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Gilberto Freyre

Por Aline Maria Grego Lins

GILBERTO FREYRE: um pensamento criativo, inovador e provocador

 

Aline Mª Grego Lins - Universidade Católica de Pernambuco

                                     

A vida e a obra do sociólogo, antropólogo, historiador e escritor pernambucano, Gilberto Mello Freyre, atravessou as fronteiras físicas e virtuais. Autor da consagrada obra, Casa Grande & Senzala, traduzida do português para vários idiomas, revolucionou o pensamento e os conceitos vigentes ao abordar as questões afetas à formação da sociedade brasileira de forma inovadora. Multifacetado, foi um estudioso inquieto, audacioso, crítico e criativo. Negou-se, ainda jovem, a dialogar apenas com o pensamento europeu. Buscou outros caminhos para confrontar suas ideias e desbravar novos olhares. Foi para os Estados Unidos, aos 18 anos de idade, de onde enviava para o Diario de Pernambuco artigos para uma série que ele próprio intitulou “Da outra América”.

Reconhecido e respeitado internacionalmente por sua consistente, densa e fecunda obra, Freyre inovou, ao estudar a sociedade brasileira a partir do seu cotidiano, pesquisando em arquivos públicos e pessoais, recorrendo a história oral, aos anúncios de jornais e a outras fontes que até então eram ignoradas, tarefa que realizou com grande rigor científico.

 

Também foi um homem desafiado pelas possibilidades da Comunicação e, de modo especial, pelo jornalismo, território onde transitou largamente nos mais diferentes períodos e títulos. Atento as transformações sociais do século XX, e ao papel da Comunicação, o então jovem sociólogo pernambucano foi sagaz ao perceber a força enunciativa dos anúncios nos jornais impressos, em razão dessa descoberta, ele próprio intitulava-se fundador da disciplina anunciologia (Freyre, 2012, p.9).

 

Orgulho -me de, ainda muito jovem, ter -me antecipado nessa valorização de anúncios de

jornal: começo, no Brasil, de uma anunciologia. O anúncio, desde o seu aparecimento em

jornal, começou a ser história social e, até, antropologia cultural, da mais exata, da mais

idônea, da mais confiável.

 

 Por outro, no jornalismo, que o atraia pelo exercício das letras e pela capacidade de amplificar a disseminação da informação e do conhecimento, ousou elaborar um manual de redação (provavelmente um dos primeiros registros que se tem notícia no País sobre esse tema) . Freyre o engendrou especialmente para o jornal A Província, jornal que dirigiu, em 1929, a convite do então governador de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra, de quem havia sido oficial de gabinete. No jornal oficial A Província, Freyre abriu espaço para a colaboração de novos escritores brasileiros e foi crítico  com os redatores que, através da linguagem, mantinham a distância o público leitor:

Um dos meus empenhos é dar ao noticiário e às reportagens um novo sabor, um novo estilo: muita simplicidade de palavra; muita exatidão, algum pitoresco. Isto é que é importante num jornal. E nada de bizantinismo. Nada de se dizer ‘progenitor’ em vez de pai nem ‘genitora’ em vez de mãe. Já preguei no ‘placard’ um papel em que se proíbe que se empreguem no noticiário, não só essas palavras pedantes em vez das genuínas, como ‘estimável’, ‘abastado’, ‘onomástico’, ‘deflui’, ‘transflui’, etc. (FREYRE, 2006, p. 319).··.

A forte ligação do sociólogo com as letras e o jornalismo acontece já aos 14 anos de idade, quando foi o redator chefe do jornal, O Lábaro, no Colégio Americano Gilreath, onde mais tarde concluiria o bacharelado em Ciências e Letras. Esse percurso, certamente, explica a opção de Freyre pelos Estados Unidos, onde foi estudar na Universidade de Baylor, no Texas. É também nesse período que ele começa a colaborar, de longe, com as edições do Diario de Pernambuco, jornal em língua portuguesa mais antigo em circulação no mundo.

Gilberto Freyre nasceu no Recife, no dia 15 de março de 1900 e, ao longo dos seus 87 anos de vida, ele e suas obras percorreram o mundo afora, mas o lugar em que sempre se sentiu mais à vontade para suas leituras e para sua escrita foi a sua casa, no aprazível bairro de Apipucos, zona norte do Recife, onde viveu 46 anos com a esposa Magdalena, com quem teve dois filhos, Sônia e Fernando. Hoje, a casa abriga o Museu Magdalena e Gilberto Freyre e a Fundação Gilberto Freyre, lugar de visitas e pesquisas.

Em 1922, defendeu seu Master of Arts, na Universidade de Colúmbia, em Nova York, com o trabalho Social life in Brazil in the middle of the 19th Century, orientado pelo antropólogo Franz Boas, de quem Freyre recebeu influência intelectual. A vivência nos Estados Unidos e sua opção, na juventude, pela religião de orientação evangélica, permitiram ao jovem Freyre uma imersão nas Ciências Sociais e Humanas norte-americana que, naquele momento em que ele se encontrava como estudante em Columbia, vivia um momento de efervescência e criatividade. Entre os trabalhos dos acadêmicos e intelectuais o focos, ou um dos focos, estava na temática indivíduo e sociedade. Assim, Freyre teve acesso a obras de William James, John Dewey, Franz Boas, John Bassett Moore, Carlton Hayes, com os quais e com magistral inteligência, Freyre soube criativamente dialogar e reinterpretar, o influenciando na forma ousada de interpretar o Brasil.

Ao retornar ao Brasil, em 1924, o escritor e amigo José Lins do Rego o animou a escrever romances, também o incentivou seu professor, o historiador, Oliveira Lima. Aliás, as artes, a literatura e os amigos escritores foram outros diálogos constantes na vida de Gilberto Freyre. Nesse mesmo ano, ele organizou para o Diário de Pernambuco, o livro comemorativo do centenário do jornal: Livro do Nordeste, onde publicou, pela primeira vez, o poema de Manuel Bandeira "Evocação do Recife", e os desenhos modernistas de Joaquim Cardozo e Joaquim do Rego Monteiro.

Quando aconteceu a  revolução de 30, Freyre acompanhou o governador de Pernambuco Estácio Coimbra para o exílio na Europa. Antes, numa das paradas do navio em que viajava, conheceu Dacar, no Senegal, no continente africano. Já em terras portuguesas, em Lisboa, iniciou o trabalho que iria fundamentar as articulações da obra Casa-grande & Senzala, livro que concluiria em 1933, ao regressar mais uma vez para o Recife, e que iria revelar para o mundo seu provocador pensamento antropológico. Nos anos seguintes, entre 1933 e 1937, Freyre escreveu os três livros base dos seus estudos sobre a formação da sociedade patriarcal no Brasil: Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Nordeste.

Além da influência dos cientistas sociais norte-americanos já citados anteriormente, o período em que viveu na Europa e mesmo depois, nas trocas acadêmicas e científicas,  Freyre pode navegar pelas escolas francesas e britânicas de Antropologia e História; pelo pensamento social e filosófico alemão (VELHO, 2008); e também dialogou com artistas e intelectuais brasileiros contemporâneos, entre eles, Heitor Vila Lobos, Manuel Bandeira, Vasconcelos Sobrinho, Cícero Dias, Sérgio Buarque de Holanda, Mauro Mota, Sebastião Vila Nova, Carlos Drumond de Andrade e Edson Nery da Fonseca, além de influenciar inúmeros jovens antropólogos e sociólogos pesquisadores, dentro e fora do Brasil. 

O mestre de Apipucos foi professor extraordinário nas Universidades de Stanford e Michigan, nos Estados Unidos da América. Professor convidado na Universidade de Coimbra, em Portugal. Dirigiu, na Universidade do Distrito Federal, então no Rio de Janeiro, a convite do educador Anísio Teixeira, o primeiro curso de Antropologia Social e Cultural da América Latina; e atestou o frescor de suas ideias ao ministrar, em 1935, o curso de Sociologia com orientação antropológica e ecológica, na Faculdade de Direito do Recife. Segundo o sociólogo também pernambucano, Sebastião Vila Nova, foi Gilberto Freyre quem introduziu no país, tanto a palavra ecológica, quanto o mundo de problemas que ela representava para o Brasil (VILA NOVA, 2001), nesse aspecto, Freyre teve um interlocutor exemplar, o ecólogo Vasconcelos Sobrinho. Um dado relevante a destacar, no percurso interdisciplinar do pensamento freyreano, é que a anunciologia, por exemplo, contribuiu, para o diálogo com a questão ecológica, muito antes de a discussão tomar a academia e a mídia brasileiras, nas décadas finais do século XX e início do XX. Em 1961, escreve Gilberto Freyre:

Quando continuo a deter-me no exame de anúncios de jornais, como introdutores de modificações de usos sociais brasileiros, no sentido de maior higiene, maior rapidez, maior segurança – toda a revolução causada, em anos recentes, pela máquina de ferro e por utensílios de metal em hábitos da nossa gente –, é que tal fonte de informação e de transformação social me parece continuar a agir favoravelmente, no Brasil, sobre desenvolvimentos e aperfeiçoamentos de vida, de vivência e de convivência.

Ainda há pouco inteirei-me, através de anúncio exemplarmente educativo, de ações químicas e farmacêuticas, no sentido de superar -se a poluição de praias e rios tropicalmente brasileiros. Daí já haver, nesse sentido, em uso, no Brasil, moderno processo de tratamento biológico de efluentes industriais de que anúncio de jornal dá notícia que, sendo comercial – como é próprio de anúncios – é também de interesse público.

Anúncios de jornal continuam não só a informar sobre produtos de iniciativas privadas úteis ao bem -estar coletivo como a instruir idoneamente leitores sobre aperfeiçoamentos que, em vários setores, continuam a ocorrer no nosso País, habilitando -o a uma maior harmonização de progressos com ecologias nacionais. (Freyre, 2012, p.10).

Entre suas obras, além dos já citados livros Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Nordeste, destacam-se Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934), que inaugurou um novo estilo de guia de cidade, lírico e informativo; Açúcar: algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do nordeste (1939); O mundo que o português criou (1940); Problemas brasileiros de antropologia (1943); Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas (1947); Ingleses no Brasil (1948); Assombrações do Recife Velho (1955); Ordem e progresso (1959); Vida, forma e cor (1962); Brasis, Brasil e Brasília: em torno de problemas brasileiros de unidade e diversidade e das relações de alguns deles com o pluralismo étnico e cultural (1968); Arte & ferro: portões, varandas e grades do Recife velho (1978), editada pela Ranulpho Editora de Arte com pranchas do amigo pintor, Lula Cardoso Ayres; (1983); Médicos, doentes e contextos sociais: uma abordagem sociológica (1983); Modos de homem e modas de mulher (1987)[1].

O jornalista Gilberto Freyre soube, também, ocupar com sabedoria visionária, lugar na imprensa, dentro e fora do Brasil. Publicou artigos, entre outros, nos jornais Estado de São Paulo, La Nación, Jornal da Tarde, O Pequeno, a Folha de São Paulo, o Jornal do Commercio do Recife e  Diário de Pernambuco, sua presença mais constante. Também escreveu por um bom tempo para a revista O Cruzeiro. Freyre tinha a clareza e a compreensão da importância do jornalismo e da comunicação  para a disseminação da informação e do conhecimento, para além das margens dos livros impressos, não escondia, por exemplo, seu apreço a obras como a de Marshall Macluhan (Freyre, 1961) .

Freyre foi membro da Academia Pernambucana de Letras; pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais Joaquim Nabuco, que ajudou a criar, em 1948, por ocasião do centenário de nascimento de Joaquim Nabuco, hoje Fundação Joaquim Nabuco. Foi o mentor, também, da Fundação Gilberto Freyre, em 1987, mesmo ano em que morreu, em 18 de julho, por ironia, no dia do aniversário da esposa Magdalena.

Considerando as denominações propostas pelo professor José Marques de Melo, no Glossário da Enciclopédia do Brasileirismo Comunicacional (2016), é possível afirmar que Gilberto Freyre foi um brasilógrafo, um brasileirante e, ao mesmo tempo, um brasílico, uma vez que foi estudioso dos assuntos brasileiros, colheu dados e produziu narrativas de interesse público; foi um brasileiro que se tornou um arauto do Brasil pelo mundo afora;  e, finalmente, foi um intelectual  de invejável inteligência, um visionário, e inovador.

A obra de Gilberto Freyre inspirou e inspira pesquisadores, nas mais diferentes áreas, a se debruçarem sobre o complexo e instigante legado por ele deixado. Cientistas, entre eles, Omar Ribeiro Thomaz, Elide Rugai Bastos; Gilberto Velho, Ricardo Benzaquen, Roberto DaMatta, Hermano Vianna, Valéria Torres da Costa e Silva, Maria Lúcia  e Peter Burke,  Wamireh Chacon, Edson Néry e Sebastião Vila Nova (VELHO,2008) estão entre os nomes que enfrentaram o desafio de dialogar e refletir sobre a obra de um dos maiores pensadores e intérpretes do Brasil do Século XX[2].

 

REFERÊNCIAS

 

FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornal do século XIX. São Paulo: Editora Global. Edição Digital, p. 01-116, 2012. Recurso digital : il. Formato: ePub. ISBN 978-85-260-1717-7

 

_______. Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. São Paulo: Global; Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2006.

 

GASPAR, Lúcia e Barbosa, Virginia. GILBERTO FREYRE, JORNALISTA: uma bibliografia, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=373

 

VELHO, GilbertoGilberto Freyre: Trajetória e singularidade. Sociologia, Problemas e Práticas [online]. 2008, n.58, pp.11-21. ISSN 0873-6529.

 

VILA NOVA, Sebastião, 2011. In: Em torno do Seminário de Tropicologia -1966-2001: uma contribuição histórico bibliográfica. CDU 061.3:308(213)(813.41)(091) http://www.fundaj.org.br

 



[1] Acesso a obras de Gilberto Freyre: consultar a Base de Dados do Portal da FUNDAJ: http://www.fundaj.gov.br

[2] Aos jovens iniciantes na pesquisa sugerimos acessar  a base de dados Freyre, alimentada pela Biblioteca Blanche Knopf, que abriga os documentos das Fundações Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre; e a relação de artigos de Freyre publicados em periódicos no Brasil e na Argentina, organizada por Lúcia Gaspar e Virgínia Barbosa. Ambos In: http://www.fundaj.gov.br

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