Candido Portinari
Portinari: traços sociais do Brasil para além das belas cores
Ingrid Gomes (Universidade Metodista de São Paulo)
“Na tela, e gigantescos murais, foi o primeiro a colorir nossos problemas sociais” (FURTADO & PEREIRA, 1968, apud CALLADO, 2003, p.139). Esse trecho é composição do samba-enredo “Candido Portinari”, de Ailton Furtado e Mário Pereira desenvolvido para o desfile de carnaval de 1968, da escola de Samba Império da Tijuca. As marcas sociais eram cores certas nos murais, quadros, retratos e telas do artista.
Candido Portinari nasceu em 29 de dezembro de 1903, na cidade de Brodowski, na região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Sua família veio da Itália em decorrência do período de guerras na Europa.
Desde sua infância simples na fazenda e no pacato povoado da cidade o garoto se aproximava da arte e do desenho. Retratava a banda da cidade, Carlos Gomes, em que seu pai tocava. Retratava o circo, as relações sociais, as mulheres, as crenças do seu imaginário, sua família, as crianças e sua avó, em que tinha um especial carinho. Mais tarde, já jovem e com experiência na pintura de murais, pinta a capela para sua nonna, Maria Torquato, trocando os rostos dos santos pelos rostos dos familiares.
Desenvolve a ideia dessa capela em razão da sua avó já não mais ter saúde para frequentar a Igreja da cidade, assim a família faz uma capela simples na casa e Portinari cuida dos santos e pinturas religiosas. Tinha respeito singular pela avó, perguntado sobre pintar nu ele responde: “Só pintei nus em aula de desenho. Que é que minha avó ia dizer se eu aparecesse em casa com um quadro de mulher nua?”. (apud CALLADO, 2003, p.30).
Desde pequeno também, Portinari recebe influência religiosa do catolicismo, em 1956 passa para a tela a figura do diabo (próximo do lobisomem da crença popular brasileira), que perpetua em sua memória de criança. Ele afirma que tinha um medo danado do diabo. (CALLADO, 2003, p.24-5).
Da sua travessia no interior paulista, Portinari e seus familiares reconhecem que seu talento e habilidades são promissoras, e, assim seus pais incentivam o jovem artista para a busca do seu sonho: se expressar pela arte. Segue à estrada rumo ao Rio de Janeiro.
Da coragem do jovem que queria ser pintor, levava em sua bagagem aos 15 anos para o Rio atitude desprendida ao novo, vontade em conhecer e estudar pintura, e uma história da sua terra, dos cafezais, dos trabalhadores, dos retirantes, do afeto, da família e da criança que ia com ele, nas brincadeiras que o eternizaram, na inocência que formara as verdades e na sua habilidade de simplesmente ser artista.
O jovem Portinari emanava vontade de aprender, contudo tinha personalidade singular diante as aulas, nos estudos de arte, assim como liberdades de consciência seguradas pelos seus atos.
A primeira vez que eu ouvi falar mal de Deus foi quando eu já estava aqui no Rio, na Escola de Belas-Artes. Foi o Manuel Faria que eu ouvi zombar de Deus. Passei meses sem chegar perto dele. Eu não disse nada, não briguei com ele mas evitava a todo custo a sua companhia. Até hoje não gosto de ouvir falar mal da religião como não gosto de anedota pornográfica. (apud CALLADO, 2003, p.122).
Para estudar na Escola Nacional de Belas Artes e continuar na missão de ser pintor, seus rendimentos davam para dormir no banheiro da pensão, e depois no corredor, onde o deixou para Paris.
Morei, então, num banheiro da rua Marquesa dos Santos n°23. Era uma pensão e o meio mais barato que eu encontrei de morar lá foi dormir no banheiro da casa. A coisa tinha seus inconvenientes. Eu precisava me levantar antes dos hóspedes. Um belo dia a caixa-d’água arrebentou e eu acordei debaixo da tormenta. A dona da pensão resolveu então me dar um quarto de verdade. Isolou um pedaço do corredor ao pé da janela, e ali colocou uma cama para mim. Só larguei esta cama em 1928, para ir para Paris como prêmio de viagem e para de lá ir visitar a Itália, a Espanha, a Inglaterra. (CALLADO, 2003, p.55).
Seu primeiro quadro de composição como produto de arte para venda, aconteceu na sua estadia na cidade carioca, com dezessete anos, intitulou o quadro de Baile na roça. Na arte tinha negros, mulatos, italianos, em companhia da alegria e da dança. “Era quadro de uns dois metros por dois e foi vendido por duzentos mil-réis a um sr. Krauser, dono de uma casa de câmbio.” (CALLADO, 2003, p.55).
O valor era uma fortuna para o jovem pintor que vivia com o mínimo e que “[...] comia uma vez ao dia”. (CALLADO, 2003, p.56). Na conversa sobre as refeições e restaurantes frequentados na época, Portinari descreve: “Havia um outro restaurante, bem melhor, na rua Chile. Ali eu ia às vezes com Aporelly, o futuro Barão de Itararé, que me dizia: ‘Eu vou conversar com o caixa. Se ele rir da conversa você pode entrar que a boia está garantida’”. (apud CALLADO, 2003, p.56).
Dessas relações sociais e do estudo, desenvolveu comprometimento sério com o desenho e a arte clássica, sendo um artista que não trazia para suas obras as improvisações e facilidades. Seus toques, inicialmente mais híbridos, foram alicerçando seu perfil como modernista. (CALLADO, 2003, p.57).
Indagado sobre aproximações abstratas em algumas artes, o artista é pontual: “Arte abstrata – diz ele – é como a gente pedir a um engenheiro uma ponte para atravessar um rio e receber uma página cheia de número e cálculos. A gente quer é a ponte!” (apud CALLADO, 2003, p.57).
No ano de 1928, conquistou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro da Exposição Geral de Belas Artes, de expressiva tradição acadêmica da época.
Dos dois anos que passou em Paris, com a bolsa de estudos, aproveitou a estadia para a pesquisa e vivência no mundo das artes, atividades que eram limitadas em terra brasileira. Passava período no Louvre e outro no Luxemburgo, depois discutia sobre arte, novamente, com os amigos pintores nos cafés e no jantar. (CALLADO, 2003, p.73).
Teve seu momento auge em Madri: “Quando vi os Ticianos do Museu do Prado fiquei com vontade de ir para a porta da rua e gritar: ‘Vocês já viram?’”. (apud CALLADO, 2003, p.62).
Em Paris conheceu a jovem uruguaia Maria, carinhosamente chamada de “Chico” e retornou de lá casado. Foi na mesma França que seus olhos focaram nas características próximas as verdades do nosso país, dentre elas a marca do humilde, do trabalhador incessante e das origens da terra rocha do interior paulista, que trazia na sua bagagem memória de retirantes do Nordeste a procura de tão pouco, às vezes sobreviver.
De Paris para o Brasil, suas expressões como artista foram concretizadas em arte, da consciência libertadora do período francês, para as telas e murais em brancos desesperados pelos pincéis do pintor emergente.
Depois de cinco anos de ter retornado de Paris, Portinari obteve seu reconhecimento no exterior com a segunda menção honrosa na exposição internacional do Carnegie Institute de Pittsburgh, Estados Unidos. O prêmio foi a obra Café que retratava a colheita do grão comum no interior paulista. (CALLADO, 2003, p.79).
A inclinação muralista de Portinari revelou-se com vigor nos painéis executados no Monumento Rodoviário da estrada Rio de Janeiro – São Paulo, em 1936, e nos afrescos do novo edifício do Ministério da Educação e Saúde, realizados entre 1936 e 1944. Estes trabalhos, como conjunto e concepção artística, representam um marco na evolução da arte de Portinari, afirmando a opção pela temática social, que foi o fio condutor de toda a sua obra a partir de então. (MUSEU CASA PORTINARI, 2016, on-line)[1].
Retratava o Brasil como ele via, como o país era. Desenhava, pintava, coloria o expresso brasileiro para além dos tradicionais traços das representações de minorias. E obteve embates interessantes. Sobre o estranhamento de Freyre da pintura do Jesus louro (na obra Menino Jesus de Batatais de 1952), Portinari explica: “[...] Acontece que eu estou mais de acordo com Gilberto Freyre do que ele mesmo, que vive a dizer que no Brasil há de todas as raças e que ainda estamos em caldeação. Então deve haver gente loura também. Precisamos não sair à frente do resultado.” (apud CALLADO, 2003, p.100).
Na trajetória pintando arte, sua obra: Retirantes, de 1944, identifica a família de migrantes descarnecidos, com os ossos à mostra, outro que impressiona da mesma série Retirantes é Menino Morto. Outras obras marcantes com códigos de expressivo significado social: dos imigrantes em Despejados (1934); da realidade de Tiradentes (1948-1949); da cultura escrava do Descobrimento do Brasil (1954-1955); do retrato visceral de Cabeça de Índio (1938); da tristeza do Enterro na rede (1954); dos traços de conformidade em Menino com carneiro (1953); da sutileza na anatomia em Gado (1938); da geometria alegre do Menino (1950); do interior intimista em Praça de Brodowski (1956); da piedade do Senhor Bom Jesus da Cana Verde (1952); do talento no retrato de Carlos Gomes (1914); na dimensão cósmica do São Francisco (1944); da versão religiosa do São José com Menino Jesus e Criança (1956); do afeto sincero no retrato da Nonna de Jardinópolis (1956); do traço puro em Garimpeiros (1954); da simplicidade do Brasil em Palaninho (1930); da perfeição na figura dos Lenhadores (1937-1938) e do rude em Bandeirantes (1956). Outra obra, agora dupla, no edifício das Nações Unidas, consagra sua arte nas paredes de Paz (1955) e Guerra (1953). (CALLADO, 2003).
Dos muitos prêmios de sua carreira foi reconhecido em 1955 com a medalha de ouro como melhor pintor do ano, pelo Internacional Fine-Arts Council de Nova York.
Para além da expressão artista primeira, Portinari também escrevia poemas, sobre o cotidiano, animais domésticos, sentimentos, emoções e outros temas. Foi também político, entrou oficialmente em duas campanhas.
Callado explica que, assim como Graciliano Ramos, Portinari foi levado ao Partido Comunista mais pelo seu desejo de justiça social que pela aproximação partidária. Candidatou-se a deputado e, depois, senador. Como deputado sua candidatura recebeu poucos votos, mas como senador, em 1946-47, filiado ao Partido Comunista e ao Partido Social Progressista, foi por pouco que não se elegeu. (2003, p.102).
Além dessa passagem pela política partidária, em 1936 ensinou na Universidade do Distrito Federal, a convite, como professor de pintura.
Em decorrência da sua trajetória pelo Partido Comunista, foi exiliado no Uruguai em 1948, onde realizou expressivos murais para o Brasil e estreitou os laços com estudantes de arte na Universidade local, em palestras e outras atividades.
Portinari descreve a importância dos incentivos, auxílios e bolsas de estudo para a fluência da consciência artística. Inquietando de forma profética que a arte captura o estável no mundo veloz e transitório que se apresenta: “[...] estimular a arte para que ela não definhe num mundo em transição, num mundo perturbado e que precisa mais dela do que nunca, pois só ela lhe fala do estável”. (apud CALLADO, 2003, p.74-5).
Mesmo depois de alguns anos e das relações políticas com o Partido Comunista terem cessado, o artista foi impedido de participar da inauguração dos seus painéis das Nações Unidas, a Paz e a Guerra, nos Estados Unidos em 1957.
Candinho foi suavemente abordado pelo departamento Cultural da embaixada americana. Estavam prontos a conceder-lhe o visto, mas tinham uma pequena condição: declarar o pintor que não mais pertencia ao Partido Comunista. Portinari – a quem, aliás, nesse mesmo ano eram concedidos dois prêmios nos Estados Unidos, o Guggenheim e o Hallmark Art Award – nem respondeu à embaixada. Deixou que os quadros se inaugurassem sozinhos. (CALLADO, 2003, p.140).
O pintor, político e poeta Candido Portinari representa no País marca cultural para o universo das artes, trajetória ética no processo político e alegria de gente grande na escrita com seus poemas. Para o mundo das artes no exterior é símbolo de originalidade na pintura e legitimidade de poucos na macro área das artes visuais. Em Brodowski é sinônimo de inspiração e referência, especialmente na criançada.
Próximo ao seu falecimento, em 1962, devido a problemas de saúde por intoxicação de tintas, Portinari pinta sua neta, Denise, filha do seu único herdeiro, João Candido. Denise foi musa e inspiração, como foi outrora João. (CALLADO, 2003, p.169).
João Candido Portinari, ativo no movimento artístico do pai, reúne seus trabalhos numa obra física, na residência de Brodowski, o Museu Portinari[2].
Do artista que impressionava ao trazer à vida os quilômetros e a peregrinação nos pés de muitos retirantes, agricultores e camponeses do interior de São Paulo, promovia a cultura da arte do cotidiano, da arte do todo dia, da arte que expressa vida e é vida, da arte que chora, que movimenta, que não cessa na fotografia, da arte que repudia a injustiça social, da arte que alegra o mural pela criança verdadeira, da arte que mata a morte em uma cerimônia simples e significante, da arte que enobrece o retratado na sua essência que é vida. Gratidão Portinari, pela arte, pela vida.
Material de Consulta:
CALLADO, Antonio. Retrato de Portinari. 3 ed. rev. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
MUSEU CASA DE PORTINARI, disponível em: www.museucasadeportinari.org.br. 2016.