como cenário, um dos teatros do Recreio, e, como protagonistas, um casal de portugueses, Serafim e Joana. Carpinteiro, Serafim vivia “da oficina para a casa e da casa para a oficina”. Convidado a trabalhar nas oficinas do teatro, Serafim é seduzido pela atriz Maria do Carmo, cognominada “a fada das pérolas”. Com seu “chapéu de plumas”, descendo de sua “vitória forrada de cetim verde”, Maria do Carmo encarna a perdição. Para Joana, é “uma entidade celeste”. Acidentado, mas no fundo “morto por uma paixão violenta”, Serafim é trazido de volta para casa, em uma maca, “estendido, hirto, a camisa sangrando, a boca aberta, o olho vítreo”. Essa maneira de transitar de um gênero para outro é muito mais do que um indício de sua indiscutível versatilidade comunicacional. Constitui, sem sombra de dúvidas, a personalidade de um escritor atento aos paradoxos da sociedade carioca, e que serviriam de nascedouro para sua produção ficcional (teatro, conto e romance) e para sua produção midiática, jornalística (crônica).
Opiniático, irreverente, famoso (fala-se da expectativa de transeuntes aguardando sua chegada espalhafatosa na “Gazeta de Notícias”), João do Rio começa a ser alvo de um cortejo de provocações: acusam-no de bajular figuras proeminentes da política e de estar ligado à “política dos governadores”, sistema instaurado no governo Campos Sales (1898-1902) pelo qual os Estados passavam a ter influência na escolha dos candidatos à sucessão presidencial da República; criticam-lhe a indumentária sofisticada, a aparência snob, a adiposidade, provocada, provavelmente, por problemas de hipotireoidismo. Em clima de pleno nacionalismo pátrio, acusam-no de lusitanismo, devido à amizade que mantinha com a comunidade portuguesa. Finalmente, por conta de sua homossexualidade, torna-se objeto de pilhérias maldizentes, que o magoam profundamente. Entrementes, com o mesmo ardor, continua produzindo. Em 1907, aparece sua tradução da peça Salomé, de Oscar Wilde, publicada originalmente (em partes) na revista Kosmos e considerada, até hoje, por especialistas, uma das mais confiáveis. Em Wilde, de quem traduziria também Intenções e O retrato de Dorian Gray (trabalho não assinado), descobre a estranha combinação entre arte e vida, mote de que precisava para, escudado em Jean Lorrain e em Friderich Nietzsche, introduzir, na sua ficção, tópicos escabrosos, como prostituição, lesbianismo e sadomasoquismo.
Candidata-se pela segunda vez, na vaga do historiador e poeta José Alexandre Teixeira de Melo, perdendo o pleito para Artur Silveira da Mota (Barão de Jaceguai), considerado heroi naval da batalha de Humaitá (Guerra contra o Paraguai, 1869), que, aliás, ao não saudar seu antecessor, sob o falso pretexto de não ter conhecido nem o homem nem a obra, infringiu os cânones protocolares acadêmicos.
Inaugurada em 11 de agosto de 1908 (a data estava prevista para14 de julho), em comemoração ao centenário da Abertura dos Portos do Brasil, a Exposição Nacional torna-se matéria de muitas crônicas, dentre as quais “Quando o brasileiro descobrirá o Brasil?”, em que fustiga a classe endinheirada por desprezar a cultura e a história de seu próprio país: “No fundo, porém, temos a ideia de que somos fenomenalmente inferiores, porque não somos tal qual os outros, e ignoramo-nos por completo. Naquela roda, as senhoras conheciam a Escandinávia, e perguntavam se Minas era porto de mar. [...]. Não há francês que ignore seu país, a sua divisão política, a sua produção e a sua história. No Brasil, dá-se absolutamente o contrário.[...]. E isto porque (sic)? Porque, brasileiros, esses cavalheiros acham inteiramente inútil conhecer o Brasil. Um livro sobre a geologia da França é para cada um deles muito mais interessante que a descrição do esplendor no qual vivemos [...]”.
No final do mesmo ano (1908) viaja para a Europa no paquete “Araguaya”. Em Lisboa, percorre, extasiado, a Alfama e a Mouraria; segue para o Porto onde assina contrato com os livreiros Lello Irmãos, que o apresentam ao poeta Guerra Junqueiro (descreve esse encontro em uma coluna da “Gazeta de Notícias”, mais tarde publicada no volume Portugal d’agora, dedicado a Manuel de Sousa Pinto e a João de Barros); admira Florença, detesta Nápoles. Em fevereiro de 1909 chega a Paris, cidade onipresente no imaginário dos intelectuais brasileiros e, particularmente, no do nosso escritor; freqüenta teatros, cabarés, conhece Isadora Duncan, que lhe reservaria um lugar em seu livro de memórias, Minha vida, e a quem serviria de cicerone durante o período em que a bailarina esteve no Brasil. Em Nice, já a caminho do Brasil, recebe a notícia da morte repentina de seu pai, chegando a tempo de comparecer à missa de sétimo dia e de consolar sua adorada mãe, D. Florência, que, diga-se de passagem, intrometia-se amiúde na vida do filho escritor.
Candidata-se, pela terceira vez, à Academia (Machado de Assis falecera em setembro de 1908), na vaga do poeta alagoano Guimarães Passos, falecido em Paris em 1909. Finalmente é eleito, derrotando o general Dantas Barreto. Ocupante 2, da cadeira 26 (cujo patrono era o poeta Laurindo Rebelo), é o primeiro a tomar posse com o “fardão dos imortais”, em cerimônia a que compareceram figuras da alta sociedade. Conhecido por sua irreverência, o poeta Emílio de Menezes, compõe a seguinte quadra: “Na previsão de próximos calores/ A Academia que idolatra o frio/ Não podendo comprar ventiladores/ Abriu as portas para João do Rio”. No entanto, o ingresso, na ABL, de um mulato homossexual constitui um marco na história da instituição, conhecida por seu conservadorismo.
A crônica continua sendo para o autor de As religiões no Rio uma tentativa de conjugar etnografia, literatura e comunicação. Ao reunir, em 1909, quarenta e quatro crônicas, sob o título Cinematographo (crônicas cariocas), João do Rio deixa claro seu propósito: revelar, no sentido cinematográfico do termo, uma sucessão vertiginosa de cenas urbanas. Aliás, o indicador textual colocado entre parênteses (crônicas cariocas) estabelece de imediato uma relação espacial do cronista com a cidade maravilhosa, aposto, como é sabido, dado à capital federal pela escritora francesa Jane Catulle Mendès, por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro em 1911, quando proferiu conferências, dentre as quais “Les femmes de lettres françaises” (“As mulheres letradas francesas”), no Teatro Municipal. Em cuidadosa edição de Lello Irmãos, em tons de marrom e dourado, o livro, que temos, neste exato momento, em mãos (1909), desgastado pelo tempo, foi um sucesso de livraria, para o que contribuíram o nome do autor e o assunto escolhido.
As duas primeiras décadas do século vinte foram, seguramente, um período social e historicamente conturbado, no âmbito mundial e nacional. Cabe-nos apenas lembrar que em 1906, é realizado no Rio de Janeiro o terceiro Congresso Operário (considera-se o primeiro, o congresso realizado no Rio, em 1892; o segundo, o Congresso Socialista de 1902, realizado em São Paulo). A entrada do Brasil na guerra (1914-1918) provocou protestos da imprensa anarquista, dos jornais revolucionários cariocas, paulistas e portoalegrenses (“A Lanterna”, “O Cosmopolita”, “O Parafuso”, “A Patuléia”, “A Luta”); em 1914, “O Imparcial”, em Belém, e a “Semana Social”, em Maceió, são fechados pela polícia. O jornal quinzenal “A voz dos trabalhadores”, no qual, aliás, Lima Barreto colaborava, ressurge das cinzas, com uma tiragem de 4.000 exemplares. As organizações operárias (Sindicato dos Operários das Pedreiras, União dos Alfaiates, Sociedade União dos Estivadores, para citar apenas algumas) convocam greves. João do Rio mostrou-se sensível à exploração da classe proletária. Em A alma encantadora das ruas (1910) mostra, mais uma vez, que não há zona, cultural ou geográfica, intransponível para ele. Dividida em quatro partes (“O que se vê nas ruas”, “Três aspectos da miséria” “Onde às vezes termina a rua”, “A musa das ruas”), esta obra pode ser estudada tanto sob o aspecto literário quanto sob os aspectos etnológico, histórico e comunicacional. O primeiro, pelos recursos narrativos e a organização discursiva; o segundo, por levar ao público a cotidianidade urbana, as profissões e as tradições em via de desaparecimento, e um mundo até então camuflado por grande parte dos historiadores: o mundo da miséria urbana. A pobreza é um problema da sociedade, da má distribuição de riquezas, é o que ele nos diz na crônica “A fome negra”: “[Os pobres seres] vivem quase nus. No máximo, uma calça em frangalhos e uma camisa de meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro, o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos poderosos”. Essa fase agitada da chamada “belle époque tropical” é fixada em crônicas que davam amostras suficientes do interesse, do escritor carioca, em narrar a cidade a partir de seus mais diferentes espaços de sociabilidade, desde os mais reluzentes e requintados (hotéis, restaurantes, teatros, salões mundanos), freqüentados por uma burguesia europeizada e por políticos interessados em ocupar cargos representativos no governo, até os mais obscuros, heterotópicos, diríamos (favelas, asilos, prostíbulos, casas de detenção), onde vivia uma população periférica, anônima, esfomeada, analfabeta, sem direito à dignidade do trabalho e à educação, jogada à margem da urbanização. Sem romper totalmente com os princípios que regiam a crônica-folhetim, inaugurada brilhantemente, em 1874, por José de Alencar (“Ao correr da pena”), João do Rio surpreende o público pelo pioneirismo de suas inovações.
Sendo um dos poucos escritores (talvez o único) a viver exclusivamente do jornal, e sempre às voltas com dificuldades financeiras, assina, em 1910, um contrato com a Casa Garnier, com vistas à publicação de quatro livros: Portugal d’agora, Vida vertiginosa, A profissão de Jacques Pedreira (1911-1913), publicado após uma série de percalços editoriais, romance de crítica social e política, cuja personagem-título é um bon vivant, o protótipo do parasita social. Já o quarto livro, Psicologia urbana (1911) reúne seu discurso de posse e quatro conferências: “O flirt”, “O amor carioca”, “O figurino”, “A delícia de mentir”, esta última proferida durante sua viagem, em 1910, a São Paulo, no teatro Santana, em benefício do Centro Acadêmico 11 de agosto, da faculdade de Direito. No tempo da chamada “febre das conferências”, ressalte-se a escolha do comunicador-conferencista por temas modernos, up to date, próprios de uma cidade com ares cosmopolitas. Em “O figurino”, surpreende-nos sua concepção sobre a moda, não mais vista como um simples acessório de futilidade, mas como um elemento em constante mudança e em interação com a vida social dos novos tempos.
Em 1910 é publicada a coletânea de contos Dentro da noite. A ideia nuclear, já a exprime o título: à noite, os vícios, a luxúria e a licenciosidade passeiam mais à vontade (apenas os contos “O fim de Arsênio Godard”, ambientado durante a Revolta da Esquadra, em 1893, e “Coração”, de teor semiautobiográfico não se enquadram nesses valores). O mesmo temário é também perseguido em A mulher e os espelhos (1919).
Em muitos contos, utiliza, com freqüência, a mesma técnica: a descrição é dada, conforme mencionamos anteriormente, por meio de traços histriônicos. No conto “Histórias de gente alegre”, que relata um caso de lesbianismo, Elsa e Elisa, em uma cena concebida como um espetáculo, observada pelo público da pensão, debatem-se até a morte. “A aventura de Rosendo Moura” é o relato, nos limites do cômico, da fuga, de Rosendo, fantasiado de dominó, e de Corina Gomes – uma mulher do povo, magra, lívida, viciada em cocaína – pelas ruas da cidade, ambos tentando escapar, numa terça-feira anterior ao carnaval, da perseguição do amante que explora a indefesa mulher. No antológico “O bebê de tarlatana rosa”, que teve em Graciliano Ramos um leitor atento, João do Rio, tomando como metáfora a máscara, adota uma iconoclastia literária, mantendo-se distante das convenções ainda em voga.
Porém, quando se trata da ficção, um dos equívocos mais comuns tem sido o de fazer dele um escritor subserviente aos modelos europeus, sob suspeita de ter sido um imitador (além de Wilde) de Joris Karl Huysmans, o autor de A rebours (Às avessas), criador do protótipo do dândi decadentista, Jean Floressas des Esseintes. A fabulação do romance huysmanniano é de uma imobilidade quase absoluta: decidido a não ver qualquer silhueta humana, o duque Des Esseintes (a partícula “des” sinaliza sua origem aristocrática) tranca-se nos cômodos de sua casa, distante de Paris. Neste reduto, absorve-se na leitura de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Petrônio (Satyricon), bem como na contemplação de obras pictóricas, dentre as quais avultam as dos pré-rafaelitas e a Salomé, de Gustave Moreau, imagem pictórica carregada de sentidos para Wilde. Ver, nos dândis-narradores de João do Rio, uma cópia do dândi huysmaniano pode vir a ser, no nosso entendimento, um julgamento precipitado. Com os olhos e a caneta voltados para seu contexto histórico, João do Rio segue, estruturalmente, outra linha de argumentação, abrasileirando, conscientemente, o seu dândi André de Belfort (o equívoco, provavelmente, deve-se ao fato de o próprio João do Rio caracterizá-lo como dândi). Ao retiro monacal de Des Esseintes, à sua ascendência aristocrática, ao seu desdém pela pobreza, ao seu culto pela arte, João do Rio opõe um dândi desmemoriado, sem genealogia; posudo, sim, insensível, às vezes, mas profundamente comovido com o destino agônico dos miseráveis urbanos, representados em figuras pobres e decrépitas como Corina (“A aventura de Rosendo Moura”), D. Joaquina (“D. Joaquina”), Carlota (“A noiva do som”), Armando (“Última noite”), Rosa (“Uma criatura a quem nunca faltou nada!”) e a menina amarela do conto homônimo (“A menina amarela”). Não é possível também esquecer que o fenômeno do dandismo tem, no contexto europeu, um fundamento histórico, indissociavelmente ligado à derrocada da nobreza. Fechando a questão, o dândi europeu é uma categoria social, sobre a qual Huysmans fundou uma rica tradição estilística. Se, por um lado, é impossível negar a presença de Wilde, Lorrain e Huysmans no conjunto da obra do escritor carioca, por outro, não é possível ignorar as combinações estético-sociais que o motivaram e que não cabem discutir aqui.
Mas há, ainda, em João do Rio uma tendência precisando ser explorada pela crítica: trata-se de sua fixação por histórias policiais, detetivescas, que tanto podem estar, disfarçadas, na crônica e na ficção quanto, mais abertamente, nestas incríveis Memórias de um rato de hotel (1911), livro publicado originalmente sem autoria. Eis a fala de abertura do Dr. Antônio, o ladrão de casaca: “Nunca pensei em escrever memórias. Nunca fui dado à literatura e à fantasia, sendo muito limitado o número de livros que tenho lido. [...]. Passo as noites sem poder dormir, com dispnéias, estou magro, macilento, com olheiras, as mãos trêmulas [...]. Estava assim, há dias, desolado, na enfermaria, quando vieram chamar-me”. O administrador da prisão apresenta-o a um jornalista anônimo: “Mas, que quer o senhor de mim”? [pergunta Dr. Antônio]. – “Quero que conte a sua vida para meu jornal” [responde o entrevistador].
Em 1916, publica o volume Crônicas e frases de Godofredo de Alencar, reunião de textos que já haviam passado pela imprensa periódica, na “Gazeta”, com o pseudônimo de Joe, cujo narrador-protagonista, Godofredo de Alencar (antes conhecido como Godofredo Câmara), vale lembrar agora, é uma homenagem do cronista a Mário de Alencar, filho do grande romancista, teatrólogo e cronista cearense.
A linguagem aforismática, de fortes lembranças wildeanas, bastante cultivada pelo autor tanto nas obras ficcionais (“este mundo é uma esquina por onde passam todos os homens”) quanto nos textos cronísticos, é, aqui, preponderante. Comparemos Wilde, em O retrato de Dorian Gray, quando conjetura sobre o traje do século XIX :”É tão sombrio, tão deprimente! O pecado é realmente o único elemento colorido da vida moderna”, com Godofredo de Alencar: “Tudo na terra é mistério, tudo na vida é repetição”; Os homens sucedem-se repetindo velhos gestos”; “Não há maior luxúria que a de pensar. Só uma a sobrepuja: a de pensar bem”; “Nada mais complicado que uma alma simples”; “A velhice é o peso da desilusão”.
Desde 1915, João do Rio vinha escrevendo crônicas mundanas e comentários políticos na “Gazeta”, sob o pseudônimo de José Antônio José, na seção por ele denominada “Pall-Mall Rio”, que saem a lume em 1917. Neste mesmo ano, juntamente com Francisca (Chiquinha) Gonzaga, Bastos Tigre, Carlos Cavaco, Oduvaldo Vianna, Raul Pederneiras, Oscar Guanabarino, Viriato Corrêa e muitos outros, funda a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), sendo eleito o primeiro presidente. Após um período pontuado de decepções, aceita, em 1919, a função de correspondente na Conferência de Paz, em Versalhes.
Em 1920, deixa O país e funda seu próprio jornal, A Pátria, chamado ironicamente de A Mátria por seus detratores (Alberto Torres e Humberto de Campos foram os mais impiedosos). No mesmo ano, publica Adiante! e a terceira e última coletânea de contos, Rosário da ilusão. Encerrava uma carreira vertiginosa.
Sua morte súbita surpreendeu a população carioca. Seu corpo não foi velado na Academia Brasileira de Letras, com a qual andava desgostoso, mas, por determinação materna, na redação de A Pátria. O enterro foi acompanhado por uma multidão.
Segundo seus biógrafos, João do Rio escreveu um total de duas mil trezentas e duas crônicas. A última crônica, escrita em 23 de junho de 1921, poucas horas antes de morrer, guarda um título sugestivo: “A crise brasileira e a decadência do Brasil”.
O que faz, deste jornalista carioca, um elemento distintivo no quadro da imprensa do período, é sua intensa dedicação à vida jornalística e sua capacidade de comunicador. Brasileiríssimo, João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Barreto, é, sem dúvida, um dos grandes protagonistas literários do século vinte.
Referências Bibliográficas
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
CARVALHO, Elysio de. João do Rio. In: ______. Correntes estéticas na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1909.
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RODRIGUES, João Carlos. Catálogo bibliográfico (1899-1921). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultural, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1994.
______. João do Rio – uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 293 p.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
*Doutora em Estudos Literários, Gilda Vilela Brandão defendeu a tese intitulada “Sem feitio de acabado: crônica e ficção em João do Rio”.
É autora, dentre outros, dos seguintes artigos, publicados em revistas acadêmicas: “Crônica e cotidianidade” (Navegações, v. 7, n. 2, 2014); “Arte, criação e crítica em A obra-prima ignorada, de Honoré de Balzac” (Polifonia, v. 20, n. 28, 2013); “Graciliano Ramos e o sentimento de absurdo” (Diadorim, v. 13, 2013); “Notas sobre a recepção do simbolismo na França e no Brasil” (ABRALIC, v. 2, n. 17, 2010); “Imagens fin-de-siècle (Letras, v. 19, n. 2); “José de Alencar e a crítica literária” ( Leitura,v. 45, 2010); “Imagens fin-de-siècle” (Letras, n. 39, 2009); “João do Rio, o homus cinematographicus” (Revista do Rio de Janeiro, n. 20-21, 2007); “Resenhando o Momento Literário, de João do Rio (ABRALIC, n. 6, 2002). Em parceria com Ari Denisson da Silva é autora de “Triste fim de Policarpo Quaresma: caminhos e descaminhos de um projeto utópico”. In: CAVALCANTE, Ildney; CORDIVIOLA, Alfredo (orgs). Os retornos da utopia: histórias, imagens, experiências. Maceió: Edufal, 2015. Organizou, juntamente com a profa. Dra. Ana Cláudia Aimoré Martins e o prof. Dr. Zygmunt Vojski o volume Corpo, literatura e cultura: espaços-latino-americanos da escravidão. (Maceió: Edufal, 2011). É organizadora do volume Jorge & Murilo, contendo doze artigos sobre a poética de Jorge de Lima e Murilo Mendes (Maceió: Edufal, 2015).