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Umberto Eco

Por Lucia Santaella (PUC-SP)

Umberto Eco: um gênio polivalente

Palavras-chave: Semiótica; Polivalência; Itália; Pignatari; Peirce

Conheci Umberto Eco em 1979, durante o II Congresso Internacional de Estudos Semióticos, realizado em Viena. O Congresso contava com perto de mil participantes. Estávamos, então, em pleno boom da semiótica. Umberto Eco fazia parte da diretoria da Associação que havia sido fundada em 1974, durante o I Congresso Internacional. Fizeram parte da criação da Associação, entre outros, Jakobson, o próprio Eco e, do Brasil, Decio Pignatari que, junto com Eco, desde 1974, era Vice-Presidente da Associação.

Vale lembrar que, desde essa data, 1974, foi votada em assembléia a unificação do termo semiótica em detrimento de semiologia, que representava apenas uma das possíveis vertentes da semiótica. Infelizmente, no Brasil, os jornalistas teimam em usar o termo semiologia, não obstante seu anacronismo.

Desde 1974, Pignatari ocupava o cargo de Presidente da Associação Brasileira de Semiótica,e em 1977, junto com AntonioRiserio, fundamos a Associação Paulista de Semiótica, da qual me tornei presidente, pois Riserio decidiu retornar a Salvador. Em 1979, em Viena, havia uma grande delegação de brasileiros, com Pignatari representando o Brasil e eu representando São Paulo.

Nesse congresso Umberto Eco comandou todas as assembléias relativas às questões administrativas e burocráticas. Sua presença e oratória são impressionantes. Voz forte, cadência marcante, além de um senso de humor, presença de espírito e habilidade para os chistes incomparáveis: uma verdadeira força da natureza.

Tive convivência muito mais próxima com Umberto Eco, em 1983, durante o International Summer Institute for StructuralandSemioticsStudies, promovido pelo, muito famoso no mundo inteiro na época, Institute for StructuralandSemioticStudies da Universidade de Indiana, campus de Bloomington, instituto sob a direção de Thomas Sebeok, grande amigo e promotor internacional de Umberto Eco no início de sua carreira como semioticista. Para esse instituto eram convidados os maiores especialistas internacionais em estudos semióticos para ministrarem cursos intensivos sobre os vários temas da semiótica. Umberto Eco foi responsável por ministrar um curso sobre semiótica medieval. Estudos medievais são uma de suas grandes especialidades, pois defendeu uma tese de doutorado sobre A estética de São Tomás de Aquino.

Os seminários de Eco, todas as tardes e todas as noites, durante 30 dias, lotavam. Eram realizados no auditório principal de um dos inúmeros prédios do campus de Bloomington. Seu sotaque fortemente italiano deleitava os norte-americanos. Sua semiótica medieval era temperada com conceitos da semiótica peirciana, masestes não podiam fazer frente ao seminário ministrado por Joseph Ransdell, um dos maiores especialistas na obra de Peirce, nos Estados Unidos, falecido em 2010.

Nessa ocasião, tive oportunidade de conversar com Eco sobre o Brasil, país que ele aprecia muitíssimo; declara que considera um dos países mais criativos do mundo.
Desde os seminários que Eco ministrou na USP, nos anos 1960-1970 (não tenho a data precisa) a sua obra no Brasil, nas traduções que recebeu da Editora Perspectiva, graças aos aconselhamentos editoriais de Haroldo de Campos, junto à Perspectiva, tevegrande repercussão. Uma repercussão que acompanhou pari passu a sua repercussão na própria Itália, com alguma antecedência brasileira em relação a outros países. Sua obra famosa, A obra de arte aberta (literatura, 1969), foi seguida pelaantológicaobra Apocalípticos e Integrados (comunicação de massa, 1970), por Estrutura ausente (comentários brilhantes sobre as últimas novidades das teorias parisienses, na psicanálise, na semiótica, na teoria da informação, 1971), pela obra As formas do conteúdo (estudos de semântica, 1974) etc.

Essas foram a primeiras obras, com alguma repercussão no Brasil na época, nos cursos de literatura, comunicação, artes, especialmente nas universidades mais sintonizadas com as novidades que vinham de Paris e da Europa.

Pode-se dizer que toda a semiótica italiana tem a inegável paternidade de Eco. Ele é escritor prolífico. Nos inúmeros congressos de que participei em que ele estava presente, comentava-se que ele escrevia até nos taxis, hotéis e, pouco participava dos jantares e festas típicas desses encontros, pois passava as noites trabalhando. De fato, ele tem a veia dos gênios. Sua genialidade é a do discurso. Suas apresentações são de tirar o ar e não deixam nunca de lado o rigor. Jamais ouvi uma palestra improvisada de Eco. Percebe-se em todas elas um preparo cuidadoso, aliado à irrupção genial da fala.

Voltei a encontrar Eco inúmeras vezes. Em todos os congressos internacionais de Semiótica. Em 1984, em Palermo, quando foi tristemente anunciada a morte de Michel Foucault, Umberto Eco brilhou o tempo todo, nas palestras e nas conduções das Assembleias, sempre com seu senso de humor italiano, bombástico. Nesse congresso, o cargo de vice-presidente, até então ocupado por Pignatari, passou para as mãos de Haroldo de Campos, ambos reconhecidíssimos nos meios semióticos internacionais.

Em 1985, Eco voltou ao Instituto de Bloomington, mas não mais como professor. Lá passou apenas um final de semana para o lançamento da tradução em inglês do seu livro O nome da rosa. Já não era mais apenas um estudioso da linguagem, mas começava sua ascensão como escritor mundialmente reconhecido no mundo dos bestsellers.
Não obstante seu enorme sucesso, seu apreço pela semiótica nunca decresceu. Ele comparece e participa de todos os congressos internacionais, únicos lugares em que ele profere palestras sem cobrar. No ano de 2009, no congresso em La Coruna, ele não pode comparecer e deu sua palestra via Skype. Em 1989, no congresso em Perpignan, fui eleita Vice-Presidente da Associação Internacional, ocupando o lugar de Haroldo de Campos, e em 1994, fui reeleita nesse cargo até 1999. Nesses dez anos, meu contato com Umberto Eco se aproximou, pois tomávamos parte das mesmas reuniões e dos mesmos jantares fechados da diretoria.

Apesar de todo o seu imenso sucesso, Umberto Eco é, acima de tudo, um vocacionado. Ele nasceu para o mundo das letras. Suas palestras sobre a Busca da língua perfeita, que deram origem ao livro do mesmo nome, atestam sua imersão radical no universo das palavras e de todos os seus sucedâneos.

Minha apreciação de Umberto Eco é paradoxal. De um lado não deixo de reconhecer sua inegável genialidade teórica e, certamente, de escritor. Além desse lado de produção solitária e dedicadíssima, ele é um intelectual engajado, quer dizer, alerta ao que está acontecendo no mundo, em seus variados aspectos, do político ao estético, marcando sua posição acerca dos eventos como um jornalista bem dotado. Nesse sentido, ele preenche aquilo que o neo-pragmaticista Richard Rorty proclama como sendo a função do filósofo, ou seja, a função de um intelectual público e um diletante informado. Não são todos os intelectuais que gozam do privilégio de manter essas duas faces em ação: a do intelectual, imerso em livros, e a do homem público que sabe transpor sua sabedoria teórica para os complexos eventos sócio-político-culturais. Umberto Eco equilibra esses dois lados com peso igual na gangorra.

Além disso, consegue também manter a homeostase de sua carreira teórica com sua carreira de escritor. Em ambos é genial. Entretanto, com exceção de seu poder interpretativo como intelectual público, do qual tenho certa inveja benigna, ao Umberto Eco teórico e escritor, tenho críticas até mesmo severas.

Embora sua semiótica goze de uma influência onipresente na Itália e mesmo em outros países, trata-se de uma semiótica miscigenada. Ele mistura indiscriminadamente correntes, autores, teorias, criando uma salada complexa e difícil de entender. Eco tem um poder de absorção de conteúdos incomparável e disso extraiu uma semiótica generalista que busca realizar a proeza de misturas impensáveis entre a semiologia estruturalista de extração linguística saussuriana, hjelmsleviana e do Barthes dos Elementos de semiologia(1971), renegados pelo próprio autor, mais a semiótica narratológica de Greimas e seguidores, com a semiótica filosófica de C. S. Peirce, que é totalmente incompatível com essa tradição linguística.

Em 1989, recém-chegada do Congresso de Perpignan, escrevi um artigo, publicado no Estado de S Paulo, no qual declarei que Umberto ECO é psicanaliticamente marcado pelo próprio nome – ECO. Ele ecoa, com um talento magistral, teorias alheias. E das misturas entre elas, cria uma teoria à la Eco.

Ele faz repetido uso dos conceitos peircianos e recebeu da comunidade dos especialistas todas as honras de um grande especialista em Peirce. Foi presidente da Charles SandersPeirceSociety (honra que também recebi em 2007). Entretanto, entre os especialistas em Peirce, Eco não é considerado, de fato, um especialista. A interpretação que Eco faz dos conceitos peircianos, aliás, uma interpretação idiossincrática, a meu ver, é muito marcada por sua formação escolástica (Eco, 1980).

Quanto ao Eco escritor, infelizmente não tenho tanto conhecimento dos seus livros. Só li O nome da rosa, depois de ter visto o filme que muito me empolgou. Do Pêndulo de Foucault, só li três páginas e abandonei. Eco não é um escritor do tipo inventor. Não é um Proust, não é Joyce, não é um Guimarães Rosa. Na classificação de Pound, ele seria quando muito um mestre. Não por acaso, entra na lista dos bestsellers, literatura para milhões. Há escritores que escrevem para escritores, como um dínamo gerador de novas formas de escritura que fazem avançar a sutileza da sensibilidade humana. Há outros escritores que escrevem para o grande público. Eco se enquadra nesta última categoria. Mas há que fazer jus às peculiaridades da sua literatura. Trata-se de uma literatura cerebralizada. Ela tem um fundo conceitual, teórico muito forte. Eco é um devorador de livros, universalista, enciclopedista. Ele absorve os conceitos, na maior parte deles, semióticos e cria a trama de seus romances sobre a base desses conceitos.

Há que se considerar ainda que ter Umberto Eco nas estantes da sala é, para muitos, inclusive os que jamais leram uma linha desses livros, uma questão de status cult. Compõe bem a pose dos pseudo-intelectuais que brilham nas grandes praças dos lançamentos do big show business.

A última vez que encontrei Eco pessoalmente foi em um pequeno encontro internacional de semioticistaspeircianos, promovido pelo canadense Martin Lefevre, no instituto semiótico de verão da Universidade de Urbino, em 2007. Eco compareceu ao evento de sua própria vontade. Participou humildemente como ouvinte dos três dias de palestras e debates. Ao final, alguns dos participantes do encontro foram convidados para uma mesa redonda com Eco. Ouviu a todos com muita atenção e, com surpresa, me dei conta de que ele tem certeza de que sua leitura de Peirce é fiel ao autor. Homem coberto de todo sucesso que um ser humano pode granjear, Eco mantém intacto seu amor sincero pela semiótica e, não obstante de maneira humilde, está convicto de que sua contribuição para o campo da semiótica tem inestimável valor. Muito provavelmente ele esteja mais certo no julgamento que faz de si próprio do que eu no julgamento que faço dele.

Referências
Barthes, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971.
Eco, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1969.
___________. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970.
___________. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971.
___________. As formas do conteúdo. São Paulo: Perspectiva, 1974.
___________. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1980.

 

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