Donald Pierson
Donald Pierson: pioneirismo na pesquisa empírica
Donald Pierson (1900-1995) é um nome que integra, com peculiar destaque, uma geração de pesquisadores estrangeiros que viria a configurar uma plêiade de intelectuais agrupada sob o título genérico de brasilianistas. Foi aluno na Universidade de Chicago do sociólogo Robert Ezra Park (1864-1944), responsável por uma série de estudos pioneiros sobre a situação de grupos sociais marginalizados em decorrência do intenso processo de industrialização e urbanização que abrangeu as principais cidades norte-americanas no início do Século XX. Tal abordagem acadêmica daria origem aos pioneiros estudos de comunidade com enfoque na Ecologia Humana.
Antes de sua primeira vinda ao Brasil em 1935 Donald Pierson cursou o programa de pós-graduação em Filosofia na Universidade de Chicago, obtendo o título de Master of Art. A seguir tomou contato com os surveys que Robert Park desenvolvia no Departamento de Sociologia, abordando aspectos sociais similares aos que conviveu no decorrer de uma sofrida infância e adolescência numa área agrícola empobrecida do centro-oeste dos Estados Unidos.
O perfil acadêmico e pessoal de Donald Pierson ajustava-se perfeitamente aos escopos da linha de pesquisa desenvolvida por Robert Park e assim, a partir de 1933, passou a integrar o grupo de pesquisadores do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. Contava na época 33 anos de idade, sendo que Robert Park aproximava-se da aposentadoria aos 70.
Em 1935 estimulado por Park, no sentido de desenvolver estudos comparativos de integração do negro em diferentes países, opta pelo Brasil para um período de dois anos de estudos e observações relacionados à decantada “democracia social brasileira”. Escolhe a cidade de Salvador (Bahia) como objeto de seu trabalho de campo. Recém-chegado manteve contato com Gylberto Freyre, Arthur Ramos e Oliveira Lima que orientaram Pierson em relação ao que de mais significativo havia na produção acadêmica sobre o as relações sociais e raciais no Brasil. Sobre Gylberto Freyre cabe rememorar que, dois anos antes, tinha publicado aquele que viria a ser um clássico da literatura sociológica brasileira: “Casa Grande e Senzala”. O impacto ocasionado pela leitura da obra de Freyre foi de tal forma relevante a ponto de Pierson referenciá-la em diversos livros e artigos, inclusive sendo escolhido para redigir a resenha publicada na prestigiosa “American Sociological Review” quando do lançamento em 1947 da edição norte-americana de “Casa Grande e Senzala”.
Terminada a estadia no Brasil retornou aos Estados Unidos para finalizar a tese de doutorado e, ao mesmo tempo, assumir o cargo de assistente de Robert Park que, aposentado, coordenava a cadeira de Sociologia na Universidade de Fisk em Nashville, uma instituição de ensino que priorizava o acesso ao aluno negro e os estudos relacionados às questões raciais nos Estados Unidos e no exterior. Em agosto de 1939 obteve o grau de doutoramento com a tese A study of racial and cultural adjustment in Bahia, Brazil. A versão norte-americana seria publicada no formato de livro em 1942 e, posteriormente, em português no ano de 1945, integrando a Coleção Brasiliana (volume 241) com o título “Brancos e Pretos na Bahia”. O impacto da obra, no que diz respeito aos estudos sociológicos comparativos sobre o racismo seria imediato, consolidando como referência acadêmica o grupo de pesquisadores amparado pela Universidade de Fisk.
Mesmo antes da obtenção do grau de doutor Donald Pierson vinha sendo sondado para compor o quadro de professores da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) fundada em São Paulo em 1933. A proposta foi aceita envolvendo um salário anual de três mil dólares, em parte bancado pela Prefeitura de São Paulo, que buscava um especialista em pesquisa social para desenvolver no Departamento de Cultura (criado por Mário de Andrade e Paulo Duarte em 1935), levantamentos sobre aspectos de vivência e cotidiano na área metropolitana de São Paulo. Pierson chegou a São Paulo no final de outubro de 1939 com a dupla missão de dividir sua atividade profissional no Departamento de Cultura e na ELSP onde passou a responder pela disciplina de Sociologia e desenvolvimento de projetos de campo de caráter sociológico e etnográfico.
A ELSP foi uma, entre diversas iniciativas, proposta por um influente grupo de empresários, políticos e profissionais liberais paulistas, liderado pelo industrial Roberto Simonsen (1889-1948). No fundo tratava-se de uma forma de resposta à derrota militar que São Paulo sofreu em 1932 quando da defesa de uma nova Constituição para o país. A nova estratégia de retomada do poder tinha por princípio a formação de uma elite intelectualmente capacitada a assumir, não apenas o comando do setor empresarial, mas formar adequadamente personagens de destaque e influencia nas instâncias públicas e políticas, capazes de fazer frente ao emergente autoritarismo populista e estatizante implícito no projeto “varguista” de perpetuamento no poder. Na empreitada Roberto Simonsen contou com importante apoio financeiro da instituição norte-americana Fundação Rockfeller a qual, desde 1918, vinha atuando no campo da saúde pública, inclusive financiando a criação do Instituto de Higiene (futura Faculdade de Saúde Pública da USP) com a finalidade de aprofundar estudos e pesquisas sobre doenças tropicais.
O conceito “Escola Livre”, adotado na criação da ELSP, estava enraizado no modelo pedagógico norte-americano da época, em especial no sistema adotado em Universidades consideradas “modernas” e “liberais”, como era o caso daquelas instaladas em Columbia e Chicago, que abraçavam por princípio a prioridade nos estudos e pesquisas empíricos em contraste com o academicismo oriundo da tradição acadêmica europeia. Em diversas oportunidades Roberto Simonsen apregoou a necessidade do desenvolvimento de estudos sociológicos direcionados ao entendimento cientifico das condições de vida na sociedade paulistana. Graças a tal desígnio a proposta de junção entre ensino e pesquisa, adotada pela ELSP, daria origem aos primeiros estudos e pesquisas empíricas sobre o cotidiano das famílias proletárias na capital paulista. Dois meses após chegar a São Paulo Donald Pierson concluiu junto ao Departamento de Cultura seu primeiro trabalho intitulado: “Recenseamento por Quarteirões” no qual inova, ao propor a adoção de variáveis sociais na definição dos espaços a serem recenseados, até então determinados apenas por critérios geográficos. Ao mesmo tempo passa a integrar a “Sociedade de Etnografia e Folclore”, entidade criada por Mário de Andrade (1893-1945) interessando-se, sobretudo, pelos estudos direcionados ao entendimento e preservação da cultura caipira. Nesse sentido criou na ELSP o seminário “Pesquisas Sociais na Comunidade Paulista”, que daria origem a diversos estudos de comunidade.
Em 1941, contando com o apoio financeiro da Smithsonian Institution criou o programa de Pós-Graduação da ELSP, implementou uma biblioteca de alto nível em tópicos das Ciências Sociais e consolidou, em parceria com Emilio Willems, a regularidade na publicação da revista “Sociologia” da qual foi o mais assíduo colaborador com cerca de 50 artigos publicados. Comandados por Pierson os primeiros alunos do curso de Sociologia e Política realizaram diversos estudos orientados para o entendimento das formas de vivência e convivência da população paulistana com destaque para: “Habitação em São Paulo” (1942); “O estudo da cidade” (1943); “Hábitos alimentares em São Paulo (1944).
No período de 1947 a 1948 desenvolveu amplo e diversificado estudo de campo sobre uma comunidade rural nas proximidades da capital paulista, sob o título fictício de “Cruz das Almas”, projeto que tinha por objetivo: “o treinamento de jovens pesquisadores nas técnicas e métodos das ciências sociais, parcialmente em aulas e mais especialmente nos trabalhos de campo”. Em síntese tratava-se de um projeto que pretendia analisar em profundidade as causas da “permanência” de valores de sociabilidade, historicamente estabelecidos numa comunidade rural face à proximidade dos novos padrões sociais irradiados pela emergente modernização da vizinha cidade de São Paulo. O local escolhido foi o distrito rural de Araçariguama, na época pertencente ao Município de São Roque, situado a apenas 50 quilômetros da capital. Em diversas edições da Revista Sociologia abordou detalhadamente as variáveis pesquisadas durante a efetivação do projeto: status e prestígio; isolamento e contato; caipiras versus cidadão; festas religiosas; mudança e desorganização social; status e papel da mulher; ritual, cerimônia e crenças; preconceito racial; comportamento político; relações raciais; etiqueta; dialeto caipira; população; passado e família. O relatório final foi publicado nos Estados Unidos em 1951 com o título “Cruz das Almas: a Brazilian Village” e no Brasil em 1966 como “Cruz das Almas” pela José Olympio Editora.
Em 1952 Pierson daria início ao derradeiro e mais ambicioso projeto de pesquisa que realizou no Brasil. Trata-se do “Projeto do São Francisco”, fruto de convênio assinado entre a Escola Livre de Sociologia e Política, a Comissão do Vale do São Francisco e a Fundação Rockfeller. A dimensão do projeto envolveu o trabalho de mais de vinte alunos pesquisadores, entre eles Alfonso Trujillo Ferrari, Alceu Maynard Araújo, Esdras Borges, Levy Cruz, Fernando Altenfelder e Candido Procopio Ferreira Camargo. Numa primeira etapa Donald Pierson e dois assistentes: Octavio da Costa Eduardo e Levy Cruz percorreram, durante dois meses, toda extensão do Rio São Francisco (aproximadamente 3.000 quilômetros ao longo dos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe) procedendo aos levantamentos preliminares sobre variáveis sociológicas, antropológicas e ecológicas que, posteriormente, iriam compor o mapeamento sociológico, antropológico e etnográfico produzido pelos alunos do Curso de Pós-Graduação da ELSP.
Nas dez localidades escolhidas (Cerrado, Retiro, Rio Rico, Gerais, Pesqueira, Marrecas, Sertão Novo, Ilha do Toré, Passagem Grande e Cuscuzeiro) as equipes permaneceram por um período não inferior a um semestre, redundando em relatórios substanciosos e dados empíricos sobre as diferenças detectadas por dois tipos de grupos sociais: os moldados pela estabilidade imutável de traços históricos tradicionais e aqueles impactados pelo contato com traços de modernidade emanados do espaço geográfico exterior.
No final de 1952, debilitado fisicamente, Donalda Pierson retorna aos EUA para iniciar tratamento de saúde. Retornou a São Paulo, em curtas temporadas, para supervisionar a redação e entrega do relatório conclusivo, fato que ocorrerá em 1959. Desaparecido nos meandros da burocracia estatal o relatório conclusivo seria apenas publicado treze anos após, em 1972, pela Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), terminologia adotada pela antiga Comissão do São Francisco após o golpe militar de 1964. O produto final ficou constituído por três volumes, totalizando 1.500 páginas, contendo expressivos comentários e sugestões específicas para ações do poder público, condensados em 12 tópicos:
1-Conheça a cultura na qual vai ser introduzida a mudança;
2-Pense em termos do potencial verdadeiro da comunidade em questão, e não em termos de um programa ideal a ser executado numa comunidade ideal;
3-Quaisquer que sejam as esperanças a longo prazo, comece com um projeto pequeno e sem complicações, que ofereça possibilidade de resultados óbvios dentro de um período de tempo relativamente curto;
4-Procure apresentar um programa que seja integrado, e não uma série de projetos separados, sem relações entre si;
5-Selecione com extremo cuidado o local de introdução da projetada mudança;
6-Dedique atenção especial à escolha da pessoa ou pessoas de fora que vão introduzir a mudança;
7-Não peça a pessoa alguma na comunidade que faça algo que possa ameaçar-lhe a margem talvez já estreita de segurança material;
8-Aproveite a natureza pragmática de todas as pessoas, em toda a parte, apelando para os valores pragmáticos já adotados pelos moradores;
9-Siga a melhor sequência possível no lançamento do programa;
10-Utilize em todos os casos possíveis a liderança existente na comunidade;
11-Envide todos os esforços para evitar que alguma pessoa da localidade se manifeste contra o projeto;
12-Exija pelo menos um pagamento simbólico por serviços e materiais prestados ou entregues à comunidade.
Posteriormente participou do Programa da União Pan-Americana de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas na Cidade do México. Lecionou e desenvolveu projetos na Espanha e Portugal no período entre 1963 a 1964. Retornou a Portugal em 1966 para atuar como professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Faleceu na Flórida no ano de 1995.
Produção bibliográfica de Donald Pierson em língua portuguesa:
Teoria e Pesquisa em Sociologia. São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1945. (18 reedições no período 1945 e 1981)
Brancos e Pretos na Bahia. São Paulo: Cia.Editora Nacional,1945 e 1971
Estudos de Ecologia Humana (Tomo I). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1948 e 1970
Estudos de Organização Social (Tomo II). São Paulo, Livraria Martins Editora, 1949 e 1971
Cruz das Almas. São Paulo: José Olympio Editora, 1966.
O Homem no Vale do São Francisco (3 Tomos). Rio de Janeiro: Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), Ministério do Interior, 1972
(*) Graduado em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul (atual USCS); Graduado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP); Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo e especialização em Administração Pública pela Victoria University of Manchester (Inglaterra). Desde 1977 exerce a docência em diversas disciplinas dos cursos de Radialismo; Jornalismo e Publicidade e Propaganda na Universidade Metodista de São Paulo com as seguintes ênfases: memória e evolução dos meios de comunicação no Brasil e no exterior; relações entre o poder público e os veículos de comunicação e história socioeconômica da Região do Grande ABC. Membro permanente do Comitê Executivo da Cátedra Unesco/Umesp de Comunicação para o Desenvolvimento Regional onde desenvolve e orienta PIs (Projetos Integrados) e TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso). Participa da coordenação e realização dos eventos nacionais e internacionais promovidos regularmente pela Cátedra Unesco/Umesp e edita seu respectivo Anuário.