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Alfredo de Carvalho

Por José Marques de Melo

Alfredo de Carvalho, Brasilógrafo Institucional

 

Alfredo de Carvalho é o historiador brasileiro que se dedicou à preservação da memória da imprensa nacional, assumindo a liderança do mutirão intelectual que catalogou todos os jornais e revistas publicados no Brasil,  no período 1808-1908.

Um século depois, Alfredo de Carvalho foi tomado como paradigma da Rede Nacional de Pesquisa destinada a construir a História da Mídia, fortalecendo a preservação da memória para servir como fonte de estudos. Pretende-se, aqui, recompor seu perfil intelectual e descrever criticamente a trajetória da rede que nele se inspirou para celebrar o bicentenário da fundação da nossa imprensa.

Diplomado em engenharia, nos EUA, mas culturalmente formado na Europa, o poliglota  pernambucano Alfredo de Carvalho desempenhou papel-chave no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco.

Pertencente à geração dos jornalistas-historiadores que elucidaram a charada da mítica tipografia holandesa do século XVII, Alfredo de Carvalho foi o responsável pela pesquisa que desfez aquele equívoco histórico. Notabilizou-se pelo resgate da memória da imprensa brasileira do século XIX, empreitada que resultou na “alentada monografia sobre a trajetória histórica da imprensa brasileira, incentivando seus colaboradores a produzir perfis regionais”.

Colaborador assíduo dos jornais recifenses, publicou  freqüentes artigos em que difunde os conhecimentos históricos sistematizados a partir da sua própria pesquisa ou dos estudos realizados pelos seus parceiros.

Esta é certamente a razão pela qual sua produção historiográfica ficou rotulada como “pequena história”, enfatizando “o pitoresco, o romanesco, a anedota” em detrimento do que José Veríssimo (1907) denomina a “grande história”. Mas quando avalia sua produção intelectual a propósito do jornalismo, o grande crítico não hesita em reconhecer os seus méritos.

Carvalho resgata a gênese da nossa imprensa, dirimindo a polêmica sobre a sua paternidade e efetuando o inventário do seu desenvolvimento no século XIX . Em reconhecimento ao seu pioneirismo foi escolhido como patrono da Rede estruturada para o Resgate da Memória da Imprensa e a Construção da História da Mídia no Brasil - Rede Alcar.

 

História de vida 

Pertencente à aristocracia pernambucana, Alfredo Ferreira de Carvalho nasceu em 27 de junho de 1870, na cidade do Recife, onde teve sua educação básica, inclusive o aprendizado de línguas estrangeiras.

Tornou-se poliglota, adquirindo fluência em alemão, inglês, holandês, francês, italiano e espanhol. Isso o habilitou a realizar os estudos superiores no exterior, na área de engenharia, inicialmente em Hamburgo, Alemanha, e finalmente em Philadelphia, Estados Unidos da América.

Muito jovem, enveredou pela carreira militar, abandonada em função do seu envolvimento na revolta da fortaleza de Santa Cruz, Rio de Janeiro. Diplomado, trabalhou como engenheiro nas ferrovias Central do Brasil e Central de Pernambuco.

Tentou ingressar no magistério, prestando concurso para o Ginásio Pernambucano; classificado em primeiro lugar, frustrou-se com a anulação do resultado. 

Decidiu, então, fazer excursões pelo país; mas adoeceu, no Amazonas, retornando a Pernambuco.

Convidado para redigir o jornal Cidade de Santos, viu o século XIX terminar no litoral paulista.  Essa jornada encurtou-se com o falecimento da mãe, o que determinou seu regresso a Recife, em 1900, onde permanece definitivamente, administrando o patrimônio familiar.

Casou-se com Marieta Siqueira, com quem teve oito filhos. Sonia Serra o define como “homem de inteligência fulgurante”, mas “de  natureza instável”[1].

Chegou a trabalhar como engenheiro fiscal de usinas de açúcar, embora suas energias fossem canalizadas para as atividades intelectuais, principalmente o jornalismo.

Faleceu precocemente, em 1916, enfrentando situação de penúria, privações e debilidade, após exaurir-se o  legado patrimonial investido na aquisição de uma valiosa biblioteca de obras raras sobre o Brasil.

 

Trajetória intelectual 

Depois de percorrer os principais centros do mundo ocidental e de excursionar pelo seu país, Alfredo de Carvalho recolheu-se à pacata vida provinciana, tendo participação ativa na dinâmica intelectual de Pernambuco.

Sua principal tribuna foi a imprensa, publicando regularmente artigos, ensaios e comentários, sobretudo no Jornal do Recife e Diário de Pernambuco, bem como em revistas acadêmicas.

Perfilou adequadamente o papel de “intelectual orgânico” da aristocracia regional, participando da geração que restaurou o sentimento de pernambucanidade. A esse contingente pertenceram figuras emblemáticas como José Higino Duarte Pereira e Francisco Augusto Pereira da Costa, a quem sucedeu na liderança institucional,  presidindo a Academia Pernambucana de Letras e o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco.

Mesmo vivendo na província,  nunca assumiu a condição de literato “provinciano”, isolando-se do país e do mundo. Ao contrário, manteve-se sintonizado com a vanguarda do seu tempo, associando-se a entidades como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro) e a Antropological Society (Washington).

Esse seu mérito foi reconhecido publicamente pelo crítico José Veríssimo[2]:

“... dezenas de literatos (...) imitam ou simplesmente macaqueiam o Rio de Janeiro, que para eles continua a ser a “Corte” das suas ambições... (...) não é felizmente raro surja de vez em quando algum espírito de melhor quilate, menos provinciano de índole... (...) Daqueles homens de letras a que me referi, que por mais capazes forçam outras atenções que as da sua terra (...) é um, e dos melhores, o Sr. Alfredo de Carvalho. (...) Razões históricas (...) como um forte sentimento de orgulho local (...)  explicam a parte de Pernambuco em nossa vida espiritual (...) O Sr. Alfredo de Carvalho (...) é essencialmente um erudito, ocupado da história nacional, particularmente da sua terra. É o que eu chamaria um brasileirista...”

Sua obra contém livros valiosos para a compreensão da singularidade pernambucana, como Frases e palavras: problemas histórico-etimológicos (1906); Estudos Pernambucanos (1907), mas também para o entendimento do ethos brasileiro, como O tupi na corografia pernambucana: elucidário etimológico (1907); a Biblioteca Exótico-Brasileira (1929) e Aventuras e aventureiros no Brasil (1930),

Fez diversas traduções para o português de obras em alemão, holandês e francês, entre as quais Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais, do alemão Ambrosio Richshoffer (1897); Olinda conquistada, do holandês padre João Baers (1898); O Diário de expedição de Mathias Beck ao Ceará em 1840 (holandês, 1903); Notas dominicais, do francês L. F. Tollenare (1904).

Esse filão historiográfico foi enaltecido por Oliveira Lima como nossa “petite histoire”, em virtude da valorização que o autor concede à vida cotidiana, refluindo aos quadros panorâmicos então vigentes.  Trata-se da “nossa história anedótica, a nossa história dramática, cômica, picaresca e trágica, considerada nos seus aspectos pessoais, extravagantes,  humorísticos e laneiros”.  Não obstante essa virtude metodológica, o grande intelectual acusava Alfredo de Carvalho de claudicar estilísticamente, recomendando simplicidade, elegância e alacridade no texto.

Contra esse taxativo e impiedoso juízo de valor  insurge-se o crítico Humberto de Campos. Mesmo considerando que Alfredo de Carvalho “não era (...) um escritor meticuloso e cuidado”, proclamava que ele “é (...) mais legível que Oliveira Lima”.[3]

Divergente também era a apreciação de José Veríssimo, que reconhecia outros méritos nem sempre perceptíveis pelos críticos de plantão.

...o Sr. Alfredo de Carvalho é um dos raros que não é gongórico, que possui mesmo uma forma desafetada e sóbria, forma geralmente estranha, e ao que parece antipática aos seus compatriotas literários. (...) Sobretudo (...) me parece um estudioso sincero e honesto, cousa mais rara do que se pensa...”[4]

 

Historiador da imprensa 

Se a natureza do seu trabalho como intérprete da sociedade brasileira causava polêmica, num ponto ele suscita unanimidade. “Alfredo de Carvalho é hoje porventura o brasileiro que melhor conhece a história da imprensa no Brasil”, afirmava alto e bom som o crítico José Veríssimo.[5]

O interesse pelo objeto resulta da vivência permanente com o mundo da imprensa. Foi colaborador de jornais e revistas, como os já citados Diario de Pernambuco e Jornal do Recife, mas também  da Revista Brasileira, Revista Pernambucana, Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano; Revistas dos Institutos Geográficos e Históricos da Bahia e do Rio Grande do Norte,  Almanaque de Pernambuco. Escrevia sob os pseudônimos de Robur, Aldecar, Philoclio, P. Pacífico, Heraldus.

É autor, nesse campo, das seguintes obras: Jornais pernambucanos, 1831-98 (1899); A imprensa baiana, 1811-98 (1899); Diário de Pernambuco, 1825-1908 (1908); Anais da imprensa periódica pernambucana de 1821 a 1908 (1908).

Contudo, sua grande contribuição à história da imprensa brasileira se dá em dois momentos distintos. Como pesquisador ele desvenda a hipótese lendária da tipografia holandesa do século XVII. E como líder intelectual ele comanda o mutirão que faz o inventário da imprensa brasileira no século XIX.

Tais episódios estão devidamente relatados em meu livro História do Pensamento Comunicacional (São Paulo, Paulus, 2003), do qual sintetizo ou transcrevo a seqüência dos referidos eventos.

A questão da imprensa batava é suscitada em 1859, pelo Cônego FERNANDES PINHEIRO[6], que publica, no Rio de Janeiro, numa revista cultural, um artigo atribuindo aos holandeses, colonizadores de porções do território nordestino no século XVII, a primazia da implantação da imprensa no Brasil. Ao destacar esse detalhe, o autor  punha lenha na fogueira dos que criticavam o “obscurantismo” da colonização portuguesa no Brasil e exaltavam a ousadia “progressista” do Conde Maurício de Nassau. A ausência da imprensa em nossa história colonial constituia, portanto, indicador expressivo dessa defasagem entre os dois projetos coloniais.

Incomodados pela tese, os historiadores pernambucanos criam o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, cuja motivação era justamente a de valorizar o “nativismo” da Restauração Pernambucana que culminou com a Batalha dos Guararapes.

Os debates sobre a controvérsia relativa à imprensa induzem os intelectuais pernambucanos a desqualificá-la, taxando-a de “inverdade histórica”. Para comprovar a hipótese, encorajam José Higino DUARTE PEREIRA a empreender uma missão científica nos arquivos holandeses, o que efetivamente foi realizado a partir de 1873. Seu desafio era dirimir a polêmica histórica sobre a “mítica” tipografia holandesa de 1642.

As evidências coletadas foram suficientes para refutar a tese sobre a existência da imprensa no Brasil Holandês. Mas os dados disponíveis não foram suficientes para esclarecer completamente a questão.

 

Pesquisador emblemático

Anos depois, Alfredo de CARVALHO[7] retomaria a questão da imprensa holandesa. Ele refaz o itinerário interrompido por DUARTE PEREIRA nos arquivos holandeses, esclarecendo definitivamente o episódio. Robustece a tese de que, durante o Governo de Maurício de Nassau, em Pernambuco, não funcionou nenhuma tipografia no Recife.  Elucidou de forma convincente a origem do equívoco histórico, ou seja, a circunstância de haver Nassau solicitado um tipógrafo e um prelo a Amsterdam.

Consultando a correspondência oficial trocada entre os governantes holandeses no Brasil e a direção da Companhia das Índias Ocidentais, conservada no Arquivo Real de Haia, o jornalista/historiador encontrou inúmeras referências ao pedido, às respostas, bem como          às reiterações para o envio do prelo, mesmo depois  da viagem do tipógrafo Pieter Janszoon e do anúncio da sua morte durante o trajeto marítimo. Não há qualquer comprovação de que Amsterdam tenha atendido ao pleito, apesar dos dirigentes holandeses no Brasil continuarem reclamando a tipografia. Esta nunca chegou ao Brasil. No entanto, circularam folhetos na Europa supostamente impressos no Recife, datados de 1645. Estes haviam sido originalmente escritos no Brasil, mas concluídos na Holanda, onde foram impressos. A indicação do Recife como local de publicação representou estratagema para evitar sanções legais aos autores pelo caráter denunciativo dos opúsculos.

Ao concluir seu artigo, diz CARVALHO: “...cremos haver encerrado o debate sobre a tão disputada questão do estabelecimento da imprensa em Pernambuco pelos holandeses, tendo provado que realmente foi tentado, mas, não chegou a se realizar”.

 

Trabalho consagrador 

Liquidada essa fatura, dedicou-se Alfredo de CARVALHO[8] a inventariar os progressos da imprensa brasileira, mobilizando pesquisadores nas diversas unidades da Federação para apresentar seus resultados durante a efeméride comemorativa da introdução oficial da imprensa no Brasil pelo Corte de D. Joáo VI, que aqui aporta em 1808.

Trata-se do primeiro projeto de “pesquisa integrada” realizada no Brasil, repertoriando informações sobre a imprensa de todo o país, no século passado e primeira década deste século. Na condição de líder da equipe, Alfredo de CARVALHO[9] escreve alentada monografia sobre a trajetória histórica da imprensa brasileira, incentivando seus colaboradores a produzir perfis regionais.


[1] Serra, Sonia – Alfredo de Carvalho, dados biográficos, In: Anais da imprensa da Bahia, 1811-1911, 2ª. Ed., IHGB, Salvador, 2007,  p.304

[2] Verisimo, José – Um estudioso pernambucano, Kosmos, Rio de Janeiro, 1907

[3] Campos, Humberto de – Alfredo de Carvalho, In: Crítica (terceira série), obra póstuma, Rio, Jackson, 1962,  p.319-323

[4] Verisimo, José – Um estudioso pernambucano, Kosmos, Rio de Janeiro, 1907, p. 126-127

[5] Verisimo, José – Um estudioso pernambucano, Kosmos, Rio de Janeiro, 1907, p. 122

[6] FERNANDES PINHEIRO, J. C. - A imprensa no Brasil, Jornal Ilustrado (revista popular noticiosa, científica, industrial, histórica, literária, anedótica, musical etc.), Rio de Janeiro, 1(4): 217-224, 1859

[7] CARVELHO, Alfredo - Da introdução da imprensa em Pernambuco pelos holandeses, Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, N. 53, Recife, 1899, p. 710-716

[8] CARVALHO, Alfredo - Gênese e Progressos da Imprensa Periódica no Brasil, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 2 vols.

[9] Ele também assumiu a tarefa de inventariar a imprensa pernambucana, divulgando o conjunto da pesquisa no livro Annaes da Imprensa Periódica Pernambucana (1801-1908), Recife, Typografia do Jornal do Recife, 1908

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