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Amácio Mazzaropi

por Tiago Gonçalves

Amácio Mazzaropi (1912-1981): o palhaço caipira da telona

Após uma rápida troca de olhares com o tecladista de sua banda, o popular Cebolinha, Mazzaropi tem a certeza que o show estava prestes a terminar. Para o desfecho da apresentação, alimentava o hábito de contagiar a plateia dos circos de grandes pompas, e também dos tomara-que-não-chova, com a canção humorística Sanfona da Veia. Basta o Respeitável Leitor apurar bem os ouvidos para ainda escutar os espectadores em delírio entoar aquele refrão-chiclete: “Nhec, nhec, Nhec... A velha é um fracasso! Nhec, nhec, nhec... ela não sai desse pedaço”. A interpretação arrastada desse humorista de muitos predicados, que já se tornara há um bom tempo ícone do cinema nacional, era acompanhada por uma ‘dancinha’ extravagante. Nesse dia, não. Mazzaropi se conteve. Estava muito debilitado.

Apesar de não crer que A Morte o visitaria quatro meses depois, aquele show no Circo Pop, realizado em fevereiro de 1981, em Leme (SP), foi o último da carreira de Mazzaropi. Para afastar as marcas do câncer na medula que o aterrorizava há alguns anos, o comediante abusou da maquiagem, principalmente para esconder as olheiras e algumas manchas que nasceram no rosto por conta da doença, e, durante os últimos meses de vida, passou a chegar aos circos poucos minutos antes das apresentações. Mazza, como era tratado pelos amigos e fãs de carteirinha, tinha o pavor que a plateia descobrisse a enfermidade.

Naquele show, algo aconteceu de diferente. Após se despedir da plateia, Mazzaropi se encontrou nos bastidores com um garotinho. O menino, zombeteiro como ele só, interpelou o artista com um pedido bastante delicado. Por sinal, o mesmo tão pronunciado e cobiçado por inúmeros fãs ao longo da carreira profícua do comediante. “Seu Mazza, o senhor poderia me dar o seu chapéu?”, disparou o molecote. Tratava-se de uma relíquia do ator, feita em palhinha, usada em shows e em alguns filmes. O já repetido ‘não posso’ de Mazza, resposta de praxe escolhida para não magoar os fãs eufóricos, converteu-se naquela noite no Circo Pop em um singelo, único e sonoro “sim”. O garotinho saiu em trotes feliz da vida com o troféu, exibindo-o ruidosamente aos coleguinhas. Em compensação, Mazzaropi manteve-se em sepulcral e suspenso silêncio.

Da mesma forma, há 69 anos, um motorista de carro de aluguel também tinha saboreado silêncio parecido ao esperar com demasiada ansiedade a chegada do primogênito, que nascia no quarto ao lado. Além da profissão nos automóveis, o italiano Bernardo Mazzaropi tentava aumentar os rendimentos da família ao percorrer o interior de São Paulo para negociar tecidos de casimira. Enquanto isso, mergulhada em um casamento feliz, a empregada doméstica Clara Ferreira, descendente de portugueses, cuidava com bastante zelo e responsabilidade do lar da família: uma casa simples localizada na Rua Victorino Carmillo, número 5, no bairro Santa Cecília, em São Paulo.

Apesar de bastante debilitada pelo tempo, aquela casa serviu de primeiro berço ao “Monstro do Humorismo”, ao “Bernard Shaw do Tucuruvi” e ao “Rei do Cinema Nacional”, algumas das muitas alcunhas conquistadas pelo cineasta caipira ao longo da trajetória artística. O chorinho fino cortou o silêncio daquela moradia e da apreensão de Bernardo e Clara em 9 de abril de 1912. Na pia batismal da Igreja de Santa Cecília, abrigada no mesmo bairro, o garoto recebeu o nome de Amácio Mazzaropi. A cerimônia, realizada um mês e dois dias após o nascimento do menino, foi conduzida pelo vigário Affonso Chiaradias, sob os olhos atentos dos pais e dos padrinhos Bento Aguiar de Souza e Izolina Maria Joaquina.

A infância do pequeno Amácio, em São Paulo, teve os dias contados. Aturdido pela crise financeira que bateu à porta do lar Mazzaropi, Bernardo não pensou duas vezes. Mudou-se com a família para Taubaté, no interior do estado. Em 1914, após algumas tentativas de trabalho, o rapaz conseguiu uma oportunidade como operador têxtil na Companhia Taubaté Industrial (CTI). No início, Clara se desdobrava entre os afazeres de casa e os cuidados com o filho. A tarefa monótona do lar não durou por muito tempo. Na cola do marido, tornou-se tecelã da CTI. Para desempenhar tal papel com mais tranquilidade, Clara levou o pequeno Amácio para morar com os avôs maternos, que na época viviam na pacata Tremembé, nas proximidades.

Inevitável: os dias ao lado do avô português, o popular João José Ferreira, foram decisivos na vida de Mazzaropi. Afinal, além de exímio tocador de viola, o velho se destacava como um bom dançarino de cana-verde e se tornara o animador oficial das festas populares das redondezas. O ‘Português’, como era conhecido, exercia tamanho fascínio nos netos Amácio e Vitorino, que passaram a acompanhá-lo por todos os cantos. Inclusive, claro, em uma apresentação durante a inauguração, em 1918, da Estação da Central do Brasil, em Tremembé. Querendo ou não, o avô se transformou na primeira inspiração artística de Mazzaropi, a responsável por florescer aos olhos daquele menino tímido a essência do caipira brasileiro e o uso do bom humor como eficaz ferramenta para contagiar as pessoas e combater as mazelas da vida.

Aos sete anos, Amácio recebeu uma notícia inesperada. O pai, o inquieto Bernardo, desejava retornar com a família para São Paulo. Não foi nada fácil para o garoto abandonar a pacata Tremembé e o colo dos avôs maternos. Não teve escolha: foi-se. Dessa vez, a família fixou residência nas proximidades do Largo São José do Belém, na zona leste da capital paulista. Nessa época, Amácio deu os primeiros passos na vida escolar, sendo matriculado no Grupo Escolar do Largo São José do Belém. Detalhe: só deixou o colégio no quarto ano, após receber com bastante entusiasmo o primeiro diploma da vida. Dos professores, Mazzaropi só ganhou louros de elogios por ter sido um ótimo aluno.

O conceito ‘A’ no colégio não estava estritamente ligado apenas às boas notas. Havia outro elemento envolvido no caso de fascínio. Tal como o avô, Amácio se tornou os centros das atenções das festinhas da escola. Em pouco tempo, foi eleito o ‘declamador-mor’ do colégio. Bastava alguém lhe entregar uma poesia para aqueles versos se transformarem em encanto e emoção diante da plateia estudantil. Não parou mais. Ao contrário dos coleguinhas, que temiam as apresentações públicas, Mazzaropi se deliciava. Não por acaso, elegeu na época o palco como seu fiel amigo, o responsável por colocar todos ao redor sob os domínios de sua expressividade de pequeno artista.

Ainda na infância, Amácio teve o primeiro contato com a morte. Em 1922, o avô português faleceu. A notícia, aliada a novos problemas financeiros, conduziu a família Mazzaropi novamente ao interior. Em Taubaté, além do novo ingresso à CTI, Clara e Bernardo abriram um botequim na casa da família, localizada na Rua América, nas proximidades da fábrica. Para tanto, passaram a cultivar uma horta, ao lado de uma frondosa parreira, que supria as principais necessidades das iguarias preparadas para a clientela. Não tinha folga: os próprios integrantes da família se revezavam no atendimento aos clientes. Além disso, o pequeno Amácio tinha a incumbência de vender, na porta da CTI, os deliciosos pães preparados pela mãe.

         Trabalho não faltava no botequim. Mesmo assim, Clara e Bernardo seguraram as pontas com intuito de fazer o filho retornar aos estudos. Voltou. Matriculou-se no Ginásio Washington Luís. O talento artístico também o acompanhou, feito sombra em dias de sol escaldante. Só que, ao contrário da declamação, Amácio se sentiu instigado a povoar outras vertentes das artes: a representação. Fascinado por um grupo de teatro amador que conheceu na época, o garoto passou a sonhar com as ribaltas acesas. Muitos anos depois, em conversa com amigos íntimos, o multiartista confessou que a sensibilidade artística da infância, que o afastaria dos colegas ávidos por futebol, o renderiam a exclusão dos grupinhos dos homens e o apelido de ‘maricas’.

         Amácio não se abateu. Feito estrela cadente, um livro caiu em seu colo. Tratava-se de Lira Teatral, obra importante da época, composta por monólogos, cenas cômicas, cançonetas napolitanas e poesias assinados por respeitáveis autores sob a organização de José Vieira Pontes. Mazzaropi devorou o livro, por diversas vezes, de cabo a rabo. Nos momentos de solidão, brincava de estudar as cenas e arriscar a interpretá-las. Um monólogo, por sinal, o fisgou definitivamente: Ó Chico!, de Pedro Augusto, que narrava as peripécias de um tipo roceiro em meio à cidade grande. Por sinal, tal temática se transformou futuramente em matéria-prima de boa parte dos filmes do comediante. A fim de apaziguar a curiosidade do Respeitável Leitor, seguem as duas primeiras estrofes:

Vânces não viram ele!
Não viram que danado!
Tenho corrido séca e méca
Neste mundão de cidade
E vou ficando amolado
Porque, enfim, não sou peteca.

 

Nós viemos lá da roça
Desembarcamo dos trem...
Com os povaréo da estação
Quando olhei, não vi ninguém
O Chico se perdeu de mim
Se confundiu na confusão...

Certa vez, enquanto encarnava a figura do típico jeca ao interpretar Ó Chico!, o pequeno Amácio foi surpreendido pela presença de Manoel de Campos, um amigo da família, que o espiou quando passava pela casa. No mesmo instante, o homem, que enxergou graciosidade naquele quadro bucólico, reconheceu o precoce talento do menino. Algum tempo depois, durante uma festa do grêmio dramático da cidade, Mazzaropi foi convidado a apresentar a cena.  A estreia se deu com o pé direito. Conquistou a plateia sedenta por graça e humor. Desde então, teve livre acesso ao espaço dedicado às artes do grêmio e, sempre que podia, aparecia com os trajes espalhafatosos de caipira. Aliás, vem dessa época uma característica presente em toda a trajetória do artista: o tino para a improvisação. Aos poucos, o pequeno artista passou a não se prender tanto aos textos. Ousava. Entre um verso e outro, fazia questão de inventar uma coisinha ou outra. A plateia do grêmio caiu em encanto.

         Ao perceberem o frenesi do garoto pela arte teatral, Clara e Bernardo resolveram colocar um freio naquele sonho. Afinal, não queriam ter um filho artista de ribaltas. Tal profissão era sinônimo de vadiagem e vagabundagem. Na,na,ni,na,não...! A fim de ludibriar Amácio, o pai teve uma ideia: matricular o filho em uma escola de pintura. “Se quisesse ser artista, poderia ser pintor”, pensou o velho. Mazzaropi tomou gosto pela novidade. Tanto que chegou a pintar alguns quadros de belas paisagens. Por sinal, tal habilidade o acompanharia até os sets de filmagens. Em muitos deles, Mazzaropi foi o responsável por também desenhar e pintar os cenários das películas.

         O incômodo de Bernardo não chegou ao fim com a entrada de Amácio no universo dos pincéis. Vira e mexe, quando se via em busca do garoto por algum motivo, Mazzaropi tinha um endereço certo: o Largo Santa Cruz, nas proximidades de casa. A razão? Simples: o local servia de abrigo para trupes circenses que passavam pela região. Os olhos de Amácio brilhavam a cada nova lona multicolorida erguida entre mastros. Bernardo não concordava com tal aproximação do garoto. Foi radical: embarcou o filho numa viagem até Curitiba para trabalhar e viver com o avô paterno, o velho Amazzio. A estada no Paraná não durou muito. Três meses depois do embarque, Mazzaropi já estava de volta.

O circo

         Algum tempo depois do retorno de Mazzaropi a Taubaté, um cirquinho mambembe aterrissou na cidade. Chamava-se Circo La Paz. Quem estava à frente do negócio era a heroica Dona Rosa, que saboreava dias de lamentação diante da crise em seu teatro de lona com ribalta improvisada. Ao se aproximar devagarinho, e tão logo perceber as dificuldades do cirquinho, Mazzaropi se prontificou a ajudá-la no que precisasse. Foi então que Dona Rosa revelou que os dias de glória do La Paz tinham ficado no instante quando, atraído por picadeiros maiores e luxuosos, os artistas a abandonaram sem dó ou piedade.

         Amácio foi falar com os pais sobre a situação. Dito e feito: fogo cruzado. Os velhos quase morreram de tanta indignação. Não admitiriam que o filho se tornasse um palhaço qualquer de circo. Pela primeira vez, Mazzaropi bateu o pé. Deu de ombros e foi ao encontro da paixão. Ainda tinha o teatro como foco na carreira, mas, quando em uma manhã o La Paz levantou poeira de Taubaté, pensou com seus botões: “Circo também serve”. Foi-se com Dona Rosa em busca de um destino bastante promissor. De lá até a morte, Mazzaropi jamais se afastaria das lonas circenses. Além de um espaço para refrescar as memórias de antigamente, utilizava-se do picadeiro como laboratório para a confecção e testes das piadas envolventes das películas.

         A vida nômade de circense não era nada fácil. Havia momento algodão-doce, havia instante de pimenta-malagueta. Logo depois da partida de Taubaté, Mazzaropi passou por um dissabor daqueles. Em Aparecida (SP), tudo estava prontinho para um espetáculo perfeito. Naquela noite, as cadeiras e as arquibancadas estavam repletas. De um canto estratégico, Dona Rosa apreciava a lotação com bastante entusiasmo. A velha circense só não esperava que o temporal que vinha logo lá no horizonte desabaria antes do espetáculo. São Pedro foi impiedoso: mandou um aguaceiro só. Bastaram a primeira rajada forte do vento e os pingos fortes para a plateia sair em retirada da lona. O circo ficou às moscas.

         Nos bastidores, os artistas tentaram controlar o pânico ao utilizar o bom humor. Nem essa artimanha foi capaz de apaziguar o aguaceiro que invadiu todo o Circo La Paz. Tendas foram lançadas aos ares, lonas rasgadas e artistas ficaram ensopados. Mazzaropi escapou da tormenta, uma vez que, mesmo após o terceiro sinal do início do espetáculo, continuou no camarim improvisado em uma barraca. Contudo, ao perceber a água em estúpida euforia, resolveu empilhar malas e mais malas na tentativa de sustentar os lados que pediam ou fraquejavam. As idas e voltas em busca das bagagens foram exaustivas. Mazzaropi se salvou, mas ganhou um mau jeito no pescoço. Durante dois meses, foi alvo de piadas.

         Após a reconstrução das lonas e das barracas, o Circo La Paz continuou em temporada. As dificuldades aumentavam a cada nova cidade visitada. Em compensação, em Passa Quatro, no interior de Minas Gerais, Mazzaropi fez sucesso com a plateia. Após o espetáculo, recebeu uma visita inusitada enquanto estava no camarim desfazendo-se da caracterização. O advogado Francisco de Alexandro, um admirador, o instigou: “Deixa disso, rapaz! O circo não dá futuro para você. Na mocidade, é preciso lançar os olhos para cima, procurando sempre subir. Procure, no Rio ou São Paulo, uma companhia melhor. Você está perdendo tempo no picadeiro, que é lugar de palhaço”.

         Aquele bate-papo fez Mazzaropi refletir. Influenciado pelas novas tempestades de dificuldades do Circo La Paz, pela saudade da família e pelas palavras do admirador, Mazzaropi resolveu abandonar a trupe de vez. À Dona Rosa, a quem tinha grande admiração e respeito, e à filha dela, Cota, com quem estava de namorico, Amácio inventou uma desculpa convincente: estava na época de servir o Exército. Em Itanhandu, em Minas Gerais, deixou a lona surrada daquele cirquinho de sua estreia. De volta a Taubaté, foi recebido com alardes de satisfação e lágrimas de alívio pelos pais. Felicidade. Retornava ao lar, mas não se despedia da vontade de ainda ser um grande artista.

         A nova estada em Taubaté foi profícua para Mazzaropi. Apesar de os pais o arranjarem um emprego na Companhia Taubaté Industrial (CTI), Amácio continuava a levar o seu jeca, ainda em desenvolvimento artístico, às pequeninas plateias da região. Em 1931, o jornal A Voz do Povo, de Taubaté, noticiou a apresentação “do cômico caipira Amazzio Mazzaropi (grafia igual à do avô italiano)” no salão do Externato Sagrado Coração de Maria, no Convento de Santa Clara. O programa da noitada foi composto por apresentação de orquestra, bem como pela encenação do drama Amigos Falsos e por um Ato Variado, dirigido pelo próprio Mazzaropi. Pouco tempo depois, Amácio estreou na Troupe Carrara, no Cine Theatro Polytheama, em Taubaté, na comédia Herança do Padre João, de Baptista Machado.

         Nessa mesma época, Mazzaropi teve duas experiências artísticas notáveis. Por conta da Revolução Constitucionalista de 1932, o cômico integrou o Teatro do Soldado, uma opção de diversão aos combatentes em guerra. De apresentação em apresentação, sem ganhar absolutamente nada, Mazzaropi arrecadou recursos financeiros que eram destinados às viúvas e aos filhos dos soldados mortos. Por outro lado, durante a passagem por Taubaté, conheceu um famoso faquir de nome Ferri. A fim de rechear o seu espetáculo exótico com bastante humor, o homem convidou Mazzaropi para atuar nos intervalos entre aqueles números de deixar qualquer um de cabelos em pé. Aos poucos, Mazzaropi tornou-se ajudante do faquir nos números e, claro, ainda o acompanhou em algumas turnês pelo interior e pela capital paulista.

Querendo ou não, as mulheres sempre exerceram fascínio em Mazzaropi. Além de Dona Rosa e de Cota, outra artista influenciou o cômico. Chamava-se Olga Crutt, nome artístico de Maria Nogueira do Amaral. A Troupe Olga Crutt, uma das mais afamadas da época, estreou em Tremembé, em 1934. Por já ter ouvido falar de um exímio cômico caipira das redondezas, a artista convidou Mazzaropi para integrar a companhia. Paixão à primeira encenação. Tanto que, depois de algumas apresentações, a mulher abandonou o sobrenome “Crutt” do passado para adotar um novo nome artístico: Olga Mazzaropi. Nascia, dessa forma, a Troupe Mazzaropi, dedicada a reviver no palco o valioso repertório do circo-teatro da época.

O pavilhão

Embevecido pela estética e pelo repertório diversas companhias, entre as quais a Troupe Arruda, deu um passo definitivo na carreira artística: fundou o próprio pavilhão. Tratava-se de um tipo de construção teatral desmontável que, comumente, media 15 metros de largura por 40 metros de comprimento. Razão principal do investimento: Mazzaropi estava cansado de depender da boa vontade dos responsáveis pelas salas de teatro do interior. Para a estreia do Pavilhão Mazzaropi, o cômico escolheu Jundiaí, no interior de São Paulo. O artista se hospedou em uma pensão na Rua da Baronesa do Japi, enquanto que o teatro desmontável ficou abrigado em um terreno na Vila Arens.

A estreia aconteceu com o espetáculo Divino Perfume, de Roberto Viana. Na peça, o cômico não encarnava a figura do caipira, mas a de um galã, o belo Luciano. Nessa época, toda a família Mazzaropi estava envolvida com as artes. Enquanto o pai controlava o caixa, a mãe também estrelava em cima do palco. A temporada seguiu com outras peças, entre as quais Deus lhe pague e Anastácio, de Joracy Camargo; O coração não envelhece, de Paulo Magalhães; e Era Uma Vez Vagabundo, de José Wanderley. No baú de repertório da trupe, três peças foram atribuídas na época a Mazzaropi como um precoce dramaturgo: Baile de Máscaras, Castelo de Felicidade e Despreso.

Após a temporada de estreia, o Pavilhão Mazzaropi iniciou uma longa temporada pelo interior de São Paulo, passando por cidades como Pederneiras, Ribeirão Bonito, Americana, Taquaritinga, Cambará, Agudos, São João da Boa Vista, Mogi das Cruzes, Pindamonhangaba, entre outras. Após reformas na estrutura da construção, inclusive a colocação de um teto de folhas de zinco, a trupe também fez temporada na capital de São Paulo. Entre idas e vindas do pavilhão, a trupe Mazzaropi promoveu novas turnês pelo interior, fundiu-se por um período com a de Nino Nello, lamentou a morte de Bernardo Mazzaropi, até que aterrissou definitivamente na região de São Paulo.

O Rádio e a TV

Apesar da insistência dos amigos mais próximos, Mazzaropi relutou ao máximo para encarar o microfone do rádio. Até que, em 1946, rendeu-se ao capricho. De começo, integrou o elenco da Rádio Tupi, em São Paulo. Logo em seguida, sob a direção de Cassiano Gabus Mendes, protagonizou o programa Rancho Alegre. Ao ar aos domingos, às 19h45, o humorístico tinha estrutura bastante simples: acompanhado por um sanfoneiro, Mazzaropi contava causos e, ao final, soltava a voz durante uma canção.

Dado o sucesso do programa e a expansão pelo país do grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, Mazzaropi percorreu diversos estados do Brasil para realizar shows ao lado de figuras como Hebe Camargo, Linda Batista e Michel Allard.  O grupo compunha a Brigada da Alegria. Mesmo com a badalação do rádio, o cômico buscou apaziguar a paixão pelo teatro. Além de apresentações em circos e em teatros do interior, também participou de alguns espetáculos de teatro de revista na Companhia Dercy Gonçalves, entre os quais Sabe lá o que é isso?.

Quando a televisão nasceu no Brasil, em 1950, Mazzaropi também estava lá. Por sinal, na noite do primeiro dia de transmissão da Rede Tupi, o cômico cativou os ainda poucos espectadores com uma apresentação composta por piadas e causos caipiras.  Posteriormente, ao lado do ator João Restiffe e da atriz Geny Prado, a memorável ‘mulher do jeca’ das futuras películas do cômico, Mazzaropi trouxe do rádio para a telinha o humorístico Rancho Alegre. Sucesso estrondoso. Além de causos, esquetes e de canções, sempre acompanhadas pelo sanfoneiro e amigo Gentil Rodrigues, o programa era recheado com a presença de convidados, inclusive duplas caipiras. O programa ficou no ar aproximadamente quatro anos.

Durante a exibição de um episódio do humorístico na telinha, algo aconteceu de surpreendente. Coincidências ou não, o televisor do Nick Bar, botequim frequentado por artistas nas proximidades do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, estava ligado no programa. Há controvérsias sobre quem realmente fitou pela primeira vez com olhos de cobiça artística aquele cômico caipira: Tom Payne, Abílio Pereira de Almeida ou Renato Consorte. Pouco importa ‘o olheiro’, a questão é que a Companhia Cinematográfica Vera Cruz estava à procura de um tipo popular para a próxima produção batizada de Sai da Frente. Gostaram do que viram, convidaram Mazzaropi para um teste.

A Telona

Por acaso ou não do destino, a estreia de Mazzaropi na telona não foi de calças curtas, chapéu de palha ou pé no chão, trajes comuns do jeca que o imortalizou. Sob a direção de Abílio Pereira de Almeida, o cômico deu vida ao paulistano Isidoro Colepícula, um atrapalhado dono de um caminhãozinho, batizado de Anastácio, que se vê em confusão durante uma mudança entre São Paulo e Santos. A estreia de Sai da Frente aconteceu com bastante sucesso em 1952. Na Vera Cruz, Mazzaropi ainda estrelou outras duas produções: Nadando em Dinheiro (1952) e Candinho (1953). Candinho guarda uma peculiaridade: pela primeira vez na telona, o cômico se vestiu com o figurino de caipira.

No momento em que a Vera Cruz sobrevivia a duras penas, o cômico foi instigado a visitar outras companhias. Na Fama Filmes Ltda, protagonizou A Carrocinha (1955) e, na Brasil Filmes Ltda, O Gato da Madame (1956). Após receber uma oferta irrecusável do empresário cinematográfico Oswaldo Massaini, Mazzaropi participou de três filmes da Cinedistri Ltda: O Fuzileiro do Amor (1956), Noivo da Girafa (1957) e Chico Fumaça (1958).

Em 1958, o tino de empresário da Sétima Arte se aflorou no cômico. Ao perceber que as companhias cinematográficas do Brasil estavam lucrando bastante com a sua figura, Mazzaropi chegou a uma rápida reflexão: “Eu via os cinemas cheios de gente e meu bolso vazio. Tinha aprendido um pouco de cinema e resolvi fazer minhas próprias fitas”. Não deu outra. Ao se munir da experiência de um passado dedicado ao gerenciamento de uma trupe teatral e de um pavilhão, Mazzaropi fundou a própria produtora: PAM Filmes (Produções Amácio Mazzaropi).

No início, como de praxe na vida do cômico, tudo foi obstáculo. A fim de angariar recursos para a produção de Chofer de Praça (1958), a primeira película independente do artista, o cômico necessitou desfazer dos principais bens: vendeu a casa e o carro. Mesmo assim, a grana ainda estava curta. Para tanto, recordou-se de um antigo aliado, o circo. Embrenhou-se em uma temporada de shows pelos picadeiros do interior. Para rodar a película de estreia, Mazzaropi alugou diversos equipamentos da Vera Cruz. Posteriormente, durante um leilão, o cineasta caipira arrebataria metade dos equipamentos da antiga companhia cinematográfica. O filme fez sucesso, a PAM Filmes decolou. 

A PAM Filmes durou até a morte de Mazzaropi, em 1981. Ao todo, foram produzidas 24 películas, aguardadas ansiosamente por plateias fiéis e que transformaram o comediante em um milionário. Além de Chofer de Praça (1958), Mazzaropi protagonizou pela produtora: Jeca Tatu (1959), As Aventuras de Pedro Malasartes (1960), Zé do Periquito (1960), Tristeza do Jeca (1961), Vendedor de Linguiça (1961), Casinha Pequenina (1963), O Lamparina (1964), Meu Japão Brasileiro (1964), O Puritano da Rua Augusta (1965), O Corintiano (1966), O Jeca e a Freira (1967), No Paraíso das Solteironas (1969), Uma Pistola para Djeca (1969), Betão Ronca Ferro (1970), O Grande Xerife (1972), Um Caipira em Bariloche (1973), Portugal, Minha Saudade (1973), O Jeca Macumbeiro (1974), Jeca Contra o Capeta (1975), Jecão... Um Fofoqueiro No Céu (1977), Jeca e Seu Filho Preto (1978), A Banda das Velhas Virgens (1979) e Jeca e a Égua Milagrosa (1980).

A fim de viabilizar com qualidade as produções, além de reduzir os custos de locação, Mazzaropi pensou nas nuvens. Em 1961, comprou a Fazenda da Santa, em Taubaté. No local, formado por 184 alqueires, o cômico pretendia construir dois estúdios, um restaurante e um alojamento para artistas, técnicos e produtores. Naquele espaço, rodou boa parte das películas da PAM Filmes. A visão ousada e empreendedora o fez comprar uma fazenda ainda maior. Foi quando, em 1975, iniciou a construção do PAM Filmes Hotel. O local serviu de espaço para novas locações, abrigou estúdios e alojamentos, além de se tornar um hotel regular para a visitação de hóspedes instigados em conhecer os cenários dos filmes do caipira. Atualmente, o espaço acomoda o Hotel Fazenda Mazzaropi, que traz nas dependências o Museu Mazzaropi, aberto à visitação do público.

Inspirado pela profícua passagem pelo circo-teatro, Mazzaropi propôs nas películas produzidas pela PAM Filmes uma conversa harmônica entre dois gêneros bastante cultuados sob a lona: a comédia e o melodrama. Não por acaso, as produções do cineasta caipira abriram espaço ao jeca como centro da trama, a vilões sem escrúpulos, aos amores contrariados de jovens namorados, ao maniqueísmo, ao combate às injustiças sociais, às paródias de filmes ou novelas da época, bem como a temáticas contemporâneas relacionadas à política, ao meio ambiente, à economia e à religião. Ao bom sabor da caipiragem, Mazzaropi tratou do racismo, da abertura política, da ascensão do Espiritismo no Brasil, do sincretismo religioso, da preservação do meio ambiente, da reciclagem, entre outros temas.

Outra característica oriunda do circo está na visão empreendedora, polivalente e transversal peculiar de Mazzaropi. A partir da estreia da PAM Filmes, e isso aumentou gradativamente ao longo de anos de experiência, o cômico passou a dominar todos os processos da produção cinematográfica. Entenda-se por isso: desenvolvimento do argumento, construção do roteiro, produção, ser o protagonista da trama, direção, edição e a própria distribuição das películas. Mais do que isso, criou um sistema para o controle das bilheterias. Em várias partes do Brasil, contratou pessoas, geralmente aposentados, para servirem de fiscais durante a entrada da plateia nas salas. A iniciativa garantia a exatidão no número de bilhetes e evitava possíveis fraudes.

Tornou-se um sucesso de público e, verdadeiramente, fez cinema independente no Brasil. Afinal, as películas da PAM Filmes eram totalmente bancadas pela própria produtora. Mazzaropi jamais implorou incentivos ao Governo Federal. Todas as películas produzidas pelo cineasta caipira superavam a marca de um milhão de espectadores. Três exemplos de recordistas de plateias da época: O Jeca Macumbeiro (1974), com 3. 468. 728 espectadores, Jeca Contra o Capeta (1975), com 3.428.860 espectadores, e Jecão... Um Fofoqueiro no Céu (1977), com 3.306.928 espectadores.

Para começar, as estreias dos filmes se tornaram verdadeiros acontecimentos na capital de São Paulo. Sem dúvidas, eram comparadas às festividades de entrega do Oscar, nos Estados Unidos. Comumente, os filmes eram lançados em dois momentos propícios do calendário: 25 de janeiro, a data do aniversário de São Paulo, ou em 7 de setembro. O palco da avant-première? Sempre o mesmo:  Cine Art Palácio, localizado no Largo do Paissandu. Na ocasião, Mazzaropi rompia a euforia da plateia ao lado da mãe, de amigos e dos artistas da película. No palco, antes da exibição, fazia questão de convidar todos os envolvidos para os holofotes, além de cativar a plateia com uma apresentação humorística, composta por piadas e causos.

Mazzaropi era livre. Na vida, colecionou alguns amores, mas não se prendeu a nenhum deles. Contudo, fazia questão de estar rodeado de poucos, mas bons amigos. Era carente, temia a solidão. Por muitas vezes, ficava ressabiado, tal como o jeca da telona, ao pensar que muitos estariam próximos por interesse. Gostava da simplicidade: durante as turnês pelos circos, por exemplo, alimentava o hábito de parar no acostamento das estradas, debaixo de frondosas árvores, para promover piqueniques com os artistas e amigos que o acompanhavam. Todos sabiam: a pessoa que mais amou durante a vida foi a mãe, Dona Clara. Transformou a mulher em sombra ao levá-la para todos os cantos como uma espécie de amuleto e fonte de segurança. Quando o cômico morreu, Dona Clara estava doente. Não soube da notícia. Para tanto, inventaram uma história para justificar a ausência permanente do filho: Mazzaropi estaria em viagens para a gravação de um novo filme.

O último suspiro de Mazzaropi foi dado às oito horas da manhã. Era sábado, 13 de junho de 1981. Após 26 dias internado no Hospital Albert Einstein, o cômico se despediu de vez da cena. O câncer na medula, que lutava há anos, tinha se intensificado nas últimas semanas. A descoberta foi provavelmente, em 1975, durante as gravações de Jeca Contra o Capeta. A partir de lá, o cômico passou a fazer baterias de radioterapia, além da ingestão diária de inúmeros medicamentos. Aos 69 anos, sob o cantar choroso de fãs que entoavam a canção Tristeza do Jeca, o corpo de Mazzaropi foi enterrado no mesmo túmulo do pai, em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo.

Uma questão ainda pulsa, mesmo após décadas da morte do cômico: Qual o segredo do sucesso de Mazzaropi? Se o cômico pudesse ter a mesma regalia de Jecão, o figurão do filme Jecão... Um Fofoqueiro no Céu (1977), que conseguiu a permissão de voltar à Terra após a morte, Mazzaropi repetiria a mesma frase-bordão que insistia em apregoar durante as entrevistas: “O segredo do meu sucesso é falar a língua de meu povo!”.

*NAB - Antes de visitar Tia Neiva, quando ainda tinha 10 anos de idade, Mazzaropi sequer existia para mim. Afinal, até aquele momento, alimentava o hábito de assistir compulsivamente e repetidamente aos filmes de Bruce Lee. A partir daquele encontro casual com o caipira na casa de minha tia avó, que assistia naquele domingo à película Jecão... Um Fofoqueiro no Céu, passei a me interessar sobre a trajetória de Amácio Mazzaropi (1912-1981). A figura do jeca me cativou. Amor à primeira risada. Sendo assim, a pesquisa começou ainda na juventude, quando busquei entrevistar amigos, técnicos e atores que conviveram com o artista. Durante minha passagem pelo jornalismo cultural, em Campinas, fiz questão de retratar a memória do cômico caipira em diversas reportagens publicadas em veículos como Correio Popular (RAC), G1 Campinas (EPTV/Rede Globo) e Revista Terra da Gente (EPTV/Rede Globo). Em 2014, ingressei-me no Programa de Mestrado da Pós-Graduação em Artes da Cena, do Instituto de Artes (IA), da Unicamp, com a pesquisa Mazzaropi em... Lona na Telona: a herança da teatralidade circense na filmografia do palhaço caipira. Desde então, passei a escrever artigos, a conceder entrevistas e a participar de palestras sobre a memória desse cômico caipira de muitos predicados.

 

** RAC - Nascido em Três Corações (MG), o também berço do Rei Pelé, o jornalista cultural e pesquisador de circo Tiago Gonçalves não herdou do conterrâneo popstar da bola o fascínio pelos gramados. Pelo contrário, enveredou-se por outro campo: o das palavras.

Formado em Jornalismo (PUC-Campinas) e Artes Dramáticas (Conservatório Carlos Gomes/Campinas), com Pós-Graduação em Jornalismo Literário (Associação Brasileira de Jornalismo Literário) e Especialização em Circo-Teatro e na obra caipira de Amácio Mazzaropi (1912-1981), o jornalista integra o Programa de Mestrado da Pós-Graduação em Artes da Cena, do Instituto de Artes (IA), da Unicamp, com a pesquisa Mazzaropi em... Lona na Telona: a herança da teatralidade circense na filmografia do palhaço caipira.

O profissional tem 10 anos de experiência dedicados à cobertura de Cultura (repórter, editor e crítico teatral). Isso sem mencionar as passagens pelas editorias de Cidades, Variedades, e Esporte, bem como pelas áreas de Comunicação Empresarial e Assessoria de Imprensa. Desde 2009, integra o corpo de colunistas do Portal Circense Circonteúdo. Ao longo da carreira, atuou nos veículos Gazeta do Cambuí, Diário do Povo e Correio Popular (veículos da Rede Anhanguera de Comunicação), bem como EPTV.com e G1 Campinas. Como repórter-colaborador, escreveu para revistas, entre as quais Viola Caipira, National Geographic e Terra da Gente (editada pela EPTV, afiliada da Rede Globo).

Em 2012, recebeu o Prêmio Fundação Feac de Jornalismo na categoria House Organ pela reportagem Acalanto para educar o amanhã, publicada no informativo Acontece (Sanasa). Em 2013, conquistou novamente o Prêmio Fundação Feac de Jornalismo na categoria House Organ com a reportagem Jardineiros dos Saberes, publicada na revista EatoNews (Eaton Mogi Mirim).

Atualmente, tem ministrado palestras e participado de encontros a respeito da trajetória de Mazzaropi e da história do circo-teatro brasileiro. Recentemente, assinou dois artigos sobre a temática: Instituto de Artes da Unicamp lança neste semestre sua primeira experiência educomunicativa de produção audiovisual, publicado na Revista Ensino Superior (Unicamp/SP), e Memória Circense em Mazzaropi, publicado na ILINX: Revista do Lume Teatro (Unicamp/SP).


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