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Carmem Miranda

por Karina Janz Woitowicz

O brasileirismo ousado de Carmen Miranda, a pequena notável que fez a América conhecer o Brasil

         Muito já foi dito, escrito e até cantado sobre a brasileira mais famosa do século XX, Carmen Miranda. Sua trajetória é fonte inesgotável de elementos sobre a história da música popular brasileira e sobre seu reconhecimento no Brasil e no exterior. Afinal, ela fez nada menos do que consolidar ritmos brasileiros e, tanto pela música quanto pelo cinema, projetar a imagem do Brasil para além dos auditórios em que se apresentou nas emissoras de rádio, ao longo de uma carreira que durou 25 anos, até o seu falecimento em 1955. Contudo, ainda que o reconhecimento de Carmen como uma das mais importantes celebridades do meio musical seja inegável, não há um consenso a respeito da imagem que por ela construída na terra de Tio Sam.

         Escrever sobre Carmen Miranda é encontrar vestígios de um momento marcante para a sociedade e para a cultura brasileira, que viu surgir nas vozes do rádio e nas imagens do cinema o que seria considerada a criação de um gosto popular, de caráter massivo. Antes do rádio, do cinema e da televisão, seria impensável falar sobre grandes astros e estrelas, fã-clubes e artistas que enriqueceram com o seu trabalho. Carmen Miranda não apenas acompanhou estas significativas transformações na consolidação da cultura brasileira, a partir da incorporação dos meios de comunicação no cotidiano da sociedade, como foi parte importante deste processo, exercendo influência decisiva no cenário musical. Descobriu ritmos, inventou performances, criou modelitos que a consagraram pela criatividade e exuberância, viajou o mundo todo levando o Brasil representado na sua figura.

         Seria impossível, dada esta trajetória singular, recontar a história de Carmen Miranda. E, como algumas pesquisas e biografias produzidas sobre ela traduzem aspectos de sua vida pessoal e profissional, a partir de uma ampla pesquisa baseada em entrevistas, documentos, discos, filmes e recortes da mídia[1], também não seria o caso de reproduzir, aqui, as principais descobertas e enfoques traçados por biógrafos que se dedicaram a conhecer Carmen. O presente texto limita-se, portanto, a indicar a contribuição cultural de Carmen Miranda, para além das fronteiras brasileiras, lançando mão de elementos resultantes da bibliografia existente sobre a artista, e cotejando as diversas – e por vezes contrastantes – imagens de Carmen que a fizeram um verdadeiro fenômeno do século XX.

 

         A descoberta da cantora

A brasileira mais famosa do século XX, a pequena notável[2], “the BrazilianBombshell”[3], a “ditadora risonha do samba” ou a “dama do turbante Tutti-Frutti” nasceu em Várzea da Ovelha, Portugal, em 9 de fevereiro de 1909. Cresceu no bairro carioca da Lapa, onde aprendeu as gírias e o rebolado que marcaram sua carreira. Desde cedo ajudava a mãe, que tinha uma pensão, entregando marmitas. Depois trabalhou em lojas finas, aprendendo em uma chapelaria a fazer seus próprios chapéus e vestidos, que anos mais tarde chegaram às vitrines e viraram moda.

Carmen Miranda, que cantava informalmente por influência das irmãs, estreou em um microfone em 1929, no Instituto Nacional de Música, incentivada pelo baiano Josué de Barros, que a levou para cantar nas estações de rádio. A partir de então, tornou-se figura freqüente na Rádio Sociedade, na Mayrink Veiga e em outras emissoras pelas quais passou.

De acordo com Lia Calabre (2002), a contratação de cantores somente se tornou mais comum por volta de 1930. Apresentar-se de graça, ou mediante cachê, era prática comum no meio artístico.

 

Dentro do setor musical, o grupo de maior destaque junto ao público ouvinte era o dos cantores populares. A maior parte das apresentações dos cantores nas emissoras de rádio era feita em programas de transmissão ao vivo e com presença de auditório. Uma prática comum era o lançamento das músicas populares, como os sambas e as marchinhas carnavalescas, nesses programas, pois cada composição podia ser testada, verificando-se sua aceitação por parte do público. (CALABRE, 2002, p. 39)

 

O primeiro disco de Carmen Miranda foi gravado pela Victor.Gravou dois grandes sucessos do carnaval de 1930 (“Iaiá, ioiô” e “Taí”), que popularizaram as marchinhas. “Taí” garantiu a venda de 35 mil discos logo no primeiro ano, feito incomum para a época. Ruy Castro (2005, p. 53) oferece informações sobre o contexto em que a produção musical circulava.

 

[...] deve-se considerar que o Brasil tinha menos de 40 milhões de habitantes, 70% dos quais vivendo na roça ou em pequenas cidades, aonde os discos mal chegavam; que, na maioria das capitais, o número de vitrolas era ínfimo; e que o rádio, com seus aparelhos baratos e audição gratuita, provocara uma crise mundial na indústria fonográfica. Em 1930, os 35 mil discos de “Taí” eram o equivalente a 3 milhões e meio de hoje.

 

De acordo com o autor, aquele ano se tornou decisivo para fazer de Carmen uma estrela, pois a Victor lhe dera outras 28 músicas – quatorze discos – para gravar. “Era um investimento inédito de uma gravadora brasileira numa só artista. Significa que, a cada dezoito dias de 1930, saia um disco novo de Carmen Miranda” (2005, p. 60).

Estes dados eram recordes para qualquer cantor: “Carmen chegou ao fim de 1930 com quarenta músicas gravadas, entre sambas, sambas-canção, marchinhas, toadas, cançonetas cômicas e até um lundu, sem falar no foxtrote e nos tangos” (CASTRO, 2005, p. 65). Era, sem dúvida, o começo da era de ouro da música popular brasileira, cenário marcado pela expansão do rádio, dos discos e do cinema.

Carmen Miranda tornou-se rapidamente uma cantora conhecida pelas marchinhas e sambas e chegou a manter um programa semanal na rádio Mayrink Veiga, que era considerada a emissora mais profissional e também mais experimental da época, abrindo espaço para radioteatros, radionovelas e programas diversos. E foi na comédia musical “Banana da Terra” (1939) que ela apareceu pela primeira vez na performance de baiana, pela qual se tornou conhecida ao longo de toda sua carreira. Neste cenário, Carmen Miranda soube ocupar seu espaço e conquistar o público. Nas palavras de Gil-Montero (1989, p. 190),

 

O seu jeito de flertar, a linguagem sensual do corpo e das mãos voláteis, assim como a sua alegria tropical, nunca deixaram de encantar os espectadores. Carmen podia fasciná-los com a maneira com que se vestia, usando toaletes cada vez mais ousadas e vistosas.

 

Em 1934, segundo dados apresentados por Ruy Castro, havia 65 emissoras de rádio no país. Carmen era disputada pelas emissoras e também pelas gravadoras.[4]Um episódio curioso marcou o ingresso de Carmen Miranda na rádio Tupi, inaugurada em 1936, ilustrando o perfil de Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, no mercado midiático. De acordo com Castro (2005, p. 143), o empresário precisava de um nome para o cast da emissora e “nenhum nome tinha maior poder de fogo que o de Carmen Miranda”. A proposta foi irrecusável.

 

Carmen era da Mayrink Veiga, onde ganhava um conto e 400 mil-réis mensais – o mesmo salário de 1933. Ao saber disso, Chateaubriand resolveu encurtar a conversa. Ofereceu-lhe cinco contos de réis, e luvas que nunca foram reveladas, por quatro programas semanais de quinze minutos: às quartas e aos sábados, às 20h15 e 21h15, sob o patrocínio dos Laboratórios Oforeno e do Licor de Cacau Xavier. (CASTRO, 2005, p. 143)

 

Neste período, Carmen Miranda já havia se tornado uma celebridade no meio musical e dava efetivas demonstrações de que sua música e seu modo de cantar teriam influência decisiva no meio artístico brasileiro. A discografia produzida por Abel Cardoso Júnior (1978) é reveladora da extensão do trabalho da cantora. Ao longo de sua carreira, gravou duas músicas na Brunswick (1 disco), 150 na Victor (77 discos) e 129 na Odeon (65 discos), totalizando 281 gravações e 143 discos (CARDOSO JÚNIOR, 1978, p. 235). Além disso, é importante destacar as parcerias musicais realizadas no percurso musical de Carmen Miranda, conforme destaca o mesmo autor. Somente com Ary Barroso, foram 30 músicas gravadas. “Carmen foi acompanhada musicalmente por verdadeiros mestres: Pixinguinha, Benedicto Lacerda, Rogério Guimarães, Josué de Barros, Luperce Miranda, Laurindo de Almeida, Luiz Americano Garoto, sem falar dos ritmistas” (CARDOSO JÚNIOR, 1978, p. 236).

 

Ela eternizou os mais importantes compositores de seu tempo da música brasileira, de Lamartine Babo a Ary Barroso, de Dorival Caymmi a Pixinguinha. Gostava de tango, mas investiu na gravação de marchinhas de carnaval e sambas, que tratava de cantar à sua maneira, muitas vezes trocando a letra das músicas, acrescentando uma bossa própria, um jeito de sublinhar as palavras com seus muitos erres vibrantes.[5]

 

O modo singular de cantar construído por Carmen Miranda a tornou uma personalidade única. Nas palavras de Ruy Castro (2005, p. 111), “a combinação de turbante e plataforma, aliada à brejeirice radical, deram a Carmen o toque de absurdo, alegria e extravagância que passou a caracterizá-la”.

 

Ao mesmo tempo em que parecia frágil em sua vida amorosa e pessoal, Carmen estava fazendo uma revolução na música brasileira, tornando-a adulta, urbana, maliciosa, e estimulando os compositores a explorar esses caminhos. [...] A cantora agora era uma mulher que tomava liberdades com o ritmo, adiantando-se ou atrasando-se em relação a ele – ditando o próprio ritmo -, escandindo sílabas, dando um toque picante às letras. Enfim, tornando-se dona da canção. (CASTRO, 2005, p. 91)

 

E foi com os sons brasileiros, as caretas características e as mãos ágeis de sua performance que Carmen Miranda ficou conhecida como cantora do rádio e dos palcos, até estrelar também no cinema no Brasil e no exterior, tornando-se uma personalidade marcante de sua época.

        

Sucesso em terras norte-americanas

Carmen Miranda vivia o auge da sua carreira no Brasil, nos anos 1930, quando foi convidada em 1939 para estrear na Broadway. Sua viagem aos Estados Unidos, em uma época de estreitamento de relações entre países que se tornariam aliados na 2ª Guerra Mundial, abriu caminho para outros artistas brasileiros no exterior. Tratava-se do prenúncio da “Política da Boa Vizinhança”, do Presidente Roosevelt, em uma “campanha que predispunha o espírito do povo norte-americano a aceitar e curtir as novidades do Terceiro Mundo” (SAIA, 1984, p. 08).

Martha Gil-Montero (1989, p. 77) observa que Getúlio Vargas foi o primeiro presidente da América Latina a “compreender o valor da propaganda para criar uma imagem favorável do país e do seu governo no exterior”. Segundo a autora, o então presidente “reconhecia o valor da música popular como um produto cultural de exportação e queria ver uma parte maior do mercado mundial da música dominada pelo samba”.

As pesquisas que sustentam as biografias de Carmen Miranda indicam, em sua maioria, que o presidente Getúlio Vargas se empenhou em promover a viagem da cantora aos Estados Unidos. Há, ainda, especulações de que eles foram amantes. A jornalista Dulce Damasceno Brito (1986), no entanto, nega a influência da “política da boa vizinhança” na decisão de Carmen em seguir carreira no exterior.[6]O que interessa, contudo, é o impacto que esta viagem teve na consolidação e projeção internacional da cantora.

Ruy Castro (2005, p. 194) destaca a repercussão da ida de Carmen Miranda aos Estados Unidos, a partir da mídia, em uma autêntica campanha nacionalista promovida no contexto do Estado Novo.

 

Às vésperas da viagem, a ida de Carmen para Nova York começara a tomar, em todos os jornais e rádios, as dimensões de uma embaixada, de uma representação diplomática, quase de uma incursão de guerra. Já não eram apenas Carmen e o Bando da Lua. Era o samba, ou o próprio Brasil, de turbante e balangandãs, que ia viajar para se impor “lá fora”. A palavra “missão” era usada com a maior naturalidade pela imprensa. [...] sob um regime que lembrava um fascismo mirim, o Brasil se tornara nacionalista de papo amarelo. Por toda parte, estimulados pelo departamento de propaganda do regime, começavam a pulular os virundus, os lábaros estralados, os auriverdes pendões e toda sorte de patriotas, destinadas na verdade a colorir o projeto pessoal do ditador.

Sendo assim, caíra do céu que a maior estrela da música popular brasileira tivesse sido convidada a se apresentar no palco mais importante do mundo.

 

De acordo com Luiz Henrique Saia (1984, p. 07), Carmen Miranda “foi nossa primeira e única estrela a brilhar em Hollywood, que a comprou para difundir a imagem de um trópico exuberante, colorido, onde ela recebeu nova embalagem e o mundo inteiro pagou para vê-la”.

 

Vestindo suas baianas e usando seus trajes extravagantes, Carmen atendeu às necessidades que tem o povo norte-americano de consumir o exótico. Foi usando esse traje (que enriquecia a cada dia com pedras e frutas estilizadas), usando seu jeito especial de cantar, revirando os olhos e mexendo as mãos e dançando, que ela conquistou a glória. (SAIA, 1984, p. 11)

 

Desde que chegou aos Estados Unidos, Carmen conquistou espaço pela sua atuação musical, garantindo espetáculos na Broadway e nas emissoras de rádio. É por isso que se costuma dizer que o samba chegou na América por Carmen Miranda.[7]De acordo com Saia (1984, p. 41), “oito meses após sua chegada, uma pesquisa realizada em Nova Iorque apontava-a como a terceira personalidade mais popular da cidade”, o que revela seu rápido reconhecimento em terras estrangeiras. Também é importante destacar que a cantora “viajou por quase todo o mundo e era conhecida e reconhecida em Paris, Roma, Viena, Tóquio, Amsterdam, Havana, Buenos Aires e, em 1948, se apresentou no Teatro Palladium, em Londres, numa temporada de oito semanas sensacionais” (SAIA, 1984, p. 60-61).

Carmen vivenciou um período extremamente rico em termos de produção cinematográfica, inserindo-se rapidamente nas telas de Hollywood.Em 1940, fez sua estréia no cinema americano com o filme “Serenata Tropical”. Em pouco tempo, Carmen Miranda foi reconhecida como “deusa do cinema”. Na Fox, produtora responsável pela maior parte dos seus filmes, Carmen chegou a ostentar um salário que somou 201.458 dólares no ano de 1945. De acordo com Ruy Castro (2005, p. 406), Carmen Miranda “fora a mulher que mais ganhara dinheiro nos Estados Unidos – talvez no mundo – naquele ano. Na média, eram perto de 4200 dólares por semana”.

 

Apenas 36 pessoas nos Estados Unidos (e nenhuma mulher) tinham faturado mais do que Carmen em 1944. Isso considerando-se toda espécie de atividade: petróleo, armas, automóveis, bancos, seguros, show business, e o fato de que havia uma guerra mundial em curso, com enormes recursos sendo movimentados. (CASTRO, 2005, p. 406)

 

Ainda segundo informações apresentadas por Castro (2005, p. 448), em 1948, Carmen calculava ter faturado, desde a sua chegada aos Estados Unidos, cerca de 2 milhões de dólares, o equivalente a 60 milhões de cruzeiros. Desde 1940, a artista participou de pelo menos um filme por ano, o que garantiu uma conta bancária compatível com seu papel de estrela.

Conforme Luís Henrique Saia (1984, p. 14), Carmen Miranda:

 

Trabalhou em dezenas de shows na Broadway, restaurantes, cassinos, programas de rádio e televisão. Deixou cerca de 300 gravações aqui e 50 nos EUA, assim como suas mãos impressas na calçada do ChineseTheatre e seu nome inscrito na calçada do Hollywood Boulevard, em Los Angeles, honras só conferidas a grandes nomes.

 

No total de sua produção, além do volume de discos gravados (78rpm, com uma faixa de cada lado), foram seis filmes produzidos no Brasil (1932-1938) e quatorze nos Estados Unidos (1940-1952), sendo dez pela Fox.[8] Tratava-se de uma época em que os filmes musicais se apresentavam como principal meio de entretenimento para o povo.

Carmen, que já havia feito o comercial do cosmético Leite de Rosas no Brasil, também foi garota propaganda de importantes marcas nos Estados Unidos, como a Ford, a Kolynos, entre outras. Era personagem frequente das revistas da época, aparecendo na capa de publicações como SundayMirror, Sintonia(Argentina), Vanidades (Cuba), Filmjournalen (Suécia), entre muitas outras.

Também é possível dizer que Carmen Miranda inventou moda ao produzir seu próprio estilo. Seus turbantes, plataformas, roupas e adereços exuberantes chegaram a figurar em vitrines de importantes lojas no exterior. A inspiração tropical e o exagero de suas baianas tornaram-se marcas características da atuação da artista, que transcendeu às ruas e influenciou gerações.

 

Carmen Miranda nunca seguiu a moda. Usava o que favorecia seu visual no palco e seu tipo físico. As plataformas de 20cm e os turbantes tropicais davam-lhe um pouco mais de altura – tinha 1,52cm. Sentava à maquina de costura para criar pensando apenas nela mesma. “Se as mulheres, depois, resolvem me copiar, tudo bem. Nada tenho contra – até gosto”, dizia. Seus figurinos, pesados e estampados, entretanto, ajudaram-na a alcançar notoriedade. Carmen ditou moda.[9]

 

Com uma atuação multifacetada, que envolve a música, o cinema e os palcos, Carmen Miranda foi acolhida como uma verdadeira estrela em terras estrangeiras. Ao que parece, o Tio Sam estava mesmo querendo conhecer a nossa batucada. E se encantou com a ousadia de uma mulher que representava a cultura brasileira com seus balangandãs.

 

Entre o sucesso e as críticas

O Cruzeiro, Metrópole, Manchete, Jornal das Moças, Vida Doméstica, entre muitas outras revistas de consumo massivo estamparam a imagem de Carmen Miranda em suas capas, fortalecendo a presença da estrela no imaginário popular. No site oficial da cantora, consta que ela “foi a primeira artista multimídia do Brasil. Talentosa, não só cantava, dançava e atuava, mas sabia, intuitivamente, transitar com desenvoltura pelo que viria a se tornar a indústria cultural”. Este aspecto reforça o protagonismo de Carmen Miranda no cenário cultural.

         Na análise de Martha Gil-Montero (1989, p. 20),

 

Não se pode negar que essa mulher genial, nascida em Portugal, ajudou os brasileiros a descobrirem suas próprias músicas e danças populares, e que ela desenvolveu a sua visão pessoal, nos Estados Unidos, da política de boa vizinhança. Há muito o Brasil devia tê-la reconhecido como sua filha predileta e incentivadora principal do samba.

[...] Com boas razões, as pessoas ainda consideram Carmen o excêntrico produto de qualquer cultura latino-americana. Ela é a perfeita síntese de criatividade, graça e fantasia cinematográfica, a frívola dançarina de corpo ondulante conhecida por ter ganhado centenas de milhares de “dólares-samba” na América. É conhecida em toda a parte como a Bombshell (bomba) latino-americana, que fez a sua fortuna com bananas.

 

Simone Pereira de Sá (1997), ao analisar a imagem de “Baiana Internacional” projetada por Carmen Miranda em Hollywood, observa que a cantora contribuiu para transformar o samba em símbolo nacional e que sua atuação no exterior produziu uma alegoria condizente com origens da música brasileira. Reforça, portanto, os argumentos em torno da autenticidade da carreira de Carmen nos Estados Unidos.

No entanto, no período em que esteve fora do país, foram recorrentes as críticas aos estereótipos de brasilidade por ela construídos. Muito se falou sobre seu corpo, sua aparência, suas roupas e sua atuação. As maiores agressões vinham dos críticos de cinema e daqueles que atribuíam a Carmen um estilo caricatural. Segundo Castro (2005, p. 351),

 

A maioria dos críticos brasileiros tomou assinatura contra ela – por suas baianas fugirem da estilização original ou por fazer os americanos pensarem que as brasileiras se vestiam daquele jeito; por tentar ser engraçada ou por estar sempre irritada; por trocar o samba pela rumba ou por reduzir a música brasileira aos sambas “negroides”. Isso, no caso das críticas minimamente articuladas – porque, de modo geral, Carmen era atacada por ter se tornado americana demais, brasileira demais, latino-americana demais, ou todas as opções anteriores, mesmo que uma contradissesse as outras.

 

Um episódio marcante, relembrado em boa parte de sua biografia, refere-se a um espetáculo realizado no Cassino da Urca, quando Carmen veio ao Brasil após uma longa temporada nos Estados Unidos. No repertório, ela incluiu músicas em inglês e foi tratada com frieza e até vaias pelo público. Este evento causou profunda mágoa na cantora, que respondeu com música às críticas desfavoráveis que a caracterizavam como “falsa baiana” e “produto de exportação”. O samba “Disseram que voltei americanizada”, de Luiz Peixoto e Vicente Paiva, gravado com acompanhamento do Conjunto “Odeon”, dá o tom da relação de Carmen com o Brasil:

 

“E disseram que eu voltei americanizada

Com o “burro” do dinheiro, que estou muito rica

Que não suporto mais o breque de um pandeiro

E fico arrepiada ouvindo uma cuíca.

[...] Eu que nasci com samba e vivo no sereno

Topando a noite inteira a velha batucada

Nas rodas de malandro, minhas preferidas

Eu digo é mesmo “eu te amo” e nunca “I love you”

Enquanto houver Brasil... na hora das comidas

Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu!”

(CARDOSO JÚNIOR, 1978, p. 462)

 

O pertencimento ao Brasil e o sentimento nacionalista, evidenciados nas músicas de Carmen Miranda, estão presentes em toda trajetória da artista. Inclusive, mesmo após seu casamento com David Sebastian, ela nunca se naturalizou, tendo vivido 16 anos como imigrante nos Estados Unidos. Quando questionada sobre sua nacionalidade portuguesa, Carmen reforçava a influência cultural do Brasil na sua formação, conforme relata Dulce Damasceno de Brito, que conviveu com a cantora entre os anos de 1952 a 55. Em O ABC de Carmen Miranda, obra que reúne relatos de Carmen sobre temas diversos, ela destaca sua identidade de brasileira:

 

Nasci em Portugal, mas me criei no Brasil e, portanto, considero-me brasileira. O local do nascimento não importa, nem sequer o sangue. O que importa é o que os americanos chamam de “enviroment”, a influência do país e dos costumes em que vivemos, se bem que sempre existe um grau de gratidão e fidelidade aos pais que nos geraram. Da minha parte, sou mais carioca, mais sambista de favela, mais carnavalesca do que cantora de fados.  O sangue tem uma certa importância, mas só no temperamento, não na maneira de sentir as coisas. (BRITO, 1986, p. 69)

 

Foi a partir desta vinculação com a cultura nacional que Carmen se tornou o símbolo maior do Brasil para brasileiros e estrangeiros. Hoje, não há dúvidas sobre sua importância na consolidação e na projeção da música popular. Se Carmen se tornou um produto de exportação, isso não apaga sua autenticidade, como sugere trecho da música “Diz que tem”: “eu sou brasileira, meu it revela que minha bandeira é verde-amarela” (CARDOSO JÚNIOR, 1978, p. 161).

 

Saindo de cena, sem discrição

Uma das personagens mais conhecidas, adoradas e imitadas ao longo de gerações teve uma vida que não foi apenas de sucessos, realizações e glamour. As exigências de sua carreira conduziram ao consumo de um coquetel de comprimidos para dormir, acordar e entrar em cena que revelava o desgaste físico e psicológico de Carmen Miranda. Depressiva, chegou inclusive a realizar tratamento a base de choques elétricos.

Aos 39 anos, com o organismo fragilizado com medicamentos- anfetaminas e barbitúricos –, álcool e trabalho incessante, Carmen se afastou do sonho da maternidade ao ter um aborto espontâneo após uma de suas apresentações, entrando em uma crise profunda.

Com uma trajetória marcada por incontáveis espetáculos e gravações, Carmen foi mostrando sinais de exaustão. No dia 5 de agosto de 1955, morre em sua casa em Beverly Hills, Los Angeles, aos 46 anos, de um colapso cardíaco, após filmar com Jimmy Durante um programa para a televisão.[10]

         Décadas depois de sua morte, evidencia-se um processo de redescoberta de Carmen Miranda. Alguns marcos reforçam a influência da cantora para além de sua época. O relançamento do filme “The Gang’s all Here”, em 1972, fez ressurgir a participação de Carmen no cinema. A nostalgia em torno de alguns elementos do brasileirismo da cantora inspirou o movimento tropicalista, sobretudo as músicas de Caetano Veloso. A homenagem da escola de samba Império Serrano a Carmen Miranda, em 1972, bem como o espetáculo “A Pequena Notável”, encenado por Marília Pera, deram demonstrações da relevância da cantora para a cultura brasileira.

         Outra referência póstuma à artista é a inauguração, em 1976, do Museu Carmen Miranda, que dispõe de 2861 peças.[11] A criação do museu foi proposta 20 anos antes, com a Lei nº 886, do prefeito Negrão de Lima, “para guarda, conservação e exposição do acervo da artista, doado pelo marido, e constante de sapatos, roupas, jóias e troféus” (CARDOSO JÚNIOR, 1978, p. 30).

         Quase 90 anos depois da primeira gravação de Carmen Miranda, é praticamente consensual a constatação de que ela foi uma das principais personalidades do século XX, sendo reconhecida ao longo de várias gerações. Sua criatividade, ousadia e vanguardismo a colocam, sem exagero, como um verdadeiro símbolo do nosso brasilianismo.

         Dizem que, na lápide de Carmen, está escrito: “Taí, eu fiz tudo para o Brasil gostar de mim”. Tanto fez que, mesmo de forma controvertida e sendo alvo de constantes críticas, o Brasil a reconhece como responsável pela descoberta e popularização do samba, bem como pela difusão da cultura brasileira para além das fronteiras nacionais. Com seus ritmos, adereços e badulaques, pode-se dizer que Carmen Miranda imprimiu sua marca na nossa música e ajudou a construir a nossa identidade cultural.



[1] Destacamos a seguir as principais produções realizadas sobre a vida e a obra de Carmen Miranda, muitas delas pouco acessíveis. Em 1997, Simone Pereira de Sá defendeu a tese de doutorado intitulada "O Brasil de Carmen Miranda e as Lentes de Holywood", sob orientação de Heloísa Buarque de Holanda, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1998, Ana Rita Mendonça desenvolveu pesquisa de mestrado intitulada “Carmen Miranda foi a Washington”, na mesma Universidade. A dissertação foi publicada em livro pela Editora Record em 1999. Entre as biografias, destacam-se os livros de Ruy Castro, “Carmen, uma biografia” (2005), de Martha Gil-Monteiro, “Carmen Miranda, a pequena notável” (1989) e de Luiz Henrique Saia (1984), além da discografia de Abel Cardoso Júnior, “Carmen Miranda: a cantora do Brasil” (1987), entre outros trabalhos.

[2] Apelido criado pelo radialista César Ladeira, da rádio Mayrink Veiga (BRITO, 1986, p. 103).

[3] Apelido concedido pela imprensa nova-iorquina que, na gíria americana, significa “explosão” ou “grande surpresa” (BRITO, 1986, p. 103)

[4] Após gravar dezenas de discos pela Victor, em meio a certas tensões, Carmen Miranda mudou para a Odeon em 1935.

[5] Disponível no site oficial Carmen Miranda: http://www.carmenmiranda.com.br/.

[6] De acordo com Brito (1986, p. 104), “[...] disseram e dizem até hoje que Carmen Miranda foi para os Estados Unidos porque existia uma política de Boa Vizinhança entre o presidente Roosevelt e Getúlio Vargas, inclusive que a pequena notável fora patrocinada por este último para representar o Brasil na Feira Mundial de Nova Iorque porque era sua amante. Não é verdade. Carmen foi de navio, com passagem paga pelo empresário Lee Shubert”. A mesma autora, contudo, reforça os boatos em torno do envolvimento afetivo entre o presidente Vargas e a cantora.

[7] “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, em 1943, foi a música que consagrou a carreira de Carmen Miranda fora do Brasil.

[8]Luiz Henrique Saia (1984, p. 27), referindo-se à produção cinematográfica nacional, lembra que, “embora 1932, 33 e 34 tenham sido anos de grande euforia carnavalesca e de êxitos marcantes no cancioneiro popular, a crise econômica e política que abateu sobre o mundo refletiu-se aqui, nos custos de produção dos filmes, pois com a alta do dólar, o material importado passou a preços não compensadores. Por isso, em 1934, nenhum filme de longa-metragem foi produzido no país”.

[9] Disponível no site oficial Carmen Miranda: http://www.carmenmiranda.com.br/

[10]Seu corpo chega no Brasil sete dias depois e é velado na Câmara de Vereadores do Rio, por onde passaram mais de 60 mil pessoas. O sepultamento ocorreu no dia 13 de agosto e foi acompanhado com comoção popular por milhares de brasileiros.

[11] O Museu Carmen Miranda está situado na Av. Rui Barbosa, n. 560, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro.


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